De cima, Lalibela parece uma aldeia
como outra qualquer. Um oceano de barracos de ferro corrugado, cobertos
por finas colunas de fumaça que condensam em uma névoa
azulada no platô pedregoso. É uma cena comum na Etiópia.
Lalibela, entretanto, não
é apenas uma aldeia. É a capital dos cristãos
da Etiópia, seu "lugar sagrado", sua "maravilha
do mundo". E em nenhuma outra parte isso fica mais claro do
que em Bet Gyiorgis, Igreja de São Jorge. A estrutura monumental
- escavada nas rochas no limite ocidental da cidade - tem cerca
de 800 anos de idade. Construída na forma de cruz, é
cercada por um fosso seco que ajuda a separá-la das 10 outras
igrejas nas pedras, todas interconectadas por túneis subterrâneos.
O interior é uma penumbra
iluminada por lamparinas de gordura de boi. Um pouco de luz do dia
penetra pelas janelas estreitas. O cheiro de incenso perfuma o ar.
Homens idosos e barbados, de túnicas brancas, sentam-se ao
longo das paredes, lendo bíblias escritas à mão.
Um murmúrio religioso ressoa
pela igreja, suavemente pontuado por música de harpa tocada
por um menino em uma "bagana" - instrumento de cordas
e madeira, decorado com placas de bronze brilhantes.
Cerca de 40% dos 68 milhões
de etíopes são cristãos ortodoxos. Sua fé
e tradições remontam a 1.600 anos atrás. De
acordo com a lenda, sua Igreja foi estabelecida como conseqüência
não intencional de um seqüestro. Dois cristãos
chamados Frumentios e Aidesios - ambos moradores do Tiro - foram
acostados no Mar Vermelho e levados para Aksum, capital da Etiópia
na época. Cultos, logo se estabeleceram como tutores privados
da família real. Eles não só ensinaram matemática
e grego aos filhos do rei, mas também passaram os fundamentos
de sua fé cristã.
Contemporâneo de Gêngis
Khan
Obviamente, os cristãos foram
persuasivos. Em meados do século 4, o rei Ezana decidiu se
batizar. Poucos anos depois, o cristianismo foi proclamado religião
nacional. Apesar disso, a Igreja Ortodoxa Etíope foi comandada
durante séculos por um metropolitano nomeado pelo patriarca
cóptico da Alexandria. Foi apenas no meio do século
passado que a igreja etíope tornou-se autônoma e nomeou
seu próprio patriarca em Addis Ababa. Agora estão
sob sua égide as 17 eparquias na Etiópia e bispados
em Núbia e Jerusalém.
As igrejas em Lalibela foram construídas
por um rei do mesmo nome - contemporâneo de Gêngis Khan
e Barbarossa. Ele queria criar uma nova Jerusalém, que Saladim
reclamara dos cruzados em 1187. Com acesso negado à Terra
Santa, peregrinos da Etiópia e dos pequenos Estados cristãos
junto ao Nilo poderiam fazer suas adorações ali. O
riacho que atravessa a cidade foi chamado de Jordão, e o
morro acima de Monte Tabor.
Por séculos, as conquistas
islâmicas em regiões vizinhas isolaram a Etiópia
do mundo cristão. Ainda assim, sua herança cristã
-as preces, hinos e linguagem litúrgica Ge'ez - foi preservada
pelos séculos.
A glória da Eucaristia Ortodoxa
é tangível nas igrejas de Lalibela, acima de tudo
durante o festival de Timkat, que comemora o batismo de Cristo no
Jordão. Nas vésperas do evento, procissões
subterrâneas passam pelas igrejas, acompanhadas pelo soar
de sinos e cornetas. Padres e diáconos vestidos de veludo
escuro decorados lideram o caminho. Sobre suas cabeças, levam
os "tabots", tabletes de madeira simbolizando a Arca da
Aliança.
