08/08/2021
Benjamin A. Cowan: O Brasil e a nova direita
Historiador norte-americano lança livro sobre o conservadorismo
religioso no século XX
Californiano de Los Angeles, nos Estados Unidos, Benjamin
A. Cowan não falava português e tampouco
nutria grande curiosidade científica pelo Brasil até conhecer,
em 2003, os arquivos da Escola Superior de Guerra (ESG). Na biblioteca
da instituição, localizada na fortaleza de São
João, no bairro da Urca, Rio de Janeiro, o historiador encontrou
publicações e documentos que aguçaram seu interesse
por temas como autoritarismo, radicalismo de direita, moralidade e sexualidade.
Fluente em espanhol, imediatamente passou a tentar decifrá-los.
Iniciava-se, ali, sua pesquisa sobre o Brasil, com ênfase na história
cultural e de gênero do pós-1964.
Cowan: entendimento sobre a constituição
da direita transnacional demanda estudos comparados
Arquivo pessoal
Quase 20 anos depois, Cowan acaba de publicar
seu segundo livro sobre o país, pela The University of North
Carolina Press. Com 304 páginas, Moral majorities across
the Americas: Brazil, the United States, and the creation of the religious
right historiciza a chamada nova direita como um fenômeno
de amplas raízes e essencialmente transnacional. Nesta entrevista,
concedida por vídeo, de sua casa nos Estados Unidos, o professor-associado
da Universidade da Califórnia em San Diego fala da importância
do Brasil como “lócus crítico” para a gestação
desse fenômeno.
“Para entender a direita moderna
é preciso incluir o Brasil como plataforma essencial ao desenvolvimento
da agenda cultural, moral e política que hoje temos como realidade”,
diz.
De onde vem seu interesse pelo
Brasil?
Meu interesse surgiu por acaso, quando iniciava uma pesquisa sobre a
violência das ditaduras militares chilena e argentina, e decorre
de descoberta, feita em 2003, de uma fonte de arquivos pouco explorada.
Soube, por um militar norte-americano, que os documentos da biblioteca
da ESG estavam acessíveis. Fiquei curioso. Viajei para o Brasil,
fui até a sede da escola, no Rio de Janeiro, e comecei a investigar
seu acervo. Só depois fui descobrir que a história do
Brasil e a do meu país, os Estados Unidos, tem muito em comum
em relação à ascendência dessa nova direita.
Posso dizer que a fortuna estava ao meu lado. O acesso a esse acervo
acabou sendo muito importante para minha trajetória acadêmica
e profissional. Eu havia acabado de ingressar no doutorado na Ucla [Universidade
da Califórnia de Los Angeles] e cheguei a morar um ano no país.
Pesquisei na EsAO [Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais], Eceme
[Escola de Comando e Estado-maior do Exército], no Arquivo do
Exército e na Biblioteca Nacional. Com uma câmera digital,
em três anos fiz cerca de 10 mil imagens de documentos. Desisti
de estudar a Argentina e o Chile e o Brasil virou objeto do meu doutorado.
O livro Securing sex: Morality
and repression in the making of Cold War Brazil, publicado em 2016,
é resultado dessa pesquisa. Qual a principal conclusão
de sua tese de doutorado?
É a de que um grupo de conservadores,
indivíduos e organizações, civis e militares, que
se encontraram em uma rede transnacional de ideias, desempenhou papel
central, e até então pouco conhecido, na execução
de um projeto cultural e reacionário, dentro do regime militar
brasileiro. No livro, tendo como pano de fundo a Guerra Fria, abordo
a relação entre conservadorismo, anticomunismo e assuntos
morais. Mostro que foram muito estreitas as relações entre
ativistas moralistas e a conceituação de anticomunismo
no Brasil, especialmente na época da ditadura [1964-1985]. Durante
a pesquisa ficou claro como uma série dessas ideias, originadas
na década de 1930, ganhou força no governo dos militares.
Mais especificamente, como ideias retrógradas se tornaram centrais
na concepção do pensamento militar. Isso explica parte
da perseguição ao comunismo naquele período. Estava
presente ali a ideia de guerra cultural, que via o comunismo como algo
que operava por meio da cultura, do sexo e dos costumes. Teóricos,
que designei de tecnocratas morais, médicos, advogados, políticos
e teólogos desempenharam diversos papéis, na sociedade
e no governo, e se uniram ao redor da ideia de que o comunismo estaria
ligado à luta mais antiga e mais eterna, entre o bem e o mal
– entendido e materializado em armas culturais, como a pornografia,
as drogas e até peças de roupa, como a minissaia.
O triunfo dos conservadores
tem a ver com sua cooperação com a ditadura e com
a ligação com grupos transnacionais, de outros países
Como se desenvolveu o trabalho
desse grupo de conservadores?
