Até o final da Segunda Guerra
Mundial, o xintoísmo era a religião estatal no Japão.
Até mesmo nos dias de hoje, os peregrinos ainda freqüentam
os 80 mil templos, orando pela realização dos seus sonhos
pessoais. A religião, que não conta com textos sagrados,
também venera as árvores, as montanhas e as pedras.
No princípio era o arco-íris.
Segundo a narrativa xintoísta da criação, o casal
divino - Izanagi e Izanami - sentou-se sobre o arco-íris e mexeu
o oceano abaixo deles com uma lança ornada com pérolas.
Quando eles retiraram a lança desta mistura primordial, gotas
de água caíram sobre a Terra e criaram as ilhas do Japão.
O casal teve filhos, entre eles a deusa
solar Amaterasu. De acordo com a lenda, a linhagem da família
imperial japonesa pode ser traçada até essa deusa, fazendo
do atual imperador do Japão, Akihito, um descendente direto da
divindade. O seu pai, Hirohito (1901-1089), foi reverenciado como deus-imperador
até o final da Segunda Guerra Mundial.
A gênese mítica do povo
japonês vem sendo transmitida através das gerações
em antigas narrativas, tendo sido preservada em papel pelos governantes
do Japão do século oito quando o sistema chinês
de escrita foi introduzido no país. Não obstante, o xintoísmo
- que significa literalmente "o caminho dos deuses" - não
conta com escrituras sagradas ou ensinamentos formais. Não existem
os conceitos de pecado original ou salvação. O foco do
xintoísmo é a vida na terra e a singularidade do povo
japonês.
O Japão tem cerca de 80 mil templos
xintoístas, incluindo o templo Hiraoka Hachimangu na antiga cidade
imperial de Kyoto. A cada outono os seguidores comemoram o festival
matsuri, em homenagem aos deuses. O nome é uma indicação
do caráter oficial dos primeiros desses festivais - o termo japonês
matsurigoto também denota assuntos governamentais. No passado,
a classe política e o culto xintoísta japoneses estavam
estreitamente entrelaçados, sendo que os anciões que chefiavam
os clãs eram ao mesmo tempo sumo-sacerdotes a serviço
das divindades.
O sacerdote Shusuke Sasaki (50) entra
sozinho nos recônditos mais profundos do santuário. Na
estrutura de madeira de cumeeira pontuda, os fiéis escutam o
cântico monótono em japonês antigo, uma língua
que atualmente pouquíssima gente entende. As entonações
variam de um templo para outro. Mas, como as orações foram
passadas de geração a geração, os monges
falam exatamente como os seus ancestrais.
A compreensão dessas palavras
não é algo crucial. No Japão os sacerdotes não
pregam punições com fogo ou enxofre, e tampouco exigem
que as congregações se arrependam por suas vidas de pecado.
Os monges são simplesmente um meio para que se rogue benevolência
aos deuses. Entre os deuses reverenciados - cada templo presta homenagem
à sua própria divindade -, o monge Sasaki naturalmente
inclui o tenno, o imperador. Mas ele também invoca os elementos
naturais, tais como a camélia, que traz boa sorte. Assim como
as religiões primitivas baseadas na natureza, o xintoísmo
venera as árvores, os animais, as pedras e as montanhas - incluindo
o Monte Fuji, o pico mais alto do Japão. O "caminho dos
deuses" não conduz os japoneses para um mundo após
a morte; em vez disso guia-os no decorrer das suas vidas na Terra. O
objetivo é viver em harmonia com a natureza e limpar a alma com
o auxílio da natureza. Por esse motivo, o ritual no templo Hiraoka
Hachimangu lembra uma festa. O vinho sagrado de arroz flui e gargalhadas
estrondosas ressoam. E ninguém se importa se o monge fumar entre
uma cerimônia e outra.
O principal festival tem início
depois que o sacerdote deixa o santuário. Se o tempo estiver
bom, uma liteira ornamentada com ouro, a residência da divindade,
é carregada para fora do templo. Em termos simbólicos,
a divindade está se misturando com o povo. Neste ano, choveu.
