Por que pessoas altruístas podem ser
vistas de forma negativa pelos outros

Ações de caridade são geralmente
bem recebidas, mas podem gerar suspeita em alguns - José
Luis Pelaez/Getty Images/BBC
David Robson - BBC WorkLife
BBC News Brasil - Você por acaso já se deparou
com alguém incrivelmente gentil e moralmente correto –e
ao mesmo tempo incapaz de qualquer sofrimento? A pessoa pode tentar
fazer qualquer coisa para ajudar você ou se engajar em uma série
de atividades importantes e úteis que beneficiem seus amigos
e a comunidade de forma geral. Ainda assim, ela parece um pouco satisfeita
demais com seus gestos de bondade, e você, sem nenhuma boa razão
aparente, suspeita que exista alguma coisa calculada naquele altruísmo.
Perceber que você tem uma atitude tão negativa em relação
a pessoas que estão apenas tentando tornar o mundo um lugar
melhor pode ser desconfortável. Mas esse ceticismo é,
na verdade, um comportamento conhecido, descrito por psicólogos
como "menosprezo a benfeitores". Apesar de esse fenômeno
parecer totalmente irracional, há algumas boas razões
evolutivas para suspeitarmos de altruísmo sem reciprocidade.
Com a compreensão de nossa inata suspeita diante de atos públicos
de bondade, nós podemos identificar específicas situações
em que a generosidade é bem-vinda e em que ela é ressentida
–com algumas importantes lições para nosso próprio
comportamento.
PUNIÇÃO PARA ATOS DE BONDADE
Uma das mais antigas e sistemáticas análises de menosprezo
de benfeitores vem de um estudo global feito por Simon Gächter,
professor de psicologia na Universidade de Nottingham, no Reino Unido.
Como muitos estudos sobre altruísmo, seu experimento tomou
a forma de um "jogo dos bens públicos" [experimento
econômico para medir o grau de contribuição de
uma pessoa à sociedade]. Os participantes foram divididos em
grupos de quatro, e cada pessoa recebeu fichas representando uma soma
de dinheiro. Todos então receberam a possibilidade de contribuir
parte daqueles recursos a um pote comunitário em cada rodada
do jogo. Depois que todos colocaram seu investimento, cada um receberia
40% do total da soma investida pelo grupo.
Se os participantes jogam de maneira justa, cada rodada deveria produzir
um retorno de investimento para cada um. Aqueles que são muito
mesquinhos, porém, podem distorcer o jogo contribuindo pouco
para o pote comunitário, mas recebendo o retorno do investimento
feito por outros. É fácil como o ressentimento pode
crescer nesse experimento. Após dez rodadas, portanto, os pesquisadores
deram aos participantes a opção de penalizar outros
jogadores deduzindo parte da receita que eles haviam recebido.
Baseado na teoria econômica clássica, você poderia
esperar que os mais mesquinhos recebessem as punições
–o que realmente aconteceu. Incrivelmente, no entanto, os participantes
mais altruístas também foram alvos de punições
–embora eles tivessem contribuído mais do que deveriam
para os outros enriquecerem.
O resultado já foi repetido em muitos outros experimentos.
Num "jogo dos bens públicos" semelhante, por exemplo,
participantes foram questionados se eles gostariam de expulsar algum
membro do grupo. Para espanto de muitos, eles expulsaram os extremamente
altruístas com a mesma frequência com que tiraram os
piores egoístas. Por alguma razão, egoísmo e
altruísmo foram considerados moralmente equivalentes.
Essa tendência parece surgir no começo da vida de um
ser humano – em torno dos oito anos de idade. Apesar de o tamanho
de seu efeito depender do contexto, ela parece estar presente, em
ao menos algum grau, na maioria das culturas –o que sugere que
seja uma tendência universal.
RECIPROCIDADE E REPUTAÇÃO
Para compreender as origens desse comportamento aparentemente irracional,
precisamos primeiro considerar como o altruísmo humano nasceu.
De acordo com a psicologia evolutiva, comportamentos humanos arraigados
no cérebro devem evoluir para melhorar nossa sobrevivência
e nossa capacidade de passar nossos genes para uma outra geração.
No caso do altruísmo, ações generosas poderiam
nos ajudar a produzir boas relações dentro de um grupo
que, ao longo do tempo, ajudam a construir capital social e status.
"Adquirir uma boa reputação pode levar a benefícios,
como ocupar uma posição mais central na rede social",
diz Nichola Raihani, professora de evolução e comportamento
da University College London (Reino Unido) e autora de The Social
Instinct (O Instinto Social). Isso pode significar que nós
tenhamos mais ajuda quando precisarmos. "E também está
ligado a sucesso reprodutivo", afirma ela.
É importante dizer, entretanto, que reputação
é algo relativo a posição –se uma pessoa
sobe, outras caem. Isso pode criar um forte senso de competição,
o que significa que nós estamos sempre alertas quanto à
possibilidade de outras pessoas estarem à frente, mesmo que
elas tenham alcançado seu status por meio do altruísmo.
Nós ficamos especialmente ressentidos se acharmos que essa
outra pessoa estava apenas buscando esses benefícios de reputação,
em vez de agir a partir de um genuíno interesse nos outros,
já que seu altruísmo pode sugerir, de forma mais geral,
uma personalidade manipulativa e astuta.
Isso tudo significa que o comportamento altruísta pode nos
levar a andar em uma corda bamba, metaforicamente falando. Nós
precisamos equilibrar nossa generosidade perfeitamente, para que nós
sejamos vistos como prestativos e bons, sem levantar a suspeita de
que estamos agindo apenas pelo interesse em um novo status.