As peças são colocadas
em uma grande tenda, fora da qual os fiéis congregam, esperando
a noite toda para compartilhar os poderes sagrados que acreditam
estar investidos nos "tabots".
O ritual não é menos
solene ou impressionante do que a unção de um cardeal
no Vaticano. O padre estabelece uma cadência com seu bastão
poderoso e canta: "Kyrie eleison". Os fiéis descem
ao chão 30, 40 ou até 50 vezes.
Entretanto, essas tradições
antigas e seu cumprimento forçado pela igreja são
parcialmente culpados pelo mergulho da Etiópia em terrível
pobreza nos últimos 50 anos. Como pode um país se
sustentar se o povo só pode arar os campos uma vez a cada
dois dias?
Costumes judeus adotados
O calendário ortodoxo lista
mais de 150 feriados e 180 dias de jejum, nos quais os cristãos
não podem trabalhar e só podem comer uma refeição.
Os feriados muçulmanos - cerca de 45% da população-
comem ainda mais a semana de trabalho. E o sabá ainda é
celebrado em zonas rurais - uma relíquia da dinastia salomônica
que dominou a Etiópia no século 13 e adotou inúmeros
costumes judeus.
O clero em Addis Ababa, capital
do país desde o fim do século 19, talvez esteja perdendo
lentamente sua autoridade, mas os padres nas terras altas celebram
os feriados com punho de ferro. A punição segue inexoravelmente
quem não os cumpre. Sem mencionar a perspectiva de acabar
no inferno.
Além disso, a igreja ainda
define o calendário. O ano etíope tem 12 meses de
30 dias, com cinco ou seis dias adicionais. O patriarcado recusa-se
a permitir mudanças. O governo procurou adotar o calendário
ocidental moderno em diversas ocasiões, sempre frustrado
pelo clero. Na prática, a separação entre a
igreja e o Estado ainda tem que ser implementada.
O cristianismo também é
responsável por outro fenômeno na Etiópia: arrogância
racial. Vendo sua fé como superior às religiões
naturais da África, cristãos ortodoxos consideram-se
o povo escolhido. Em suas mentes, o retrato -as ilustrações
dos livros sagrados- de pessoas de pele mais clara como governantes
da Terra Prometida e os negros como seus serviçais é
evidência da vontade de Deus.
Civilização
de estilo mediterrâneo
Apesar da sede da Organização
pela União Africana ter sido em Addis Ababa por décadas
e a União Africana estar baseada ali, os etíopes não
se vêem como africanos. De acordo com o etnólogo do
Munique Walter Raunig, a Etiópia é um dos "últimos
postos ao Sul da civilização de estilo mediterrâneo".
Os rastafáris de Shashemene,
pequena cidade a 240 km ao Sul da capital escaparam dessa discriminação;
apesar de sua cor, eles têm todo respeito dos cristãos.
Os rastafáris estabeleceram sua colônia nos anos 60,
e depois alguns membros entraram para a comunidade cristã
ortodoxa da Etiópia. Seu nome deriva-se do nome de nascença
do imperador etíope Haile Selassie: Ras Tafari Makonnen.
Eles o reverenciavam como reencarnação de Jesus Cristo.
No início de 2005, Rita Marley,
viúva do lendário astro do reggae Bob Marley, anunciou
que ia transferir o corpo de seu marido da Jamaica para Shashemene
no 60º aniversário de seu nascimento. Mas ela foi forçada
a abandonar seus planos: a Jamaica recusou-se a liberar os restos
mortais de seu herói nacional.
Ainda assim, o espírito
do cantor esteve entre eles em seu 60º aniversário,
de acordo com os rastafáris etíopes. No dia 6 de fevereiro
de 2005, "Buffalo Soldier" de Marley era ouvido nas ruas
de Shashemene: "Roubado da África, trazido para a América,
lutando ao chegar, lutando para sobreviver - Woy yoy yoy!"