Este trabalho é uma síntese da dissertação
intitulada Anália Franco e sua ação sócio-educacional
na transição do Império para República (1868-1919)
(1) que teve como objetivo um estudo histórico-biográfico
sobre Anália Franco.
Anália Franco (1853-1919) foi
uma educadora brasileira assinalada por uma convicta preocupação
social e com posicionamentos políticos em um período em
que a mulher tinha pouco espaço na vida pública.
Após a Lei do Ventre Livre (1871),
começa sua atividade sócio-educacional com crianças
negras abandonadas. Em 1901, Anália fundou a Associação
Feminina Beneficente e Instrutiva de São Paulo que criou escolas
maternais, creches, liceus, oficinas profissionalizantes e asilos na
capital paulista e em outras cidades do estado. Sua atividade estava
voltada para a mulher trabalhadora, pobre ou marginalizada pela sociedade,
bem como para suas crianças e órfãos. Esta pesquisa
envolveu o contato direto com fontes primárias produzidas pela
educadora, que para melhor compreensão foram contextualizadas
no Brasil da transição do século XIX para o XX,
evidenciando a importância de Anália Franco para a história
da educação nacional.
(1) Dissertação defendida na Faculdade
de Educação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas),
em junho de 2009, pelo Departamento de Filosofia e História da
Educação.
ANÁLIA FRANCO E SUA AÇÃO
SÓCIO-EDUCACIONAL NA TRANSIÇÃO DO SÉCULO
XIX PARA O SÉCULO XX
Na segunda metade do século XIX, algumas tímidas
mudanças acontecem nas estruturas econômicas e sociais
do Brasil. O primeiro é o fim do tráfico de escravos,
em 1850 (2) , pequeno passo em direção
ao fim da escravidão, e o segundo é o início da
construção da rede ferroviária em 1852, que permite
a melhor circulação de mercadorias, episódios que
fizeram dos anos de 1850, uma década propícia para o início
do desenvolvimento do mercado interno brasileiro.
(2) Em 1851 a liberdade dos nascituros dos escravos e a proibição
da separação dos cônjuges escravos já era
discutida. Silva Guimarães, como deputado, fez essa proposta
na Câmara, apoiado por outro deputado, Silveira Mota, que também
fez propostas em favor do escravo. As propostas foram negadas. (Cf.
COSTA, 2008, pp. 39 e 40)
Nesta mesma década de 1850, Anália Franco nasceu em Resende,
na Província do Rio de Janeiro, mais precisamente em 1853. Consta
nos livros de assentamentos da Igreja Matriz de Resende o batistério
da educadora datado de 29 de março de 1853.
Anália nasceu no período imperial, numa sociedade conservadora,
patriarcal, monárquica, que de forma geral defendia a escravidão
e tinha como única religião aceita o catolicismo. O nascimento
de Anália Franco ocorre no momento dos primeiros indícios
de melhoramento urbano, do aperfeiçoamento do sistema de transporte,
na ocasião da crescente demanda de café exigida pelo mercado
internacional e no rompimento da estreita auto-suficiência do
latifúndio. (Cf. COSTA, 1999, p.252).
Nesse contexto imperial o ensino elementar permaneceu, de modo geral,
como tarefa da família e, muitas vezes, era realizado na própria
casa das camadas privilegiadas por preceptores contratados. Diante desse
cenário, a difusão de escolas de primeiras letras fica
praticamente estagnada. O ensino secundário foi desenvolvido
principalmente por iniciativa particular e o aparecimento de escolas
normais foi restrito, com irregulares investimentos. O ensino superior
era controlado pelo governo e exigia exames preparatórios.
O cenário da educação no Brasil Império
pode ser caracterizado pela não obrigação de oferecer
educação popular e medidas efetivas que possibilitassem
a instrução primária a todos os cidadãos,
reforçando os privilégios daqueles detentores de poder
aquisitivo.
Em relação à formação de professores,
A Reforma Couto Ferraz adotou a formação de professores
por meio de professores adjuntos, ou seja, os professores se formavam
na prática, atuando como professores auxiliares de outros professores
públicos. Porém a proposta de professores adjuntos de
Couto Ferraz não interrompeu a criação de Escolas
Normais e até a Escola Normal de Niterói, que ele fechou
em 1849, foi reaberta em 1859. (Cf. SAVIANI, 2007)
Foi deste modo que a professora Anália Franco passou a exercer
sua profissão, iniciando como auxiliar de sua mãe. Em
1868 Anália era professora auxiliar de sua mãe em colégios
da Província de São Paulo, mesmo ano em que é assinado
o Manifesto Liberal, com o qual começa um movimento marcante
no final do Império que reivindica a liberdade do trabalho, do
voto e da consciência. Bosi (2005) usa o termo “divisor
de águas” para 1868, enquanto Holanda (2005) afirma que
a partir desse ano é que a monarquia entra em crise e o cenário
político começa com suas primeiras transformações
em direção à República.