Resultados dos jogos de bens públicos parecem também
ter mostrado isso, diz Raihani. "Quando você pergunta aos
participantes por que eles querem excluir alguém, eles frequentemente
lhe dão respostas ligadas à posição, do
tipo 'Oh, aquele cara, ninguém está fazendo o que ele
faz –ele nos deixa numa posição ruim'." Estudos
com base em mídias sociais, afirma Raihani, mostram que as
pessoas tendem a admirar menos uma ação altruísta
se a pessoa anunciá-la no Facebook, por exemplo, do que se
ela mantiver o gesto fora das redes.
A própria pesquisa de Raihani sobre páginas de arrecadação
de recursos encontrou evidências de que algumas pessoas estão
cientes da possibilidade de provocar uma reação hostil
a sua generosidade. Analisando postagens do antigo site BMyCharity,
ela identificou que são geralmente os mais altos (assim como
os mais baixos) doadores que preferem permanecer anônimos. Eles
parecem saber que um gesto de maior visibilidade pode resultar em
ressentimento por parte de outras pessoas que visitem a página,
então eles preferem escondê-lo.
SEGUNDAS INTENÇÕES
Ryan Carlson, um estudante de graduação na Universidade
Yale, nos Estados Unidos, concorda que comportamentos altruístas
são frequentemente avaliados a partir de muitos ângulos
além da própria generosidade da ação.
"Nós não apenas valorizamos o altruísmo
–nós valorizamos a integridade e a honestidade, que são
outros sinais de nosso caráter", diz ele. Um aparente
ato de generosidade que pareça motivado por algum interesse
pessoal pode, portanto, nos levar a receber pontos bem negativos nessas
outras qualidades.
Para um estudo recente, Carlson entregou aos participantes vários
ilustrações, com exemplos de situações
envolvendo pessoas, e pediu que eles dessem uma nota ao aparente altruísmo
da personagem – em que -5 seria extremamente egoísta
e +5, extremamente altruísta.
No geral, os participantes não se importaram se as personagens
recebiam benefícios acidentais com suas ações.
Se a pessoa foi doar sangue –um gesto modestamente altruísta–
e acabou causando a admiração seu amigo, por exemplo,
os participantes ainda viam a pessoa de forma positiva. De forma semelhante,
se a personagem recebia um vale de compras pelo seu esforço,
os participantes não se incomodavam– contanto que tivesse
sido um bônus acidental.
A penalização vinha se eles eram informados que esses
benefícios faziam parte da motivação original.
Isso mudou as notas de avaliação do altruísmo,
de positivo para negativo. Embora as pessoas ainda estivessem fazendo,
sem dúvida, um gesto de bondade, elas eram consideradas egoístas.
Como explica Raihani, nós estamos constantemente tentando
adivinhar os motivos das ações realizadas por outras
pessoas– e nós as punimos duramente quando suspeitamos
que seus motivos não sejam puros. Essas suspeitas instintivas
podem ou não ser verdade, claro. Nós frequentemente
baseamos nossos julgamentos na intuição, não
em fatos concretos.
REGRAS PARA A VIDA TODA
É importante nos lembrarmos dessas conclusões sempre
que questionarmos os comportamentos de pessoas em nosso entorno. Se
não houver uma boa evidência sugerindo que seus atos
de generosidade vêm de interesses pessoais, nós podemos
decidir dar-lhes o benefício da dúvida, sabendo que
nossas próprias intuições podem estar sendo alimentadas
pelo nosso próprio medo de perder status social.
As pesquisas também podem nos ajudar a evitar gafes acidentais
quando nós mesmos agirmos de forma altruística. No mínimo,
as conclusões desses estudos mostram que você deveria
evitar fazer muito barulho em torno de suas boas ações.
"E, se outras pessoas as mencionarem, você deveria minimizá-las",
diz Raihani. Mesmo que você ache que você esteja simplesmente
compartilhando uma informação animadora sobre uma causa
com que você se importa, você deveria ficar mais próximo
da modéstia.
E, se você por acaso receber algum benefício devido
a um gesto altruísta, é melhor que você seja honesto
sobre isso. Imagine, por exemplo, que um gesto de gentileza no escritório
acabe chamando a atenção de um chefe, que então
lhe oferece uma promoção. Você poderá ser
visto por outras pessoas de forma mais favorável se você
admitir publicamente essa consequência, em vez de deixar que
os outros fiquem ruminando a ideia de que você, de alguma maneira,
planejou isso antecipadamente.
"Se nós acabarmos recebendo benefícios por causa
de uma ação de bondade, faz sentido ser transparente
sobre isso", afirma Carlson. Caso contrário, pode parecer
que você estava deliberadamente administrando sua reputação
para adquirir status.
Pode ser que a única forma garantida de evitar o chamado "menosprezo
a benfeitores" seja realizar suas boas ações em
completo segredo. E, se outros descobrirem a verdade, apesar de suas
tentativas de escondê-las –bem, nesse caso a boa reputação
que virá em seguida será simplesmente um bônus.
Oscar Wilde pode ter descrito isso da melhor forma, mais de um século
atrás. "A melhor sensação do mundo é
realizar uma boa ação de forma anônima –e
alguém descobri-la depois."
* David Robson é um escritor
científico baseado em Londres, Reino Unido. Seu próximo
livro, The
Expectation Effect: How Your Mindset Can Transform Your Life (O Efeito
da Expectativa: Como Sua Postura Mental Pode Transformar Sua Vida)
será publicado pela editora Canongate and Henry Holt no início
de 2022. Está disponível para compra antecipada.