Allan Kardec foi um dos primeiros acadêmicos a propor uma investigação
científica dos fenômenos psiquicos 1,
mas detalhes de sua vida e de seu trabalho de pesquisa não são
bem conhecidos e, freqüentemente, têm sido mal interpretados.
O objetivo deste artigo é descrever os primeiros passos de sua
pesquisa seminal e as várias diretrizes epistemológicas/metodológicas
por ele propostas para desenvolver um programa de pesquisa científica
que abarcasse os fenômenos psíquicos. Ele aceitou que a
fraude, a alucinação, a atividade cerebral inconsciente
e a projeção do pensamento poderiam explicar muitos fenômenos
tidos como mediúnicos. Entretanto, para Kardec, um amplo estudo
da mediunidade indica que o entendimento da existência de uma
origem espiritual para o fenômeno seria a melhor forma de compreendê-lo.
1- Apesar de reconhecer possíveis
especificidades de cada um dos termos, neste artigo, as palavras físico,
parapsicológico e mediúnico serão utilizadas de
maneira bastante flexível para designar o conjunto de fenômenos
estudados pela parapsicologia, pela pesquisa psíquica e pelo
Espiritismo.
1. INTRODUÇÃO
Allan Kardec foi pioneiro na proposição de uma
pesquisa científica dos fenômenos psíquicos, em
meados do século XIX. Para proceder a essa investigação,
ele desenvolveu um programa de pesquisa com uma abrangente teoria que
denominou “Espiritismo”. Atualmente, as principais idéias
do Espiritismo tornaram-se um movimento social, resultando em centros
de cura, instituições de caridade e hospitais envolvendo
milhões de pessoas em dezenas de países, em sua maior
parte no Brasil (Aubrée & Laplantine, 1990; CEI, 2008; Moreira-Almeida
& Lotufo Neto, 2005). Apesar dos livros de Kardec possuírem
apelo popular no Brasil, vendendo milhões de cópias, seu
trabalho e sua metodologia de pesquisa são relativamente pouco
conhecidos, tanto por espíritas quanto por parapsicólogos,
havendo informações imprecisas e mal-entendidos em ambos
os campos (Fodor, 1966; Melton, 1966).
O objetivo deste artigo é apresentar os primeiros passos de Kardec
no desenvolvimento de seu programa de pesquisa, denominado Espiritismo.
Serão apresentadas, também, algumas diretrizes epistemológicas
propostas por ele para uma frutífera investigação
dos fenômenos físicos. Visando captar mais diretamente
as idéias e os métodos de Kardec, a pesquisa foi desenvolvida
diretamente sobre as fontes primárias, ou seja, nos seus próprios
escritos constituídos por diversos livros e doze volumes da “Revue
Spirite”, revista mensal editada e publicada por Kardec de 1858
até seu falecimento, em 1869.
2. EM BUSCA DE UMA ESTRUTURA CONCEITUAL PARA
EXPLICAR FENÕMENOS MEDIÚNICOS
Kardec não aceitava a existência do sobrenatural ou de
milagres. Assumia que todo fenômeno que ocorre na natureza deve
ter uma explicação natural, seguindo alguma forma de lei
passível de ser investigada cientificamente. Algo pode ser inexplicado
porque suas causas são desconhecidas em certo período
histórico, mas não inexplicável (Kardec, 1859/1999;
1868).
Kardec enfatizou várias vezes que deveríamos ser muito
cuidadosos em atribuir aos espíritos todos os tipos de fenômenos
extraordinários ou que não pudéssemos compreender.
Nunca seria demais insistir sobre este ponto, a fim
de pôr em guarda contra os efeitos da imaginação
e, muitas vezes, do medo. Quando se produz um fenômeno extraordinário
— repetimo-lo — o primeiro pensamento deve ser que tenha
uma causa natural, por ser a mais freqüente e mais provável
(Kardec, 1860a:81).
Face aos fenômenos mediúnicos, como as
mesas girantes e outros similares, Kardec propôs a utilização
de uma abordagem científica para entendê-los:
Como meio de elaboração, o Espiritismo
procede exatamente da mesma forma que as ciências positivas,
aplicando o método experimental. Fatos novos se apresentam
que não podem ser explicados pelas leis conhecidas; ele os
observa, compara, analisa e, remontando dos efeitos às causas,
chega à lei que os rege; depois, deduz-lhes as conseqüências
e busca as aplicações úteis. Não estabeleceu
nenhuma teoria preconcebida. (...) É, pois, rigorosamente exato
dizer-se que o Espiritismo é uma ciência de observação
e não produto da imaginação. As ciências
só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se
basearam sobre o método experimental; até então,
acreditou-se que esse método também só era aplicável
à atéria, ao passo que o é também às
coisas metafísicas. (Kardec, 1868/2002:20).