É nesse cenário brasileiro de 1868 que Anália Franco
inicia seu magistério, aos quinze anos de idade, e assim começa
a conviver com novas idéias e partilhar de convicções
de sua época, como a crença na educação.
Nota-se na base do pensamento de Anália Franco algumas dessas
crenças de inspiração liberal que entravam no país.
A crença no poder da educação para todos como uma
forma de progresso para o Brasil, a abolição da escravidão
e a libertação da mulher do jugo patriarcal da sociedade
são os temas mais constantes em sua obra. No caso da libertação
da mulher, diminuindo a importância de seu papel de esposa e mãe
na maior parte de seus escritos, enquanto Anália deixa claro
que a mulher deveria ser independente para escolher sua trajetória
de vida.
A partir da Lei do Ventre Livre de 1871, que, declarou livres todos
os nascituros de escravos, é que Anália demonstra seu
propósito de atividade social. Preocupada com as crianças
abandonadas pelas fazendas, que, por não serem mais comercializáveis,
viviam a mendigar, acolhe alguns destes abandonados e muda com eles
para uma cidade do interior de São Paulo, Jacareí (3),
onde com recursos próprios de sua atuação profissional
aluga uma casa e passa a residir com seus “alunos sem mães”,
fundando sua primeira “Escola Maternal”. (3) Encontramos a indicação
da cidade de Jacareí como o local onde se estabelece Anália
Franco em artigo do jornal A Província da São Paulo no
dia 29 de dezembro de 1877, que, ao citar o exame prestado pela educadora,
refere-se a ela como professora pública da cadeira do sexo feminino
em Jacareí.
De acordo com Monteiro (2004), em 1872, Anália é aprovada
em Concurso da Câmara da Província de São Paulo
e oficializa seu trabalho como auxiliar de sua mãe, cargo que
não assume na capital, mas transfere para o interior com a finalidade
de levar adiante seu projeto de “Escola Maternal”.
A princípio, afirma Kishimoto (1988), Anália consegue
que a proprietária de uma casa a isentasse do aluguel para tal
empreendimento, mas impondo como condicional que não houvesse
“promiscuidade” entre crianças brancas e negras.
Anália recusou a gratuidade e passou a pagar o aluguel de uma
outra residência com seu salário, por isso muitas vezes
faltava dinheiro para alimentação e o grupo da escola
maternal saía às ruas solicitando ajuda.
O comportamento de uma mulher solteira que recolhe crianças negras
abandonadas e com elas estabelece uma relação de afeto
com finalidade educativa durante o período imperial escravocrata,
de tradições masculinas, incomodou a sociedade e foi cogitada
a expulsão de Anália da cidade, até que um grupo (4)
interveio no caso.
(4) Durante a década de 1870 a abolição da escravidão
ganhava adeptos pelo país, porém na década seguinte
grupos organizados surgem com a finalidade de proteger o negro, como
os caifazes organizados por Antônio Bento. Estando no final da
década de 1870 poderia esse grupo ser o primórdio da formação
dos caifazes. “Os caifazes operavam tanto em São Paulo
quanto no interior das províncias instigando os escravos a fugir,
fornecendo-lhes meio; protegendo-os durante a fuga. Retiravam-nos das
fazendas onde vivam, para empregá- los em outras como assalariados.
Encaminhavam-nos para pontos seguros onde poderiam escapar à
perseguição de seus senhores”.
(COSTA, 2008, p112)
A intervenção de um grupo abolicionista republicano em
favor de Anália e de sua escola maternal no interior da Província
de São Paulo pode ter dado ensejo à idéia de a
educadora fazer parte do Partido Republicano. Sobre tal participação
não encontramos fontes que a evidenciem, embora seja possível
relacionar escritos da educadora com a proposta educacional do PRP.
Sem qualquer documento que coloque Anália em contato direto com
o Partido Republicano ou suas vertentes, limitamo-nos a afirmar que,
por acolher crianças negras ainda em período escravocrata,
a educadora foi abolicionista. Lembramos, porém, que o abolicionismo
era ponto de discórdia dentro do próprio Partido Republicano,
uma vez que nem todos os republicanos se afirmavam também abolicionistas.
Em 1875 acontece a reabertura da Escola Normal de São Paulo e
Anália se matricula, em 1877, no curso que tinha duração
de dois anos. É interessante observar que ao se matricular no
curso da Escola Normal não deveria Anália almejar o cargo
de professora pública, pois essa profissão já lhe
cabia.
