“Esmaguei sob os pés os dogmas da crença e da descrença.”
J. Herculano Pires
(Canto do Homem Novo – Pedagogia Espírita)
(1) José Herculano Pires (1914-1979),
filósofo, jornalista, escritor paulista,
escreveu mais de 80 obras filosóficas, literárias,
espíritas, promovendo um diálogo fecundo entre o
espiritismo e o pensamento contemporâneo.
Dora Incontri
- apresentação
RESUMO
Segundo o educador polonês Przemyslaw Pawel Grzybowski “Uma
das poucas pedagogias alternativas que tratam diretamente da morte e
suas circunstâncias é a pedagogia espírita.”
Isso está enraizado na história da Pedagogia Espírita,
pois o criador deste termo, José Herculano Pires, é também
pioneiro da Educação para a morte no Brasil. Mas também
do ponto de vista teórico a Tanatologia (ciência nova interdisciplinar)
e a Pedagogia Espírita têm pontos de tangência e
intersecções importantes, que são analisados neste
artigo.
Introdução
Não é mera coincidência que o criador do termo Pedagogia
Espírita tenha sido o pioneiro da Educação para
a Morte no Brasil: José Herculano Pires (1)
(1914-1979). Na mesma década de 70, em que Herculano lançou
a revista Educação Espírita (1970-1974), onde publicou
artigos defendendo a idéia de uma Pedagogia Espírita (que
depois se tornou o título do livro que reúne a maior parte
das publicações daquela extinta Revista), escrevia a obra
Educação para a morte – publicada cinco anos depois
de sua morte, 1984. Este livro foi o primeiro a ser lançado no
Brasil sobre o tema, quando o movimento da Tanatologia avançava
já havia alguns anos nos Estados Unidos e na Europa. (ver SANTOS,
2007: 292) O educador polonês Przemyslaw Pawel Grzybowski (2009)
em artigo publicado recentemente na Polônia, reconhece que:
Uma das poucas pedagogias alternativas
que trata diretamente da morte e suas circunstâncias é
a pedagogia espírita. Suas proposições foram
compiladas no Brasil, sobre a base de uma filosofia social, derivada
dos conceitos filosóficos de Allan Kardec.
A ligação histórica
se confirmou nos últimos anos, pois oI
Curso de Tanatologia, Educação para a Morte – uma
abordagem plural e interdisciplinarrealizado
na Faculdade de Medicina da USP (2007) (e agora já em terceira
edição), coordenado pelo Prof. Dr. Franklin Santana Santos,
nasceu a partir do 2º Congresso Brasileiro de Pedagogia
Espírita (2006), fazendo migrar para a Tanatologia na
Universidade alguns princípios presentes na Pedagogia Espírita,
entre os quais, como veremos, a própria abordagem plural e interdisciplinar,
além da abertura para a pesquisa científica sobre a sobrevivência
da alma.
Justamente quais os liames teóricos e práticos que há
entre esses dois temas abrangentes, serão objeto do presente
artigo. É preciso, porém, antes de tudo clarear conceitos
e contextualizar idéias. A Tanatologia como ciência é
algo relativamente novo no mundo (cerca de 40 anos, se contarmos a partir
da publicação do clássico Sobre a Morte e o
Morrer de Elizabeth Kübler-Ross em 1969) e é uma ciência
de natureza interdisciplinar, que nasceu obviamente sem nenhuma relação
com a Pedagogia Espírita, movimento este iniciado no Brasil.
Apesar disso, vale ressaltar que apesar de não ter nenhuma ligação
com o Espiritismo, Kübler-Ross, em sua trajetória, chega
a idéias muito próximas às espíritas.
