02/09/2021
'Elaborar um luto não é algo que
alguém possa fazer por você', diz Julian Barnes
Novo livro do escritor britânico encontra, na
Paris da belle époque, lições para o presente
Maria Fernanda Rodrigues, O Estado de S.Paulo
02 de setembro de 2021 | 05h00
Samuel Pozzi. É provável que você
também nunca tenha ouvido esse nome – a menos que conheça
bem a história da Medicina. Quando o escritor Julian Barnes foi
à National Portrait Gallery, em Londres, em 2015, para conferir
a exposição de John Singer Sargent (1856-1925), ele se
impressionou com um enorme retrato de um homem vestido de vermelho.
Chegou mais perto para ver de quem se tratava. Leu pela primeira vez
o nome de Pozzi (1846-1918) e guardou a apresentação:
“ginecologista e sedutor”. Achou aquilo um paradoxo.
Dias depois, leu uma crítica no jornal em que
a autora dizia que tinha corado ao ver aquele quadro na parede. E achou
interessante que mais de um século depois aquilo pudesse acontecer.
Passado mais de um ano, Barnes estava brincando com a ideia de escrever
ficções sobre médicos que morreram de forma trágica
e se deparou de novo com Pozzi, que teve um fim assim. O escritor descobriu
que ele foi uma grande figura na Paris do fim do século 19, amigo
de grandes escritores, amante da musa Sarah Bernhardt e presente em
momentos significativos da belle époque. Barnes, profundo conhecedor
do período, desconhecia as informações –
e isso o levou cada vez mais fundo em sua investigação,
que incluiu até a descoberta de uma visita ao Instituto Butantan,
em São Paulo, em 1910.
“Pozzi foi uma presença poderosa que não
deixou muitos rastros, e isso é muito interessante para um escritor.
Quanto mais eu lia, mais eu percebia que se tratava de um homem lúcido
vivendo tempos insanos. Um homem da ciência vivendo a belle époque,
um pioneiro, e alguém que dizia que o chauvinismo era uma das
piores formas de ignorância. Muito da sua atitude é oportuna
hoje, visto que o mundo está cada dia mais louco”, disse
Julian Barnes em rara entrevista, concedida por videochamada, ao Estadão.
Autor de obras consagradas como O Sentido de Um
Fim, vencedor do Booker Prize, e de Altos Voos e Quedas Livres,
que escreveu depois da morte da mulher, quando também se afastou
da vida pública, Julian Barnes é considerado um dos escritores
mais versáteis da literatura contemporânea e dono de um
dos textos mais elegantes – seja na sua ficção ou
em sua não ficção, que é o caso de O Homem
do Casaco Vermelho, a biografia de Jean Pozzi que ele lançou
em 2019 e que chega agora ao Brasil pela Rocco. Confira trechos da conversa
sobre o livro, que conta com personagens como Oscar Wilde e Alfred Dreyfus,
e sobre o mundo, a pandemia, memória e luto.
Este não é só um livro
sobre um médico, mas também sobre um outro tempo. Como
foi para o senhor passar um período na Paris da belle époque
enquanto a Inglaterra encarava o Brexit?
Nunca penso nos meus livros como uma fuga. Eles podem ser uma fuga
para os leitores. Eles são apenas o que quero fazer apaixonadamente
naquele momento específico. Mas enquanto investigava a história
e escrevia sobre Pozzi, eu fiz alguns paralelos com a nossa época
– ou um paralelo com o modo como devemos nos comportar no nosso
tempo. Ele era um verdadeiro cosmopolita, tinha amigos no mundo todo
e era um grande anglófilo. Nós, na Grã-Bretanha,
estávamos vivendo um daqueles períodos de ultraje moral
e social quando decidimos que não estaríamos com os outros
e que queríamos ficar na nossa própria ilha porque é
aqui que somos mais felizes. Isso, claro, é uma fantasia. Sempre
foi uma fantasia. Mas o desastroso Brexit aconteceu, e Pozzi foi alguém
que, apesar da tensão que havia entre França e Inglaterra
em sua época, manteve seus contatos na Inglaterra, na Alemanha,
viajou para a Argentina e para o Brasil. Ele foi um cosmopolita em uma
época em que os perigos do provincianismo político e nacional
estavam se tornando mais fortes.
