por RICARDO DE QUEROL - El País
Os autores, ou melhor, compiladores, que deram forma ao livro do
Gênesis há 2.700 anos não se empenharam muito
em ocultar as contradições, que saltam aos olhos de
um leitor atento desde o começo. Dois relatos consecutivos
da criação se sucedem um após o outro. No primeiro,
Eloim vai dando forma ao universo ao longo de uma semana e, por
fim, no sexto dia “criou o ser humano à imagem de Eloim:
criou macho e fêmea”. Imediatamente depois, no segundo
capítulo, a divindade passa a se chamar Javé-Eloim,
modela o homem com o barro da terra, o leva a um jardim, depois
faz brotar as árvores e cria os animais do campo; mas depois
vê como o homem está sozinho e tira dele uma costela
para que a mulher apareça. Outra passagem, somente algumas
páginas depois, é muito mais desconcertante: quando
os humanos se multiplicaram e tiveram filhas, “os filhos de
Eloim viram que eram bonitas e tomaram algumas delas como esposas”.
Depois disso, “os filhos de Eloim se juntaram com as filhas
dos humanos e com elas fizeram filhos. Esses filhos são os
heróis”. Heróis que, se diz, conviveram com
gigantes.
É possível ler o Gênesis como uma obra literária,
como outros grandes livros míticos da Antiguidade, do mesmo
modo que a Odisseia de Homero e a Epopeia de Gilgamesh, despojado
dos dogmas construídos a partir dele por judeus, cristãos
e muçulmanos? Essa é a proposta dos editores de El
libro del Génesis liberado (O
Livro do Gênesis Liberado, ainda inédito em
português), da coleção Clássicos Liberados
da Blackie Books. O tomo incluiu uma nova tradução,
notas que levam à sua marca cultural e uma série de
textos de diversos pensadores — de Stephen Hawking a Kierkegaard,
passando por Sara Mesa e Vinicius de Moraes— que trazem um
olhar diferente. Com o objetivo, laico, de que seja lido como um
romance. Com toda a “sua potência avassaladora, sua
intensidade brutal, a construção de personagens, um
estilo impactante e seco, que deixa os sentimentos de lado, que
não dá muitos detalhes e que deixa margem à
imaginação”, nas palavras do editor da obra,
Pau Ferrandis. Esta versão inclui breves notas que dão
um respiro na leitura, mas o objetivo não é proporcionar
contexto histórico, muito menos teológico, e sim interpelar
ao prazer estético.
Os editores também não querem chamar a atenção
sobre as muitas peças do relato que não encaixam,
incoerências que vão além das duas versões
da criação. Caim, filho de Adão e Eva que matou
seu irmão Abel, é desterrado, se casa e funda uma
cidade. Quando Noé embarca em sua arca, Eloim diz a ele para
pegar um casal de cada espécie, mas Javé diz em outro
momento que a vida dos humanos não passará dos 120
anos — isso tem base científica— , mas os personagens
do Gênesis continuam vivendo e tendo filhos, muitíssimo
mais: Noé tem 600 anos quando constrói a arca. “Era
uma tentação abordar essas contradições
de maneira jocosa. Mas isso não faria justiça com
um texto que surpreende e fascina”, diz Ferrandis.
Javier Alonso, filólogo especializado em línguas
semíticas, traduziu do hebraico antigo o primeiro livro da
Bíblia Hebraica Stuttgartensia, baseada, por sua
vez, no chamado Códice de Leningrado, do ano 1008.
A descoberta dos Manuscritos
do Mar Morto confirmou o acerto das reconstruções
feitas nos dois últimos séculos. “Essa é
a primeira tradução ao espanhol que não teve,
em nenhum momento do processo, a intervenção de qualquer
entidade religiosa”, se orgulha. Não há nenhuma
tentativa, fica claro, de pregar uma fé.
A tradução evita a palavra “Deus”: mantém
do original os diversos nomes que se dá à divindade.
Ou talvez seja melhor dizer divindades: Javé é um
deus humanizado e próximo, que caminha entre os humanos e
os chama se não os vê, que foge, que fecha a porta
da arca de Noé com suas mãos, que se arrepende de
suas decisões e é capaz de se mostrar colérico.
Eloim é um deus mais misterioso e distante, que se manifesta
em sonhos e através de uma voz interior, com exceção
do estranho episódio em que luta fisicamente com Jacó
até o amanhecer e não consegue vencê-lo. Além
disso, são utilizadas as denominações El-Elyon
(o Altíssimo) e El-Shaddai, de origem menos clara e que,
segundo Javier Alonso, provavelmente se refere ao deus da tempestade
e da montanha. Porque “os deuses se manifestavam na montanha
quando cada povo adorava o seu”.