No livro (que foi tese de doutorado na USP) Pedagogia Espírita
- um projeto brasileiro e suas raízes(INCONTRI,
2004 e 2006), está traçado o histórico e a origem
da Pedagogia Espírita, cujas idéias remontam a Sócrates
e Platão, passando por Jan Amos Comenius, Jean-Jacques Rousseau
e Johann Heinrich Pestalozzi (que foram respectivamente o bisavô,
o avô e o pai espiritual de Kardec), mas cujos postulados, práticas
e propostas aparecem pela primeira vez na cultura brasileira, já
no início do século XX com Eurípedes Barsanulfo (2)
e Anália Franco (3) e depois
na segunda metade, com J.Herculano Pires, Ney Lobo (4),
Vinicius (Pedro de Camargo) (5) e Tomás
Novelino (6). (2) Eurípedes Barsanulfo (1880-1918),
educador mineiro, criador do primeiro colégio espírita,
no Brasil, Colégio Allan Kardec, com metodologia de ensino avançadíssima
para a época. A respeito de sua atuação testemunhou
o educador português José Pacheco, em entrevista concedida
à UOL (30/06/2009): “Há 102 anos, em 1907, o Brasil
teve aquilo que eu considero o projeto educacional mais avançado
do século 20. Se eu perguntar a cem educadores brasileiros, 99
não conhecem. Era em Sacramento, Minas Gerais, mas agora já
não existe. O autor foi Eurípedes Barsanulfo, que morreu
em 1918 com a gripe espanhola. Este foi, para mim, o projeto mais arrojado
do século 20, no mundo.”
(http://educacao.uol.com.br/ultnot/2009/06/30/ult105u8320.jhtm)
Ver mais a respeito em BIGHETO, Alessandro Cesar. Eurípedes
Barsanulfo, um educador de vanguarda na Primeira República.
Bragança Paulista: Editora Comenius, 2006. (3) Anália Franco (1853-1919) educadora,
feminista, espírita. Atuou como abolicionista, republicana e
depois como professora e fundadora de inúmeros abrigos para mulheres
e crianças. Ver mais na dissertação: CORREA, Samantha
Lote. Anália Franco e sua ação sócio-educacional
na transição do Império para a República.
Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 2009.
(4) Ney Lobo (1919-) é um educador
paranaense, militar, formado em filosofia, que teve uma experiência
altamente original entre os anos 60 e 70, no Instituto Lins de Vasconcellos,
onde construiu a Cidade Mirim, que os alunos geriam, elegendo o prefeito.
Escreveu diversas obras teóricas sobre a Pedagogia Espírita.
Entre elas, Filosofia Espírita da Educação. (LOBO,
1990)
(5) Pedro de Camargo (Vinicius) (1878-1966),
educador e escritor paulista, escreveu diversas obras, fazendo uma leitura
pedagógica do cristianismo e do espiritismo e fundou ao lado
de J.Herculano Pires e outros, o Instituto Espírita de Educação
e depois a Escola Espírita Hilário Ribeiro.
(6) Tomás Novelino (1901-2000),
médico, educador, espírita, foi discípulo de Anália
Franco e de Eurípedes Barsanulfo. Fundou em Franca o Educandário
Pestalozzi.
Embora os dois movimentos sejam nacional e internacionalmente independentes,
eles se tangenciam de maneira histórica e teórica. E mais,
se considerarmos a Pedagogia Espírita, como queria Herculano,
uma teoria geral de educação, baseada na cosmovisão
espírita, então teremos que a idéia da Educação
para a morte está contida de maneira essencial na proposta pedagógica
espírita, que lida necessariamente com a transcendência
humana.
Assim define Herculano:
A Educação para a morte
não é nenhuma forma de preparação religiosa
para a conquista do Céu. É um processo educacional que
tende a ajustar os educandos à realidade da Vida, que não
consiste apenas no viver, mas também no existir e no transcender.
(PIRES, 2004:23)
Esta definição se ajusta
muito bem à própria Pedagogia Espírita. Ou seja,
podemos afirmar que a Pedagogia Espírita é uma proposta
de educação para a morte.
É verdade que nem todas as propostas de educação
para a morte são necessariamente transcendentalistas, mas se
quiserem ser honestamente plurais, como veremos adiante, devem pelo
menos abrir uma porta para a possibilidade da sobrevivência da
alma.
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