Cientistas cristãos combatem imperialismo
científico e fundamentalismo religioso
Associação prega união entre fé e ciência,
já presente no trabalho de nomes como Galileu e Newton
por Anna Virginia Balloussier
As Escrituras não erram nunca. O mesmo não se pode
dizer dos homens que as interpretam.
Essa convicção partiu de um cientista, e não
um qualquer. Galileu Galilei foi condenado em 1633 pela Santa Inquisição
por defender a tese copernicana de que o Sol não se move
em torno da Terra, e sim o contrário. Nem com o título
de herege o astrônomo católico deixou de lado uma de
suas citações prediletas: “A Bíblia nos
ensina como se vai para o céu, não como vai o céu”.
“Quase todos os nomes importantes da ciência eram profundamente
religiosos”, diz o professor de filosofia da ciência
Marcelo Cabral. “Pascal era um cristão devoto. Isaac
Newton tem mais trabalho de teologia do que de ótica ou física.”
O debate levantado por Galileu quatro séculos atrás
ainda é quente nos dias atuais: se a ciência vir a
religião passar, melhor trocar de calçada ou as duas
conseguem caminhar juntas? Já em seu nome a ABC² (Associação
Brasileira de Cristãos na Ciência) escancara achar
balela essa bifurcação tão comum tanto nos
círculos acadêmicos quanto nas igrejas.
A entidade, da qual Cabral é gerente editorial e de ensino,
tem temas que lhe são caros hoje. Um deles é reconhecer
a gravidade da pandemia da Covid-19, e a imunização
como melhor forma de combatê-la. “Cristãos em
especial, chamados pelo Senhor Jesus para amar ao próximo,
demonstrarão este amor ao se vacinar, contribuindo para que
esta doença mortal seja minimizada até desaparecer”,
diz uma nota da ABC².
Outro tópico no radar: ecoteologia, que reconhece a influência
das ações humanas nas mudanças climáticas.
“A crise ambiental [...] também é moral e espiritual.
Não basta observar o fenômeno com curiosidade apocalíptica.
Jesus disse: ‘vós sois o sal da terra’. A igreja
não deve se tornar insípida diante da crise atual.”
Cabral, 34, um presbiteriano fã de Iron Maiden e Milton
Nascimento, estima que hoje haja 70 grupos no Brasil dedicados a
estudar relações entre dois campos que boa parte das
universidades brasileiras trata como água e azeite. Mas quase
nada institucionalizado.
“Oxford, Cambridge, Harvard, Princeton, todas elas, sem exceção,
têm institutos voltados para a interação entre
religião e ciência." Por aqui, a ideia ainda pode
soar alienígena. “No Brasil é diferente. Praticamente
não tem algo assim, especialmente entre as [universidades]
públicas, as mais relevantes em termos de pesquisa.”
Ele empresta a expertise do historiador australiano Peter Harrison,
que ajudou a reformar como a academia enxerga a contribuição
religiosa no desenvolvimento científico.
Em “The Fall of Man and the Foundations of Science”
(a queda do homem e a fundação da ciência),
ele argumenta que métodos científicos foram originalmente
concebidos para recapturar o conhecimento da natureza que Adão
possuía antes de Deus expulsá-lo do Éden, como
zela a narrativa bíblica.
“Há um mito, acredito que ainda presente, sobre a
ciência e religião sempre terem sido inimigas. Lembram
de como a Inquisição foi lá e prendeu Galileu”,
afirma Cabral.
Rezam-se muitas lendas sobre como religiosos se apegaram a diferentes
fábulas anticientíficas ao longo dos séculos.
Tem a do Vaticano ter encorajado a teoria da Terra plana. Outra
diz que o papa Calisto 3º excomungou o cometa Halley em 1456
(essa pepita até o astrônomo Carl Sagan passou adiante).
Nenhuma delas é verdade.
Em setembro de 2020, o físico Roberto Covolan, ex-professor
da Unicamp e fundador da ABC², enviou uma carta à SBF
(Sociedade Brasileira de Física). Queria dar parabéns
aos colegas por um debate organizado com o colega Marcelo Gleiser.
Outro interessado no assunto, Gleiser é autor de livros
como “O Fim da Terra e do Céu”. A obra examina
a influência de ideias apocalípticas no pensamento
científico desde os pré-socráticos até
a astrofísica moderna.
Naquele mês, o físico havia participado da mesa virtual
“Pode-se conciliar física e religião?”.
