25/09/2021
Série sobre João de Deus não
ignora a fábula do 'médium e o monstro'
Lançamento da Netflix explora a tríplice
fronteira de curador, gângster e abusador
por Anna Virginia Balloussier
É difícil tolerar que um mesmo corpo hospede
o afável doutor Jekyll e o sombrio senhor Hyde, como na trama
de Robert Louis Stevenson. Mas acontece.
Quando centenas de casos contra João de Deus emergiram, três
anos atrás, muitos se apressaram para decretar que ele era um
charlatão que não tinha poder espiritual coisíssima
nenhuma.
A fábula do “médium e o monstro” era um acinte,
como se o homem que se aproveitou de sua guiança espiritual para
estuprar mulheres fragilizadas fosse qualquer outro João que
não o de Deus.
Deus é bom. João é mau, capaz de crimes horríveis
contra mulheres, inclusive contra a própria filha, violentada
desde a infância. Despir o personagem de qualquer autenticidade
possível parecia ser uma questão de honra. Simplesmente
não dá para aceitar que a mão que cura é
também a que abusa.
Um dos méritos de “João de Deus
- Cura e Crime”, lançamento da Netflix sobre a queda de
um dos mais famosos curadores que o Brasil já teve, é
não cair na ratoeira argumentativa de que o personagem-título
é um embuste em tudo o que faz.
Talvez até seja. Não há estudo
conclusivo sobre a eficácia de seus tratamentos. Até aqui,
no entanto, não há evidências definitivas de que
suas habilidades mediúnicas sejam fake news, ao menos para a
régua do espiritismo.
A luz vem com a sombra, como aponta Anna Sharp, terapeuta
que conhece o acusado há cerca de três décadas.
Mesmo antes de o escândalo vir à tona, ela já percebia
a dualidade do ególatra devoto ao dinheiro, mas que promovia
“curas inenarráveis” e era generoso com os necessitados.
É muito mais assustador concluir que dons dessa
magnitude não necessariamente partem de pessoas decentes. Pelo
contrário, como o caso João de Deus ilustra tão
bem.
Ele era o médium de Abadiânia, em Goiás,
que acumulava histórias de curas e fotos com personalidade. Juliana
Paes, Xuxa, Lula e Dilma. Até a apresentadora americana Oprah,
que quando o conheceu achou que ia desmaiar, tamanha a força
que sentiu em sua presença. "John of God."
Então veio a primeira denúncia, depois
mais outra, e outra. Logo, as acusações de assédio
sexual apresentadas à Justiça chegaram a mais de 330,
ainda que muitas já tivessem prescrito.
A série documental de Mauricio Dias e Tatiana Vilela espraia
por quatro episódios a história de um homem que fez fortuna
nos garimpos de Serra Pelada e, anos depois, lotava uma casa no interior
goiano com promessas de mudar quadros clínicos ditos irreversíveis.
Milagres, para usar o léxico religioso.
Se Abadiânia enriqueceu na garupa de sua fama, João Teixeira
de Faria a controlava com técnicas de milícia. Há
relatos sobre pousadas que pagavam a ele um salário mínimo
para funcionar, taxistas que também precisavam desembolsar uma
taxa para rodar.
Estar com ele era como estar com Michael Jackson ou um presidente da
República, diz um contador da casa. O dólar e o euro passaram
a correr solto, tantos eram os estrangeiros que vinham atrás
de socorro. Para viajar para fora do país, o líder exigia
assentos na primeira classe para toda sua comitiva.
O João médium promovia cirurgias espirituais em massa,
como a da mulher que chegou até ele cega por um tumor supostamente
terminal. Ele dizia incorporar do rei Salomão ao santo Inácio
de Loyola, e também médicos de diferentes épocas
e expertises.
Uma dessas entidades teria sido a responsável, e a cena descrita
a seguir está capturada em vídeo, por enfiar uma tesoura
e dar 21 voltas com ela na narina direita da adoentada. Pouco depois,
estava curada.
Mesmo uma das mulheres mais vocais em denunciar o abuso sexual de João
contra ela narra como procurou João com a mãe desenganada
pelos médicos. Tinha câncer. Foi a Abadiânia e voltou
com o diagnóstico de que o tumor era de repente benigno, o que
pasmou toda a equipe médica.
O que aconteceu com Andrea, a filha, ilustra bem o modus operandi do
João predador sexual. Seus alvos preferenciais eram em boa parte
jovens bonitas e com alguém doente na família. Ele se
valia de ameaças espirituais, como “você quer que
sua mãe morra?”, e outras mais terrenas, com capangas intimidando
quem ousasse se confrontar com ele por causa dos malfeitos.
Um estrangeiro que escreveu um email mencionando atividades criminosas
em Abadiânia conta ter ouvido do dono de uma pousada mancomunado
com o médium que um assassino de aluguel, nas cercanias, custava
só R$ 300. Fica esperto.
A série não se preocupa em dar muitas nuances a João.
É o monstro que estuprava filhas enquanto seus pais as aguardavam
no cômodo ao lado. Que culpava entidades que recebia pelos abusos.
Que ejaculava na mão de mulheres e dizia que seu sêmen
era ectoplasma e fazia parte do tratamento espiritual delas.
Por fim, resta o João presidiário, um velhote acuado
que, na cela, gritava quando se via no escuro, quando todas as luzes
eram apagadas. Para a revolta de suas acusadoras, ele acabou indo para
a prisão domiciliar na pandemia, o que levou a uma peculiar paridade
–todos, o condenado e suas vítimas, trancados em casa.
João dá um breve depoimento no fim da série. Não
há remorso ou mea culpa, só confiança de que sairia
dessa. A Justiça o mandou de volta ao presídio um dia
após a estreia da produção.
João de Deus - Cura e Crime
Onde Disponível na Netflix
Classificação 16 anos
Produção Brasil, 2021
Direção Mauricio Dias e Tatiana Villela