Vale ressaltar que os livros de Kardec sobre Espiritismo
contêm basicamente as teorias por ele desenvolvidas a partir das
investigações das manifestações mediúnicas.
Esses livros discutem o que ele denomina de “filosofia espírita”
que emergiu dessa investigação. Por vezes aludem brevemente
a relatos de casos ou evidências empíricas que fundamentam
a teoria, todo esse conteúdo foi apresentado por ele de forma
integral na Revista Espírita. Nesse periódico, descreveu
muitos fatos que testemunhou ou que foram testemunhados por vários
dos seus correspondentes ao redor do mundo. Geralmente, essas ocorrências
não eram relatadas de forma minuciosa, como mais tarde se tornou
praxe na Society for Psychical Research, que veio a ser outro importante
núcleo de pesquisas do século XIX, na Inglaterra. Kardec
considerava a Revista Espírita como um “laboratório”:
costumava apresentar relatórios e discutir possíveis explicações
para todos os tipos de manifestações mediúnicas
físicas ou mentais e, regularmente, apresentava hipóteses
para serem testadas e analisadas pelos leitores.
Muitos textos e teorias inicialmente publicados na Revista foram, mais
tarde, publicados de forma mais desenvolvida em seus livros (Kardec,
1858i; 1868).
Adiante, serão apresentadas e discutidas, resumidamente, as abordagens
iniciais de Kardec em relação aos fenômenos mediúnicos
e as principais hipóteses por ele exploradas na busca por uma
explicação para todo o conjunto de fenômenos psíquicos
observados.
Fraude
Kardec reconheceu que muitas das alegadas manifestações
mediúnicas tiveram como causa truques ou charlatanismo. Enfatizou
que seria necessário estar sempre ciente da possibilidade de
fraude, a qual deveria ser denunciada sem constrangimentos: “o
Espiritismo só terá a ganhar com o desmascaramento dos
impostores” (Kardec, 1959:103). No entanto, Kardec negou que truques
pudessem explicar todos os tipos de fenômenos observados. Abaixo,
listamos algumas das razões por ele apresentadas para fundamentar
essa alegação:
- Freqüentemente a acusação de fraude
é levantada sem evidências, mas, simplesmente, porque se
testemunha uma ordem de fatos que não se consegue explicar (Kardec,
1859/1999).
- A possibilidade de imitação de muitas manifestações
mediúnicas, não implica na impossibilidade da manifestação
real. “De tudo se abusa, até das coisas mais santas. Por
que não abusariam do Espiritismo? Porém, o mau uso que
de uma coisa se faça não autoriza que ela seja prejulgada
desfavoravelmente.” (Kardec, 1861/2002:55).
- É difícil pensar que milhares de pessoas envolvidas
com a mediunidade em todo o mundo participem da mesma fraude (Kardec,
1859/1999).
- Fraude é muito mais provável entre médiuns que
fazem da mediunidade uma fonte de lucro pecuniário, especialmente
quando afirmam a capacidade de produção das manifestações
mediúnicas à sua própria vontade. Kardec sempre
se opôs a médiuns pagos:
Não ignoramos que a nossa severidade para com
os médiuns interesseiros levanta contra nós todos os
que exploram, ou se vêem tentados a explorar essa nova indústria,
fazendo-os, bem como de seus amigos, que naturalmente lhes esposam
a opinião, encarniçados inimigos nossos. (...) não
vemos, com efeito, como se provaria que não há mais
facilidade de se encontrarem a fraude e os abusos na especulação,
do que no desinteresse. Quanto a nós, se os nossos escritos
hão contribuído para desacreditar, assim na França,
como em outros países, a mediunidade interesseira, entendemos
que esse não será dos menores serviços que tenhamos
prestado ao Espiritismo sério (Kardec, 1861/2002:413- 14).
- Na mediunidade física torna-se impossível
julgar o conteúdo da manifestação mediúnica,
nesse sentido este tipo de mediunidade é mais sujeita à
fraude do que a intelectual. É difícil qualificar como
fraude manifestações em que médiuns demonstram
ter conhecimento de fatos particulares e traços de personalidade
de pessoas falecidas que eram desconhecidas deles e dos demais participantes
da sessão (Kardec, 1861/2002).
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