Mas isso não foi por si uma tragédia. Foi apenas o que
a natureza sempre teve em mente. Os percussionistas simplesmente fizeram
ressoar os seus tambores taiko com mais entusiasmo, lançando
um ruidoso convite aos espíritos do bem.
A seguir foi a vez dos torneios de sumô,
um evento que sempre agrada as multidões. As origens xintoístas
do sumô ainda são visíveis em Tóquio, onde
a principal arena possui um telhado como o de um templo. No templo Hiraoka
Hachimangu, em Kyoto, jovens semi-nus lutam no ringue; um círculo
de areia consagrado. Mas estas justas não são de fato
competitivas. Os lutadores estão executando uma dança
para os deuses.
Os festivais como o de Hiraoka Hachimangu
ocorrem em todo o Japão. Os japoneses têm matsuris para
todas as estações e ocasiões. Os festivais modelam
as suas rotinas e estados de espírito. Durante essas comemorações,
o país altamente urbanizado e repleto de sofisticada tecnologia
redescobre as suas raízes antigas. A segunda maior nação
industrial do mundo de repente volta a ser um conjunto vasto de comunidades
de vilas ancoradas nos templos xintoístas.
O xintoísmo também é
único de outras formas. Quando lhes perguntam que religião
professam, poucos japoneses se arriscam a afirmar que são exclusivamente
xintoístas. Para a maioria deles, "o caminho dos deuses"
é uma tradição, e não uma fé. Eles
mantém essa tradição apaixonadamente, mas não
sentem necessidade de transformá-la em uma religião. Os
pais xintoístas levam os filhos a um templo e oram pela boa saúde
das crianças: os filhos aos cinco anos, e as filhas aos três
e aos sete.
E os mesmos japoneses que mantêm
as tradições xintoístas tão fervorosamente
são capazes de se casar em uma cerimônia cristã
ou de enterrar os seus mortos de acordo com os rituais budistas. Como
os japoneses professam várias religiões ao mesmo tempo,
o número de fiéis supera a população total
em termos estatísticos.
Esse pragmatismo histórico possui
raízes históricas. Assim que o budismo migrou para o Japão,
vindo da China e da Coréia no século seis, ambas as tradições
coexistiam lado a lado. Pequenos santuários xintoístas
ainda podem ser encontrados hoje em dia ao lado dos templos budistas.
Durante certos períodos os governantes japoneses fizeram do budismo
a religião estatal, especialmente no século seis, quando
o Japão reorganizou o seu governo e a sua administração
segundo o modelo chinês.
Além do budismo, a nação
foi influenciada por uma outra religião chinesa, o confucionismo.
Os xoguns, os líderes militares do Japão, baseavam o seu
poder nos tradicionais valores confucianos da lealdade e da obediência.
Eles chegaram ao poder em Edo, a atual Tóquio, no século
17. O imperador morava na remota cidade de Kyoto. O se papel se limitava
a confirmar o novo líder.
Em meados do século 19, o Japão
abriu-se para o Ocidente, e o xintoísmo foi transformado em um
culto nacional. Durante a Restauração Meiji, de 1868,
guerreiros defensores de reformas derrubaram o xogun e colocaram no
poder o deus-imperador Meiji (1852-1912) na sua posição
legal de soberano. Eles introduziram métodos ocidentais que modernizaram
o país. Mas esses indivíduos utilizaram os mitos xintoístas
para consolidar o regime imperial.
Durante um curto período, o budismo
foi considerado um "produto importado", sendo, conseqüentemente,
reprimido. O novo governo colocou os templos xintoístas sob a
supervisão do Estado e transformou os sacerdotes em funcionários
públicos. Os japoneses tinham que prestar homenagem ao imperador
divino, e não a conjuntos de divindades locais, Na escola, as
crianças oravam para o retrato do tenno. E nas guerras subseqüentes,
os heróicos soldados imperiais encararam a morte gritando "Tenno
banzai" - "10 mil vidas para o tenno".