É claro que sim, diz Covolan, fiel da Igreja Batista Fonte
para quem a ciência pode ser percebida como um instrumento
divino para aperfeiçoar a humanidade, como na descoberta
de remédios.
Doutor em física e atual vice-presidente da ABC², ele
diz no texto à SBF que seria tolice considerar real apenas
o que é material. Sua própria raia de saber depõe
contra essa ideia. “Para ficar num terreno que nos é
familiar, a lei de conservação de energia é
certamente real, embora em si mesma não apresente nenhuma
materialidade.”
Covolan aponta que E=MC², talvez a mais famosa equação
da física, já era aplicável muito antes de
Albert Einstein a descobrir. Ou seja, o homem não conseguir
explicar certos fenômenos não significa que ele sejam
carochinhas da religiosidade. Algumas leis escapam à compreensão
humana. “A natureza já as conhece, nós é
que não as conhecemos", escreveu.
Uma fala que vai de encontro a um dos princípios listados
no estatuto dos cristãos na ciência: “A crença
que, ao criar e preservar o universo, Deus conferiu a ele ordem
e inteligibilidade contingentes, as quais são basilares para
a investigação científica”.
Covolan não percebe uma “grande oposição”,
na comunidade científica, quando um dos seus professa uma
fé. “Mas também não tenho visto muitas
pessoas, mesmo aquelas que creem, se colocarem publicamente quanto
a isso”, diz à reportagem.
O que observa, isso, sim, “é certa tendência
a tratar essas coisas como mundos isolados”, diz. “Nem
todo mundo sente necessidade de estabelecer uma aproximação
entre os campos. Eu mesmo fiz parte desse grupo por um longo tempo.”
A ABC² surgiu em 2016 como associação privada
sem fins lucrativos. Nasceu como costela de um projeto financiado
pelo braço global da Fundação Templeton.
A organização filantrópica organiza um prêmio
anual, uma espécie de Nobel do diálogo da ciência
com a espiritualidade. O brasileiro Marcelo Gleiser o ganhou em
2019, e a primatóloga Jane Goddall, em 2021.
Para Marcelo Cabral, há “um tipo de percepção
de que autoridades científicas meio que debocham ou menosprezam”
dos que têm alguma crença religiosa. A postura vira
um espantalho para muitas pessoas de fé, que se sentem alvo
de soberba intelectual. "Quando você percebe isso, você
tende a se blindar do que vem [da ciência].”
Veja os neoateístas Richard Dawkins, Christopher Hitchens,
Sam Harris e Daniel Dennett. Eles ficaram conhecidos como “Os
Quatro Cavaleiros do Não Apocalipse”, chacota com o
livro bíblico sobre o fim dos tempos.
Em títulos como “Deus, um Delírio” (Dawkins)
e “O Fim da Fé: Religião, Terrorismo e o Futuro
da Razão” (Harris), eles passam a mensagem de que “religiosos
fazem o mundo ir de mal a pior, o cristianismo é uma doença,
só um ignorante acredita em Deus”, afirma Cabral.
Ora, muitas pessoas dão à religião um papel
central em sua vida. É ela que as acolhe quando um filho
começa a beber muito, quando se perde um emprego, quando
tudo parece dar errado. O que você faz se um tipo de jaleco
ridiculariza sua fé? Fica com ela e joga a ciência
na latrina.
É o que Cabral chama de imperialismo científico.
"Ele ocorre, por exemplo, quando Dawkins acusa indiscriminadamente
religiões de serem armas do mal, quando universidades se
fecham ao diálogo entre ciência e religião e,
também, quando alguma autoridade científica arrogantemente
coloca seu conhecimento como indubitável. Tais atitudes,
em vez de promoverem o avanço científico, acabam por
fortalecer os bolsões negacionistas e ‘anticiência’."
Até porque parte das igrejas vem se inclinando ao fundamentalismo.
Outro perigo. “Esse movimento vai apresentar uma tendência
a se enclausurar, virar um tipo de bolha, uma personalidade umbiguista,
e criar a falsa ideia de que todas as vozes externas são
inimigas”, afirma o membro da ABC². "Inclusive,
é mais propenso a abraçar teorias da conspiração."
“Roupa, música, cabelo, tudo é gospel. Vai
até inventar a ciência gospel pra negar tudo o que
vem de fora”, diz Cabral. “Esse fundamentalismo, pra
mim, trai o próprio espírito bíblico. O cristão
deveria ser aberto à realidade em suas múltiplas facetas,
porque foi Deus quem a criou como um todo.”