Em manuscrito da Escola Normal de 4 de julho de 1877, assinado pelo
representante da Secretaria da Inspetoria Geral da Instrução
Pública de São Paulo, encontramos o nome da aluna Anália
Franco na:
Relação de empregados
e alunos-mestres que recebem vencimentos com o nº de faltas que
deram até 30 de junho (p.p.) [...] d. Anália Emília
Franco 4 faltas abonadas. (Fonte: Arquivo do Estado de São Paulo)
Embora Anália Franco tenha freqüentado como aluna-mestra
a Escola Normal de São Paulo, não encontramos fontes que
atestem o fato de ter sido diplomada pela mesma instituição,
mesmo constatando que obras sobre a educadora asseverem tal diplomação.
Sobre a Escola Normal de São Paulo, o que sabemos é que
ela em 1878 passa por dificuldades financeiras e é fechada. Conforme
Monarcha (1999), a Escola Normal de São Paulo não possuía
uma dotação explícita na lei do orçamento
provincial e entre os anos de 1875 e 1877 sobreviveu com uma verba eventual,
por isso, através do ato de 9 de maio de 1878, manda-se fechar
a escola, que encerra suas atividades no dia 30 de junho do mesmo ano.
E como ficou a situação daqueles alunos que não
tiveram a chance de se tornarem normalistas pelo fechamento da Escola
Normal? Em agosto de 1880, a Escola Normal volta às suas atividades
e aqueles que não puderam concluir seus estudos e foram aprovados
nos exames do primeiro ano em 1877 puderam retornar à instituição
para se diplomarem.
No livro Um retrospecto, de João Lourenço Rodrigues,
encontrado na Faculdade de Educação da USP, vimos que
o nome de Anália não constava entre aqueles que voltaram
para Escola Normal a fim de terminar o curso. Em uma nota de rodapé,
entretanto, encontramos a seguinte informação:
Em razão do fechamento não puderam concluir
o curso a terceira turma de alunos e a segunda turma de alunas, que
deviam ser diplomados em 1878. Por uma lei posterior (Lei nº
888 de 6 de outubro de 1903) esses alunos foram equiparados aos normalistas
de extinta Escola, mas a lei só aproveitou os alunos-mestres
que vieram a exercer o magistério nas escolas isoladas ou grupos
do Estado. (RODRIGUES, 1930, p.103)
Mesmo não possuindo a diplomação
de normalista, Anália, que havia sido aluna- mestra da Escola
Normal de São Paulo, é beneficiada pela Lei nº888
de 6 de dezembro de 1903 sendo equiparada a normalista. É provável
que essa equiparação tenha permitido tantas afirmações
sobre a titulação de Anália Franco, mas em nossa
pesquisa encontramos a evidência de equiparação
e não de conclusão do curso.
No final da década de 1870, verifica-se que a base do Decreto
de 18 de abril de 1879, ou Reforma Leôncio de Carvalho, dispunha
sobre o ensino livre primário e secundário no município
da Corte e superior em todo o Império, desde que garantidas as
condições morais e de higiene. Moralidade e higiene estão
relacionadas ao higienismo, que teve destaque no ideário pedagógico
brasileiro do Segundo Império e Primeira República (Cf.
SAVIANI, 2007, 136).
A Reforma Leôncio de Carvalho conserva a obrigatoriedade de ensino
da Reforma Couto Ferraz, mas em contrapartida regulamenta o funcionamento
das Escolas Normais para a formação docente e prevê
a criação de jardins de infância para crianças.
A organização pedagógica da Reforma Leôncio
de Carvalho estava estruturada no método de ensino intuitivo
ou lições de coisas. Tal método foi criado para
sanar a ineficiência do ensino e tinha o suporte de um difundido
material didático.
Segundo o método intuitivo,
“o ensino deve partir de uma percepção sensível.
O princípio da intuição exige o oferecimento
de dados sensíveis à observação e à
percepção do aluno. Desenvolvem-se, então, todos
os processos de ilustração com objetos, animais ou suas
figuras” (REIS FILHO, 1995, p. 68)
A atividade educacional de Anália
Franco também esteve relacionada com a proposta de organização
pedagógica da Reforma Leôncio de Carvalho, já que
em seus escritos encontram-se referências ao método intuitivo,
utilizando a percepção, a defesa da liberdade de culto,
o ensino livre e a propagação de jardins da infância
– prática já realizada anteriormente por Anália
Franco.
Em quinze de novembro de 1889 um golpe, sem a participação
popular, instaura a República no Brasil. De acordo com Carvalho
(1987) um dos problemas da República brasileira foi justamente
a falta de participação popular no processo de proclamação,
que interferiu diretamente na natureza de nossa vida política
e em como vemos a prática de cidadania.
