Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que o senhor
destaca sobre as narrativas da modernidade religiosa contemporânea?
Pablo Wright – As
narrativas da modernidade religiosa são múltiplas e
variadas. Todas, seja de instituições históricas,
como a Igreja Católica e as diferentes igrejas protestantes,
seja até mesmo as formas de hinduísmo e/ou budismo,
são, em maior ou menor medida, herdeiras da modernidade predominante
no Ocidente. Esta modernidade está atravessada por ideais culturais
do iluminismo, com sua ênfase na razão e na ciência
experimental como modelos autorizados de explicação
sistemática do mundo e de seus fenômenos; pelas forças
e pelas utopias da revolução industrial e da tecnologia;
pelas instituições de controle social e organização
político-territorial, como os estados e as escolas; pela ideologia
do indivíduo como sujeito autônomo, entre as mais importantes.
Outras instituições e grupos ou movimentos menos hegemônicos,
como as diferentes organizações pentecostais e neopentecostais,
os grupos espíritas e os grupos esotéricos históricos
– como o Rosacruz , a Teosofia , e as diversas modalidades da
Antroposofia –, junto às manifestações
contraculturais neo-orientais dos anos 1960, com a confluência
frouxa no chamado movimento da Nova Era, propõem visões
alternativas a essas certezas da modernidade. Tanto as religiões
históricas como aquelas contraculturais recém-mencionadas
parecem defender algumas narrativas mestras e criticar outras, ou
oferecer novas interpretações a velhos problemas. Agora,
as narrativas tentam construir pontes com a ciência, a psicologia,
a antropologia, inclusive com a economia e o mercado, às vezes
propondo novas vias de acesso à transcendência ou à
imanência ontológica, conforme o caso. Às vezes,
a partir de propostas neotradicionais, se propõe voltar às
origens místicas do mundo e do ser humano com um novo olhar
que enriqueça os dramas existenciais da vida contemporânea.
IHU On-Line – Quais as novidades da religiosidade
popular em nossos dias?
Pablo Wright – O termo
“religiosidade popular” não é conceitualmente
útil a partir da antropologia para analisar formas mais ou
menos criativas e heterodoxas da religiosidade de sujeitos sociais
não institucionais. O termo reflete o lugar de enunciação
que define o fenômeno e que indica um olhar institucional. Uma
vez dito isso, podemos afirmar que as manifestações
populares de religiosidade mostram uma imensa criatividade ideológica,
ritual e organizacional que põe em apuros a aparente estabilidade
simbólica de figuras, valores e práticas rituais das
religiões institucionais. Essa criatividade se expressa, por
exemplo, em figuras populares que ajudam aos mais necessitados; ou
personagens históricos ou míticos que têm como
tarefa atender às necessidades de gente que não encontra
respostas simbólicas nem práticas a seus dilemas vitais.
Expressam modos de sentir, de agir e de sonhar de forma definitiva,
como uma agência coletiva que tem suas próprias lógicas
simbólicas e políticas, onde o que está em jogo
não é só o universo de crenças e de rituais,
mas também a identidade social que estas formas de religiosidade
convocam e ajudam a construir.
IHU On-Line – Em que os sujeitos contemporâneos
creem e por que creem? O que justifica sua fé e sua vivência
religiosa?
Pablo Wright
– Hoje em dia, apesar das crises dos sistemas religiosos, há
um amplo contingente de crentes nas religiões históricas,
sejam eles mais ou menos praticantes ou devotos. No entanto, os sistemas
de crenças e as instituições religiosas vêm
de marcos coletivos de identidade religiosa que cumprem importantes
funções sociais. O que é indubitável é
que, para as classes médias em geral, há uma maior individualização
das crenças e às vezes um pertencimento múltiplo
a distintos grupos, onde, como afirma o antropólogo Alejandro
Frigerio, a identidade social pode passar por uma igreja, por exemplo,
enquanto que a identidade religiosa se dispersa por um conjunto de
práticas e crenças alternativas, como o curandeirismo,
o xamanismo, a Nova Era, etc. Não obstante, observa-se também
uma amplíssima variedade de sujeitos que participam em diversos
grupos. Em termos culturais, qualquer objeto, evento ou personagem
histórico pode se transformar em objeto de crença. Trata-se
de uma ação coletiva onde estas pessoas se carregam
de um valor simbólico especial. E as tradições
religiosas, sejam institucionais ou não, e os contextos sociopolíticos
e culturais, são os que guiam estes processos de carga, perda
ou recarga.
IHU On-Line – Por que o senhor acredita que
estamos diante de uma verdadeira globalização religiosa?
Como o senhor define essa situação?
Pablo Wright
– A globalização religiosa é parte do processo
mais geral de globalização econômica e cultural
que se deu desde a década de 1960, e mais ainda desde o final
dos anos 1980, com os avanços tecnológicos das comunicações.