O mundo era diferente no final do século 19 e em 2019,
quando o livro foi publicado. Como é para o senhor testemunhar
essa reviravolta que estamos vivendo?
É tudo muito alarmante. E é muito alarmante em muitos
aspectos. A Olimpíada estava acontecendo e pensamos “que
bom, posso ver os jogos por duas semanas e não pensar na situação
do mundo”. Mas os problemas do mundo não se resolvem enquanto
assistimos à Olimpíada. Eu não tenho filhos, mas
outro dia estava conversando com um amigo que disse que não tinha
ideia de como o mundo será para seus netos. Uma das crises mais
óbvias é a mudança climática, e uma vez
que você tenta entender isso e imaginar as consequências,
você compreende por que as pessoas estão achando que ela
não está acontecendo de verdade ou estão vendo
a Olimpíada. Esse é um lado da história, e a questão
política é outro efeito. Há sempre uma preocupação
maçante de que algum erro ou alguma decisão mal-intencionada
poderia se tornar uma catástrofe para o mundo. Já na Idade
Média havia pessoas que esperavam que o mundo fosse acabar e
que Deus as puniria, mataria ou as torturaria no inferno. Temos esses
momentos de esperança, como quando Trump não foi reeleito.
Mas depois vemos o número de votos que ele teve e é deprimente.
Esta é uma sociedade que está completamente dividida.
E tem também a ascensão de líderes populistas no
meu continente, e também no seu. Populismo e nacionalismo combinados
com anticiência, antivacina, mitos de eleições roubadas
e coisas desse nível não resulta numa boa mistura. Há
momentos em que todas as pessoas responsáveis pelo mundo parecem
iludidas. É aí que temos que pensar que também
há no mundo pessoas como o dr. Pozzi, que veem as coisas como
elas são. Devemos todos ser como Pozzi. Esse é o meu conselho.
Por que acha que ele foi esquecido, apesar do que fez pela
ciência e pela saúde da mulher?
Essa é uma das razões para eu ter escrito o livro. Eu
achava que essas pessoas deveriam ser lembradas e celebradas. Você
está na área científica, promove avanços,
faz o bem e então vem uma nova geração. A Ginecologia,
hoje, não é como nos tempos de Pozzi. As coisas vão
evoluindo e a menos que você seja extremamente famoso ou alguém
como Newton será provavelmente esquecido. Embora ele seja um
personagem extravagante, ele também era muito discreto. Ele foi
um senador, o primeiro professor de Ginecologia da França. Mas
também tinha algo meio secreto sobre ele. Ninguém com
quem eu conversei já tinha ouvido falar sobre ele e ele estava
em todo lugar em sua época. Uma pessoa perguntou se ele tinha
alguma coisa a ver com a poeta Catherine Pozzi. Ele foi esquecido e
sua filha é lembrada – lembrada porque teve um caso com
Paul Valéry.
O que mais aprendeu com seu personagem?
Uma das lições de Pozzi é que você deve
olhar ao redor do mundo e que, ao fazer isso, vai descobrir lugares
onde coisas podem ser feitas de um jeito melhor do que em seu país.
Essa é uma lição simples que todos nós,
cidadãos, devemos aprender. A Grã-Bretanha tem um histórico
de pensar que é uma nação moralmente superior.
Os Estados Unidos acham isso agora, assim como muitos outros países.
“Não há lugar nenhum como a casa da gente.”