![](../Img_Nots/img_2021/Genesis_02.jpg)
Adão e Eva. Mural da igreja de Abreha
We Atsbeha (Etiópia).
No Gênesis ocorreu uma tentativa de unificar diversas visões
de um mesmo Deus, mas nem todos entendem assim. Em um dos textos
que completam a edição, o filósofo Arthur Dobb
(1917-1981) nega que Javé e Eloim fossem a mesma divindade.
“O que nos é contado é uma história de
ações entrecruzadas, de réplicas e contrarréplicas”,
escreveu. Um exemplo: “É Eloim quem ordena a Abraão
que ofereça a ele seu filho Isaac em sacrifício. Javé
provavelmente acha uma barbaridade, porque manda seu anjo deter
Abraão, que já está com a faca na mão”.
Outro: é Javé quem fecha a porta da arca de Noé,
mas é Eloim que precisa deter a chuva. Somente após
seus confrontos com Jacó, defende Dobb, “Eloim e Javé
desaparecem definitivamente” e a “humanidade começa
sua longa e solitária marcha”.
Alguns especialistas afirmam que os que reuniram antigas tradições
de Israel e Judá no Gênesis, por volta do ano 700 antes
de Cristo, partindo de livros anteriores que não se conservaram
(as fontes J ou javista, E ou eloísta e P ou sacerdotal),
não pretendiam de modo nenhum que fossem entendidas literalmente,
e sim dar um sentido — transcendente, místico, espiritual
— ao povo judeu. A especialista em religiões Karen
Armstrong, prêmio Princesa de Asturias de Ciências Sociais
2017, explica em seu livro El arte perdido de las Escrituras
(A Arte Perdida das Escrituras) que o que se praticava em Canaã
não era o monoteísmo, e sim a monolatria: cada povo
adorava seu deus protetor. Antes de ser monoteístas, afirma,
os israelitas “consideravam Javé como um dos filhos
e poderes sagrados de El, o Deus Supremo de Canaã, e membro
da assembleia divina de El”, onde estavam os deuses de todas
as nações. Eloim é o plural de El, mas no Gênesis
seu nome é empregado no singular. Há passagens bíblicas,
além do Gênesis, que reforçam essa visão.
A Bíblia não era entendida literalmente? Outros pensadores
discutem o tema, porque se tratava de explicar tudo, a origem do
mundo, do bem e do mal, e do povo eleito. O fim era, principalmente,
político: unificar as crenças das tribos divididas
em duas nações — Judá, ao redor de Jerusalém,
e Israel, ao norte de Canaã— para que formem uma só,
o que se consegue aparentando seus patriarcas, para que todos sejam
descendentes de Abraão. De modo que os textos originais foram
reunidos no reinado de Ezequias. “Para criar identidade nacional”,
afirma Javier Alonso.
A opinião de Reza Aslan em Dios. Una historia humana
(Deus. Uma História Humana) é mais contundente: “A
história de como o monoteísmo — após
séculos de fracassos e repúdio — se estabilizou
de modo definitivo e permanente na espiritualidade humana começa
com a história de como o deus de Abraão, EI, e o deus
de Moisés, Javé, se fundiram gradualmente para se
transformar em uma só divindade singular que hoje chamamos
de Deus. A introdução do monoteísmo entre os
judeus foi um mecanismo para racionalizar a derrota catastrófica
de Israel para os babilônios”.
Para o teólogo Juan José Tamayo, os autores do Gênesis
se inspiraram em tradições culturais da região,
mesopotâmicas, egípcias e fenício-cananeias,
e mantêm parentesco com as sumérias, ugaríticas
e babilônicas. “Não se pode, entretanto, falar
de mera imitação e dependência servil, e sim
a partir da fé monoteísta”, diz. É apresentado
um Deus às vezes próximo, acompanhante, e ao mesmo
tempo misterioso, onipotente. Definitivamente, “o Deus do
Gênesis é o Deus da promessa, o Deus do futuro”.
![](../Img_Nots/img_2021/Genesis_03.jpg)
A instalação 'Babel 2001', do
artista brasileiro Cildo Meireles, na Tate Modern Gallery de Londres
em 2014.