Antônio Carlos Pacheco e Silva [1898-1988], por exemplo, era psiquiatra
e desempenhou vários papéis no regime militar. O escritor
católico Gustavo Corção [1896-1978], conhecido
por seus artigos na grande imprensa, serviu em distintas comissões
oficiais, como o Conselho Federal da Cultura. Eles não eram a
“cara” da ditadura, mas influenciaram seus bastidores. Por
sua vez, o general Antônio Carlos da Silva Muricy [1906-2000],
que teve papel importante no golpe de Estado, liderou a campanha para
inserir esse moralismo anticomunista no centro da ideologia do regime.
Indivíduos como eles trabalharam, cada um a seu modo, para tornar
os centros de poder mais receptivos à noção de
que a Guerra Fria era uma luta cultural, a ser travada em “campos
de batalha” como o sexo, os costumes, a roupa, a aparência,
especialmente da juventude. Essa não foi uma peculiaridade do
Brasil, tais ideias circulavam no mundo Atlântico. A linguagem
do anticomunismo moral ou moralista foi parte de uma série de
táticas e operações para associar o inimigo, seja
o que ou quem fosse, a ameaças culturais. Constituiu uma tentativa
de racionalizar, de justificar a violência. Pânico moral
é um termo que nos ajuda a entender como essas ideias se tornaram
tão poderosas naquele momento. Mas o que descobri durante a minha
pesquisa foi que as pessoas que mais “ameaçaram”
o Estado brasileiro durante a ditadura não ligavam muito para
a revolução sexual. A suspeição de que havia
um vínculo direto entre a revolução sexual e a
esquerda não se confirmou exatamente. Durante a ditadura, a opção
do governo brasileiro pelo capitalismo deixou o campo cultural permeável
ao que acontecia no exterior. O regime acabou, em certa medida, adquirindo
a forma que os conservadores temiam. O exemplo mais forte, e talvez
mais ilustrativo, é a pornochanchada. Na biblioteca da ESG havia
documentos que mencionavam a pornochanchada como evidência de
que a pornografia era usada como arma pelos comunistas. Os detalhes
e a veemência das ideias me surpreenderam. Ocorre que a pornochanchada
foi financiada pelo governo, interessado em promover a indústria
cinematográfica nacional. Seus filmes mudaram a face do cinema
nacional.
De que forma isso ocorreu?
Isso vem do fato de que a ditadura, àquela altura, em meados
dos anos 1970, já era uma bagunça. Se no centro da ideologia
estava o anticomunismo moralista, na vida cotidiana era impossível
regular o sexo. Essas ideias fracassaram não apenas porque o
controle não era possível, mas porque a ditadura promovia
um modelo econômico e cultural que produzia exatamente o que se
tentava evitar. Em alguma medida, é possível afirmar que
o protestantismo de hoje foi determinado nessa guerra cultural da ditadura.
E esse é o tema de Moral majorities
across the Americas, que está sendo lançado agora?
Sim. Na essência, meu livro é uma história
do conservadorismo religioso no Brasil do século XX. Ele trata
de como chegamos à configuração atual de poder
dos evangélicos. À época da aproximação
dos evangélicos conservadores com a ditadura militar havia muita
esperança de um cristianismo renovado, não exatamente
de esquerda, mas engajado em questões de justiça social,
com a qualidade de vida das pessoas. Como essa visão de um futuro
cristão mais progressista fracassou? O que se sabe hoje é
que evangélicos e conservadores católicos brasileiros
estavam em uma rede de ideias que foi além das fronteiras nacionais
e acabaram sendo muito importantes na articulação de uma
direita no mundo. O fato mais interessante é que a maioria era
desconhecida. Nos Estados Unidos, por exemplo, havia Paul Weyrich [1942-2008],
fundador da Heritage Foundation. O próprio Plinio Corrêa
de Oliveira [1908-1995], da TFP [Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição,
Família e Propriedade], tinha uma visão transnacional.
Ele queria criar uma rede internacional da TFP e colaborou com Weyrich.
O arcebispo de Diamantina [MG] Geraldo de Proença Sigaud [1909-1999]
se tornou líder dos conservadores católicos, que estavam
chocados com as mudanças que viam na Igreja. Houve reação
em vários grupos ao que chamavam de “modernidade”,
entendida como as mudanças culturais, o ecumenismo e o comunismo.
No Brasil e no exterior, os conservadores protestantes também
se opunham à ideia de ecumenismo, considerada uma armadilha comunista
contra o conservadorismo teológico. No livro tentei identificar
denominações e percebi que essa luta se desenvolveu dentro
delas, inclusive. No contexto nacional, o triunfo dos conservadores
tem a ver com sua cooperação com a ditadura e com a ligação
com grupos transnacionais, de outros países. Eles construíram
uma plataforma composta por temas que, hoje, reconhecemos como a linha
mais central da direita cristã: a oposição ao aborto,
o apoio ao porte de armas, o neoconservadorismo que se tornou neoliberalismo
como resposta ao comunismo, compatível com a cristandade.
E como
isso chegou ao século XXI?