Os países estão muito lentos na tarefa de reexaminar o
seu passado. A Grã-Bretanha, que sempre teve uma visão
muito rígida de sua história, está começando
a reexaminar esse passado, principalmente no que diz respeito ao seu
papel na escravidão, e acho que isso é um desses lampejos
de otimismo. Muito da riqueza do país veio do tráfico
de pessoas e é muito bom que estejamos percebendo isso agora.
Claro que o partido conservador e os tradicionalistas ficam dizendo
para pararem de diminuir a Grã-Bretanha, para pararem de minar
a nação, e que as coisas eram daquele jeito nos velhos
tempos e que agora são novos tempos. Não! Só teremos
novos tempos se investigarmos os velhos tempos. Sou um pessimista, mas
um pessimista que de vez em quando encontra razões para se animar.
O que interessa ao senhor explorar em sua obra? O que busca
ao escrever ficção ou não ficção?
Escrevo sobre o mundo como eu o vejo e sobre como ele era no passado.
Escrevo sobre amor, arte e história. Sobre política. E
escrevo isso nos dois gêneros. Eu não acho que meus interesses
quando faço ficção são necessariamente diferentes
quando faço não ficção.
A memória e o luto também são questões
importantes no seu trabalho.
Isso é verdade. Amor e luto, os dois lados de uma mesma coisa.
Escrevi sobre isso em Altos Voos e Quedas Livres, dois anos
depois que minha mulher morreu. E eu sempre me interessei pela memória
e quão confiável ela é, e em como ela muda. O efeito
do tempo na memória. O efeito da memória no tempo. Meu
irmão mais velho é filósofo e quando eu estava
escrevendo Nada a Temer, que era em parte sobre morte e em parte sobre
minha família, fiz muitas perguntas sobre fatos da nossa vida.
Ele me disse que se nossas respostas fossem diferentes, eu deveria ficar
com a minha resposta e falou: “você provavelmente acredita
mais em memória do que eu; para mim, a memória é
muito mais próxima da imaginação”. Eu tinha
uma ideia mais tradicional do que era a memória, algo como um
cofre, ou um lugar numa estação de trem onde você
deixa a sua bagagem e volta quando precisa de algo, abre com uma chave
e tira de lá. Agora, 13 anos depois dessa conversa, estou mais
convencido da falibilidade da memória e, como ele diz, acho que
ela é mais próxima de um ato de imaginação
do que de um registro factual.
Ainda sobre essa questão do luto. Vivemos uma época
de luto coletivo ao mesmo tempo que somos privados de nos despedir daqueles
que amamos e perderam a vida na pandemia. O que esta pandemia vai nos
deixar em termos de percepção e compreensão do
luto?
Não gosto de dar conselhos às pessoas, mas o que posso
dizer é que escrevi sobre minha experiência de luto –
e elaborar um luto não é algo que alguém possa
fazer por você. Você tem de fazer isso sozinho. E não
vai ter sucesso, mas vai conseguir dominar o luto encarando o luto e
sua verdade. Funciona. É um trabalho duro, e cansativo. E é
mais difícil quando a pessoa que morre não teve uma longa
doença ou não é muito velha. Isso é o que
é mais terrível com relação a essa pandemia:
o quão rápido tudo acontece e como parece completamente
aleatório – essa pessoa vai morrer e essa vai escapar.
A ideia e a imagem das pessoas que não podem estar junto de quem
amam no final é terrível. Isso torna tudo pior. E há
algo que ainda não encaramos, que é a covid longa. Pessoas
sentirão os efeitos por muito tempo ou pela vida toda, não
sabemos. Pessoas de 20 anos estão pegando, estão confinadas
em casa, sem energia, com cansaço mental, e não vão
se recuperar por muito tempo. Há um pesar por essas pessoas também
porque pode não haver uma saída para elas. Acreditamos
que só existe vida ou morte e não pensamos que há
uma morte contínua em vida.
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,elaborar-um-luto-nao-e-algo-que-alguem-possa-fazer-por-voce-diz-julian-barnes,70003828296
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