Um ângulo que não é evitado nesta edição
é o do papel da mulher em um texto em que os nomes femininos
costumam ser omitidos das genealogias. O contexto é o de
uma sociedade patriarcal e violenta em que Ló — o único
justo em Sodoma— oferece suas filhas virgens à multidão
para que sejam estupradas e, desse modo, aplacar um conflito; em
que o incesto é habitual, filhos são feitos com as
escravas e são permitidas a compra e venda de filhos. Mas
chama a atenção que, entre uma longa lista de homens
submissos à vontade de seu deus, existam personagens femininos
com caráter rebelde: Eva, as filhas de Ló, Rebeca,
Raquel, Lia, Tamar, Sara, Agar. Sobre elas escreve Sara Mesa: “Lá
estava latente o peso dessas mulheres fortes, decididas, corajosas,
frequentemente sem escrúpulos para privilegiar os de sua
estirpe. Manipulavam e confundiam os homens como queriam, fazendo-se
valer de poderes que eu não consigo definir, mas que eram,
ao que parece, tão infalíveis como os de um feitiço
mágico”.
Tamayo, que acaba de publicar La compasión en un mundo
injusto (A Compaixão em um Mundo Injusto), opina que
o Gênesis admite duas leituras sobre o papel da mulher: “A
discriminatória e patriarcal, que marca a dependência
e submissão da mulher ao homem de acordo com os relatos javistas
da criação. Mas também a igualitária
e feminista, que frisa a igualdade entre o homem e a mulher, criados
à imagem e semelhança de Deus no relato sacerdotal
da criação e no reconhecimento do protagonismo de
Sara, Agar, Rebeca, Raquel e Lia, no mesmo nível dos patriarcas”.
O empenho em ler de modo literal o que o Gênesis conta motiva
um dos capítulos mais delirantes de Gênesis Liberado:
a entrada da Enciclopédia de Diderot e D’Alembert em
que são estudadas minuciosamente as medidas exatas que a
arca de Noé deveria ter. Os céticos enciclopedistas,
talvez por prudência, encarregaram este e outros artigos de
temática religiosa ao abade conservador Edmé-François
Mallet. Os autores da Enciclopédia não anotam o cálculo
supostamente científico de um acontecimento tomado por histórico,
assim como os editores desse novo livro, que acrescentam ilustrações
muito trabalhadas a partir deste texto do século XVIII. Essa
arca cuja porta Javé fecha e da qual não saem até
Eloim ordenar.
![](../Img_Nots/img_2021/Genesis_04.jpg)
Reconstrução em 3D da Arca de
Noé, a partir da entrada na 'Enciclopédia', incluída
em 'O livro do Gênesis liberado'.
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A Bíblia do Urso: uma versão
perseguida
O interesse pelas traduções bíblicas mais
ou menos heterodoxas não acaba no Gênesis Liberado.
A editora Alfaguara reedita A Bíblia do Urso, que Casiodoro
de Reina (1520-1594), um monge jerônimo espanhol convertido
ao protestantismo que precisou se exilar, traduziu sozinho ao
espanhol (do hebraico, aramaico e grego). Publicada em Basileia
em 1569, ilustrada na capa com um urso diante de uma colmeia,
o emblema do editor suíço Matthias Apiarius, foi
uma tarefa titânica para uma única pessoa, e é
considerada uma das obras magistrais do espanhol do Século
do Ouro. Mas a tradução a línguas vernáculas
dos livros sagrados foi perseguida pela Igreja católica
na época da Contrarreforma e só se tornaria comum
com o século XX já bem adiantado; esta Bíblia
só foi impressa na Espanha em 1987. Serviu de base à
Bíblia Reina Valera, corrigida por seu colaborador Cipriano
de Valera, e que é a mais conhecida no mundo protestante
em espanhol.
Se não fosse proscrita pelo catolicismo, essa obra ocuparia
um local de destaque na história da literatura espanhola.
“Estaria ao lado das de Cervantes e San Juan de la Cruz”,
diz Andreu Jaume, responsável por essa edição.
A tradução da Bíblia Reina Valera é
rigorosa, diz, “de uma grande beleza, com ecos de Garcilaso,
Góngora e Quevedo, e que no prólogo interpela o
leitor em um tom próximo e caloroso como o de Cervantes”.
Além disso, a obra introduziu notas que tentam unificar
a crença, reconciliar as famílias cristãs.
Porque o autor não era um reformista dogmático,
e sim alguém que apostava na universalidade da fé.
Jaume lamenta que o valor literário desta edição
da Bíblia tenha sido desprezado pela censura católica.
Desse modo, se viu frustrada a influência que poderia ter
exercido nas literaturas hispânicas. “Do ponto de
vista da língua, Casiodoro de Reina fez o trabalho de,
no mínimo, 100 escritores”, conclui.