Manuais e artigos da história da medicina
e da fisiologia descrevem Claude Bernard lutando contra as teorias vitalistas
para estabelecer um radical monismo físico- químico no
estabelecimento da medicina experimental. Essa descrição
tornou-se um senso comum e estabelece o materialismo como sendo um paradigma
científico estabelecido pela superação de um fluidismo
sobrenatural pré-científico. Entretanto, não se
encontram no século 19 cientistas puramente mecanicistas ou vitalistas.
Em verdade, as hipóteses animistas, vitalistas e monistas se
sucederam em diversas fases nos últimos três séculos
para definir o fenômeno vital. Este artigo vai demonstrar como
a simplificação historiográfica do contexto e do
papel de Claude Bernard quando da publicação da revolucionária
obra “Introdução à medicina experimental”
impede o reconhecimento de sua teoria neovitalista, caracterizada por
uma força vital organizadora e mantenedora da vida, enquanto
as funções e fenômenos fisiológicos respeitariam
um determinismo físico-químico complementar.
1. Introdução
Milhões de cientistas em todo o mundo associam-se
em grupos coesos dedicando suas vidas à compreensão das
leis naturais. A divisão de tarefas, inspiração
positivista, marcou a evolução industrial nos últimos
séculos e também inspirou a especialização
na ciência. Duas grandes frentes de pesquisa conquistaram para
a humanidade em uma década mais do que milênios de questionamento:
as neurociências, estudo multidisciplinar do cérebro e
a física moderna na busca do significado fundamental da matéria.
Surpreendentemente, os dois grupos chegaram a conclusões absolutamente
opostas. A física moderna registra evidências que apontam
para a necessária presença de uma consciência para
dar às partículas da matéria condição
de observação. Ou seja, é o observador, enfim,
quem dá condições para o “colapsar”
da nuvem de possibilidades da partícula, tornando a sua manifestação
perceptível. Por outro lado, a maioria dos neurocientistas considera
a consciência apenas um produto virtual que surge do funcionamento
encefálico, principalmente nos sistemas da área cortical
pré-frontal. O diálogo elétrico e químico
das sinapses cria a consciência que não passa de uma realidade
virtual, sem existência física.
Para o atual paradigma da física, o estudo iniciado por Newton,
que considerava as partículas como esferas sólidas que
davam à matéria sua ponderabilidade, foi substituído
por uma realidade mais complexa do microcosmo, onde as leis da natureza
desafiam o senso comum. No século 19, imaginava-se que seria
possível prever qualquer ato, bastando medir e registrar o movimento
de cada partícula do Universo. A partir das espantosas descobertas
da física quântica, porém, não há
uma realidade palpável das partículas como se imaginava,
mas um campo de possibilidades que vai ao infinito.
Apesar desse novo paradigma científico da Física ter causado
uma nova visão de mundo, entre os pesquisadores que estudam o
ser humano, como psicologia, neurociências, psicanálise,
sociologia, há uma hegemonia em se considerar a consciência
como produto virtual do cérebro, tese corroborada pela Física
no século 19, quando as partículas eram imaginadas como
esferas sólidas. A física moderna tirou o chão
dessa hipótese, mas as ciências humanas e biológicas,
blindadas em pressupostos materialistas, teimam em se manter no ar,
lutando contra a lei da gravidade.
Mas nem sempre foi assim.
2. Animismo, vitalismo e unicismo
No fim do século 19 e início do 20,
quando Einstein especulava novos caminhos para a Física, fisiologistas
e médicos consideravam diversas hipóteses para explicar
o fenômeno da vida. Por milênios o homem discutiu as três
esferas da realidade, sejam a matéria, a vida e o pensamento.
Foi no século passado que o materialismo tornou-se dogma hegemônico
para as ciências. Até então, havia a liberdade de
escolha dos pressupostos filosóficos adotados pelos pesquisadores
acadêmicos, de acordo com suas convicções. Para
explicar o pensamento, podia-se adotar a tese materialista (Virchow,
Buchner, Helmholtz) como também espiritualista (Flammarion, Paul
Janet, Charles Richet). Naturalmente, dualismo - que separa o pensamento
da matéria concebendo a existência da alma -, e monismo
- estabelecendo a existência de uma só substância,
a matéria -, eram escolhas filosóficas, adotadas pelos
cientistas como convicção e pressuposto para suas hipóteses
e teorias.