No livro argumento que o ressurgimento da direita deriva de uma história
de ativismo conservador que uniu brasileiros, norte-americanos, católicos,
protestantes, conservadores seculares, oportunistas autoritários,
entre outros. A semelhança entre o atual presidente do Brasil
e Donald Trump, por exemplo, vem do trabalho desenvolvido no passado
por ativistas brasileiros e norte-americanos que deliberadamente estabeleceram
uma pauta mais sobre temas identitários do que ideológicos.
O que a oposição ao aborto tem a ver com o porte de armas
e o tamanho do Estado, em relação a programas de bem-estar
social? Esses ativistas entenderam a importância da construção
de uma plataforma que apelaria a uma certa massa e por isso constituíram
esses vínculos. Minha pesquisa em arquivos religiosos, não
só do Brasil e dos Estados Unidos, mas também da Itália,
mostra o aborto como tema capaz de aglutinar muita gente. Em arquivos
da Casa Publicadora das Assembleias de Deus, encontrei uma menção
a Carl McIntire [1906-2002], um pastor radicalmente conservador, que
não havia recebido muita atenção da historiografia,
mas que foi muito importante no desenvolvimento da direita radical nos
Estados Unidos. Ao pesquisar no Princeton Theological Seminary,
onde estão seus arquivos, acabei descobrindo que McIntire cooperou
com evangélicos no Brasil. Ele começou tentando construir
uma associação de igrejas evangélicas conservadoras
nos anos 1950. Em resposta à modernidade teológica e ao
ecumenismo, com o International Council of Christian Churches
[ICCC], McIntire buscou estruturar uma rede global de instituições
e espaços em que conservadores evangélicos pudessem se
reunir, trocar ideias e influenciar políticas culturais. No Brasil,
onde esteve algumas vezes e para onde enviou missionários, encontrou
terreno fértil. Organizou e realizou, com a participação
de ativistas brasileiros, conferências em várias partes
do mundo. O reverendo Israel Gueiros foi um de seus interlocutores.
Os dois colaboraram por décadas, combinando anticomunismo ferrenho
com reacionarismo cultural, sempre com um enfoque em defesa do capitalismo
desregulamentado.
Instituições e
ativistas brasileiros foram essenciais para tornar possível
o ressurgimento da direita ao criarem organizações
e nutrirem alianças
Foram
bem-sucedidos?
Acho que nem eles acreditavam quão sucesso
teriam. O objetivo era articular, com integrantes de outras denominações
e de outros países, uma série de assuntos sobre os quais
todos concordassem que deveriam ser defendidos. Para eles não
se podia separar o poder político do poder religioso. Antes dos
anos 1960, a orientação da maioria das igrejas evangélicas
era a de não entrar nas doutrinas do mundo. O enfoque era o da
vida espiritual. Eles não queriam as coisas de César,
queriam as coisas de Deus. O que muda é a vontade crescente dos
evangélicos de tomar para si uma área da vida pública,
apresentada como manifestação política de sentimentos
e doutrinas religiosas. Eles estavam preocupados em defender os valores
religiosos, mas me parece que, naquele momento, para eles não
era possível distinguir o que estava acontecendo na política
do que acontecia na cultura e na economia. Um dos grandes logros foi
conectar isso tudo com a identidade religiosa. Conseguiram vincular
a noção de guardiões da tradição
religiosa com uma série de iniciativas que não eram e
não são exatamente religiosas. Em oposição
ao Estado e ao igualitarismo, esses ativistas ajudaram a tornar não
só lícito, mas necessário, o engajamento dos cristãos.
Não há como explicar a semelhança entre o atual
presidente do Brasil e Trump, ou o surgimento do populismo de direita
nos Estados Unidos, só com o que acontece dentro dos Estados
Unidos ou a partir de um conceito nacional. Sustento que essas histórias
devem ser pensadas em termos transnacionais.
Outros
países também participaram da construção
dessa direita transnacional?
O Brasil teve um papel muito importante, que começou
há quase um século. Instituições e ativistas
brasileiros foram essenciais para tornar possível o ressurgimento
da direita ao criarem organizações e nutrirem alianças
que facilitaram a construção do atual conservadorismo
cristão transnacional – talvez o mais influente fenômeno
político e cultural da atualidade. Mas sei que outros países
também participaram dessa construção. Por um longo
tempo, estudos sobre movimentos de direita davam como certos seus limites
dentro do Estado-nação. Há que se considerar, no
entanto, os vínculos com outros países. A maioria de nós
é treinada em estudos nacionais, mas é preciso investigar
países sobre os quais pouco se sabe nessa temática. Se
fosse para indicar um próximo destino de pesquisa, seria algum
país da Ásia, a Coreia ou China. A World Anticommunist
League [WACL], Liga Anticomunista, por exemplo, teve atuação
na Ásia. Parece fundamental compreender os esforços de
estabelecimento de vínculos com igrejas daquela região.
Fonte: Revista Pequisa
FAPESP - Edição 305 _ Julho 2021
- https://revistapesquisa.fapesp.br/benjamin-a-cowan-o-brasil-e-a-nova-direita/
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