Aristides Lobo afirmou, em 1889, que o povo assistiu bestializado à
Proclamação da República; outros escritores da
época registraram a ausência da participação
popular nesse mesmo sentido e reclamavam da falta de iniciativa e de
associação para a reivindicação de participação
popular na República.
Por outro lado, o que acontecia era a não-organização
do povo nos moldes europeus de cidadania, não existiam mecanismos
oficiais para assegurar a participação popular nos acontecimentos
políticos (Cf. CARVALHO, 1987).
Isso não significa que reivindicações populares
não tenham existido nos primeiros anos republicanos.
Anália Franco dentro deste contexto não se manteve indiferente,
ao contrário, sua participação em revistas femininas
da época, e posteriormente em sua própria revista, era
uma forma de se posicionar e de reivindicar na sociedade os direitos
do povo e também a igualdade da mulher. Anália Franco
contribuiu com revistas como A Família, A Mensageira
e O Eco das Damas, antes de fundar sua própria
revista – Álbum das meninas.
O posicionamento de Anália Franco em seus textos também
era uma forma de protesto, embora pacífico, contra a nova ordem
estabelecida. Não se pode estabelecer comparação
com as revoltas do período, mas pode-se observar que a educadora
não se contentara com o desenvolvimento da República.
O momento ainda é de problemas socioeconômicos. Com a abolição
da escravidão, uma grande quantidade de mão-de-obra é
lançada no mercado nacional. Mão-de-obra essa que, ao
invés de ser contratada para desempenhar trabalho assalariado,
foi substituída por imigrantes europeus, tendo que se contentar
com o desemprego ou com o subemprego. A falsa idéia de convivência
pacífica entre descendentes de europeus já estabelecidos
no Brasil e descendentes de africanos fica insustentável com
o imigrantismo. Havia por trás da idéia de imigração
o desejo de branqueamento do Brasil.
Até o Decreto nº7247 de 18 de abril de 1879, ou Reforma
Leôncio de Carvalho, os escravos eram proibidos de freqüentar
as escolas, mas o fim da proibição legal não significou
a concretização dessa possibilidade de cursar os poucos
espaços escolares. O país escravocrata não se preocupava
em oferecer instrução aos pobres e muito menos aos escravos.
Nesse quesito, Anália Franco estava à frente de seu tempo,
uma vez que a preocupação com a criança negra acompanha
sua trajetória de educadora.
Em 1871 já há, em Anália Franco, a preocupação
com o escravo e seus descendentes e é essa preocupação
que marca o início de sua atividade social. A fundação
da primeira casa maternal de Anália Franco que acolheu nascituros
de escravos não pode ser vista como um ato isolado, afinal [...]
associações abolicionistas promoviam quermesses, leilões
de prendas e outras atividades similares, arrecadando fundos para emancipação.
(COSTA, 2008, p.63) O que chama atenção é o fato
de, nesse primeiro momento (5), Anália
assumir sozinha, sem qualquer vínculo com alguma instituição,
a responsabilidade da educação dessas crianças.
(5) Nesse primeiro momento porque surge um grupo
que apóia Anália Franco quando sua expulsão da
cidade interiorana era cogitada. Sobre a continuidade dessa primeira
casa maternal há uma lacuna, não conseguimos fontes que
evidenciem essa continuidade, embora fique subentendido que o grupo
abolicionista que a defende continue a obra iniciada.
Os abolicionistas não eram bem vistos pela sociedade e por isso
recebiam o título de “comunistas” e de agitadores
que punham em risco a segurança pública. Para desmobilizar
o movimento, proprietários de escravos acusavam a organização
de artificial, sem raízes na opinião pública, além
de prematura a emancipação dos escravos
(Cf. COSTA, 1999, p.332).
Depois da abolição, o ex-escravo continuou excluído
enquanto foi esquecido e relegado à própria sorte. De
acordo com Costa (2008, p.134) poucos abolicionistas, como o engenheiro
negro André Rebouças, é que viam sua tarefa como
incompleta com a abolição decretada, porém a proposta
de reforma agrária, que completaria o processo, sugestionada
por Rebouças esbarrou na indiferença das autoridades (Idem,
ibidem, p.138).
Florestan Fernandes (1964) ao analisar a situação do negro
após a abolição, afirma que a sociedade brasileira
o deixou relegado ao seu próprio destino e com a responsabilidade
de se reeducar para atender os novos padrões ideais para o homem
que vive do trabalho livre, do regime republicano e do capitalismo.
São situações histórico- sociais que contribuíram
para a segregação do negro.
Para Anália Franco a defesa de igualdade étnica não
foi o único preconceito enfrentado, essa mesma sociedade também
era patriarcal e Anália posiciona-se contrária à
manutenção do patriarcalismo, discutindo mudanças
sociais em um período em que a mulher não tinha voz ativa
na sociedade.
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