Já para estudar o fenômeno da vida, havia três maneiras
de se considerar seu mecanismo: o animismo, o vitalismo e o unicismo.
O primeiro considerava a alma como causa de todas as distinções
entre matéria orgânica e matéria inerte. O animismo
é a mais antiga e primitiva das concepções sobre
a vida. Segundo ela, a alma imaterial é a geradora de movimento,
da capacidade de raciocinar, de sentir e de escolher, além de
gerir o funcionamento dos órgãos. No século 18,
o maior expoente animista foi o médico e químico Stahl.
Para Cuvier e Bichat, as leis que regem o corpo estariam em oposição
aos fenômenos físico-químicos, luta vencida pela
vida e em derrota na ocasião da morte. Já os vitalistas
variavam em inúmeras escolas, estabelecendo graus e complexidades
na diferenciação do fenômeno biológico. Para
o vitalista Barthez havia um princípio vital responsável
pelas ações inconscientes do corpo, enquanto a alma era
a sede do pensamento e das escolhas. Outros vitalistas eram fluidistas,
acreditando numa forma especial de energia, ou, no conceito da época,
“fluido”(1) (Essa concepção
vital como “fluido” seguia, naturalmente, uma das vertentes
principais da Física nos séculos 18 e 19, caracterizando
determinados fenômenos da natureza como sendo substâncias
materiais etéreas, imponderáveis ou quintessenciadas,
entre elas o fluido elétrico, o magnético e também
o vital), ainda por se descobrir e de origem
biológica, que promoveria a vitalidade. Por fim, os unicistas
concebiam o corpo como uma máquina, funcionando em absoluto por
fenômenos físico-químicos.
Apesar da classificação dos grandes expoentes da pesquisa
científica normalmente estabelecida para enquadrá-los
na história da ciência, não havia posições
hegemônicas e estanques. Elas variavam, de acordo com os resultados
dos experimentos, pressupostos estabelecidos nas hipóteses e
teorias, como bem observou Wilson Frezzatti ao estudar as raízes
históricas do mecanicismo:
“Longe de haver um acordo sobre o caráter
da vida, várias correntes debatiam-se entre si para definir
o fenômeno vital. Vitalistas, mecanicistas, químicos
e outros mais disputavam o estatuto dos processos orgânicos:
seriam eles reduzidos a leis mecânicas ou físico-químicas
ou teriam leis específicas? O mecanicismo, nesse embate, não
foi criticado apenas por aqueles que se alinhavam com alguma das perspectivas
vitalistas, mas também por aqueles que se utilizavam dos métodos
de investigação físico-químicos”
(FREZZATTI, 2003).
Entretanto, toda essa diversidade doutrinária
da biologia e da fisiologia cedeu, no século passado, a uma e
única base filosófica aceita pela academia, um monismo
materialista que considera exclusivamente fenômenos físico-químicos
para explicar a realidade. O conceito de alma, desse modo, perde qualquer
finalidade, senão quando significando apenas uma referência
à consciência virtual, efeito do cérebro como órgão
secretor do pensamento.
Referências bibliográficas
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DENIS, Leon. O problema do ser, do destino e da dor. Rio de janeiro:
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FREZZATTI Jr., Wilson Antonio. “Haeckel e Nietzsche: aspectos
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KUHN, Thomas. A Estrutura das revoluções científicas,
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POPPER, Karl. Lógica das ciências sociais. Rio de Janeiro:
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SANTOS, Ana Lúcia Rissoni e MARQUES, Rita de Cássia. “Quando
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moderna na medicina” In: J. L. Goldfarb & M. H. M. Ferraz
(org.), Anais do VII Seminário Nacional de História da
Ciência e da Tecnologia. São Paulo: Edusp/Edunesp/Imprensa
Oficial/SBHC, 2001, pp. 269-272.