As diferentes formas de contracultura dos anos 1960 geraram a emergência
de muitas e importantes correntes de crítica religiosa nutridas
pelo orientalismo, onde grupos de origem hindu, chinesa, coreana ou
japonesa passaram pelos Estados Unidos e, a partir daí, se
expandiram pelo mundo, inclusive retornando a seus lugares de origem
com uma identidade institucional e corpo de crenças e rituais
reelaborados. Atualmente, os grupos mantêm contato global através
de páginas web, teleconferências e outros meios similares.
Muito da estrutura ideológica dos movimentos da Nova Era foi
bastante influenciada por estas formas neo-orientais. No mundo cristão,
a expansão de grupos protestantes de diversas características
é paralela com a expansão política e econômica
dos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial, e expressa em
suas diferentes etapas históricas até os presentes modos
persistentes de globalização e de colonização
cultural, com múltiplas reelaborações locais.
Finalmente, as migrações trabalhistas em função
das crises econômicas e/ou políticas em diferentes países
do planeta, contribuíram para expandir tanto as instituições
como os modos de religiosidade de lugares distantes, que antes não
haviam estado em contato. Todos eles sofrem importantes processos
de adaptação cultural aos lugares de chegada.
IHU On-Line – Em que consiste
o mundo religioso que poderia ser entendido como paralelo ao mundo
das religiões oficiais, mas que hoje transcende essa categoria
e compete com os credos antigos?
Pablo Wright – O mundo religioso
que convive com as religiões oficiais possui um conjunto de
crenças variadas e provê os sujeitos sociais de marcos
de identidade e de experiência que eles não recebem daquelas
instituições históricas. Em geral, trata-se de
um mundo sagrado povoado de muitas entidades (deste mundo e de outros
do universo) com diversos poderes com os quais as pessoas podem estabelecer
um contato direto, onde a ideia de ter próprias experiências
do sagrado é muito valorizada. Estas experiências se
relacionam com tecnologias do ser particulares (relacionadas com as
ideias de Foucault sobre “tecnologias do eu”), que se
orientam a transformar o corpo e a alma da pessoa. Não creio
que há uma competência direta dos novos credos com os
que ocupam um lugar mais ou menos hegemônico no campo religioso,
pela desigualdade de capitais simbólicos e culturais em questão.
Mas em termos de ideologia religiosa, de práticas rituais,
de projeção social e/ou identitária, impactam
profundamente no imaginário coletivo, reelaborando velhos livros
sagrados e dogmas à luz de uma filosofia de vida onde se tenta
restabelecer o contato “direto” com a revelação,
com o mítico, com o poder sagrado da salvação
e da redenção ontológica.
IHU On-Line – Que espaço
as religiões tradicionais ocupam em relação à
conversão de fiéis no século XXI?
Pablo Wright
– A partir de uma perspectiva antropológica podemos dizer
que sempre haverá religiões tradicionais, ou seja, conjuntos
de organizações de crenças e práticas
com muita ou pouca institucionalidade que, em certo momento, da história
se estabilizam e se tornam “tradicionais” frente a outras
que surgem de fragmentos daquelas ou de movimentos socioculturais
que vêm de outras áreas do campo religioso. Ou seja,
as religiões que agora são tradicionais, o cristianismo,
o islamismo, o hinduísmo, ou o budismo, por exemplo, o são
hoje de certa forma mais ideológica que prática, já
que na prática há um sem-número de organizações
dentro do campo cristão, por exemplo (seja católico
ou protestante), que nos previne de pensá-lo como algo homogêneo,
centralizado e possuindo uma unidade dogmática, ritual, organizacional
e política. É mais uma comunidade imaginada do que uma
realidade fática, empírica. Mas isso não nos
deve distrair da análise sociopolítica do campo religioso,
onde há alguns atores hegemônicos e outros que ocupam
diversas posições mais periféricas. Nesse contexto,
poderíamos definir os primeiros como “tradicionais”
frente aos segundos que seriam contestatários e questionadores
da “verdade” sagrada que aqueles nos oferecem. Mas estas
diferentes posições no campo são históricas,
não permanentes.
IHU On-Line – Gostaria de
acrescentar mais algum comentário?
Pablo Wright
– Creio que seria importante assinalar que, a partir da perspectiva
antropológica, as religiões não se esgotam nas
instituições históricas que conhecemos e que
para o senso-comum são sinônimos de “religião”.
As religiões são fenômenos socioculturais que
têm muitas facetas, são dinâmicas e possuem muitas
camadas de sentidos simbólicos em suas crenças, rituais
e organização. A experiência do sagrado é
uma dimensão vital da experiência humana, e ela aparece
nos diferentes tempos, épocas e culturas com diferentes roupagens;
mas sempre é uma experiência social atravessada pelo
coletivo. Nossa tarefa como antropólogos é decifrar
o sentido das roupagens, de onde elas vêm, o que propõem
e que relação possuem com o contexto maior – seja
local ou global – no qual têm sentido para os atores sociais.