Em 1869, o exército e a marinha
japoneses construíram o templo Yasukuni, em Tóquio. Nesse
santuário os guerreiros são reverenciados como divindades
xintoístas que sacrificaram as suas vidas pelo tenno. Um portão
imponente, construído em aço, em vez de em madeira tradicional,
domina a entrada - simbolizando a perversão do suave "caminho
dos deus", que tornou-se uma ideologia marcial durante o período
Meiji.
Depois da derrota do Japão na
Segunda Guerra Mundial, o templo Yasukuni foi transformado em uma instituição
religiosa privada. Mas ele preservou o seu caráter militar: apesar
de terem sido executados em 1948, os criminosos de guerra do Japão
são reverenciados como deuses xintoístas. Os políticos,
incluindo até mesmo o primeiro-ministro Junichiro Koizumi, fazem
peregrinações até o templo, gerando protestos dos
vizinhos do Japão.
A capitulação após
a Segunda Guerra Mundial também marcou o fim de uma era para
a monarquia japonesa. Sob pressão do vitorioso Estados Unidos,
o imperador Hirohito renunciou explicitamente à sua divindade
em 1946. A constituição de pós-guerra - que foi
de fato ditada pelos ocupantes norte-americanos - mantém a separação
entre religião e Estado. Oficialmente o imperador é visto
como um símbolo tanto do Estado quando da unidade do povo japonês.
No seu palácio em Tóquio,
o tenno ainda atua como o mais graduado sacerdote xintoísta do
Japão. De acordo com a tradição, ele planta arroz
no jardim do seu palácio e manda regularmente enviados para os
maiores templos do país.
Como parte da insígnia imperial
- composta do espelho, da espada e das jóias sagrados -, o espelho
fica no templo Ise, na municipalidade de Mie. O templo é dedicado
à deusa solar. Um membro da família imperial atua como
sumo-sacerdote. Os primeiros-ministros japoneses tradicionalmente visitam
esse santuário xintoísta no início do ano.
O tenno reafirmou a sua linhagem a partir
da deusa solar na sua coroação em 1990, embora o papel
que desempenhou no ritual não tenha sido exibido publicamente.
O imperador passou várias horas sozinho dentro de dois salões
de madeira especialmente construídos, oferecendo vinho de arroz
e pratos santificados ao seu ancestral primordial. Cada salão
é dotado de uma cama, na qual - segundo a tradição
- o tenno se relaciona com a divindade solar, e renasce nesse processo.
Se os patriotas que lideram o governista
Partido Liberal-Democrata tiverem a supremacia, o xintoísmo será
ainda mais fortemente privilegiado a fim de conter o declínio
da moralidade tradicional na moderna sociedade japonesa.
"O Japão é um país
de deuses, que tem o tenno no seu centro", declarou em 2000 o primeiro-ministro
Yoshiro Mori. À época, o seu comentário gerou protestos.
Mas, hoje em dia, os pedidos para que se incluam os mitos xintoístas
nos textos escolares, promovendo dessa forma a lealdade nacional, têm
obtido cada vez mais aprovação.
Apesar desse caráter nacionalista,
para muitos japoneses o xintoísmo pouco tem a ver com política.
Esses japoneses estão mais interessados em preservar as suas
tradições. Durante os feriados do Ano Novo, milhões
de pessoas de todas as idades visitam os templos xintoístas para
pedir a proteção dos deuses. Os visitantes oram por por
si próprios, por suas famílias e até mesmo pelas
companhias para as quais trabalham. Um grupo inteiro de trabalhadores
pode comparecer junto para orar por bons negócios e altos lucros.
Em um ritual simples, eles balançam uma corda dotada de pequenos
sinos e jogam as suas esmolas em uma caixa de madeira para oferendas.
Existem espíritos xintoístas
para todos os desejos e males. Muito próximo da Bolsa de Valores
de Tóquio, o tempo Kabuto atrai investidores e acionistas que
oram pelos bons preços das ações. O templo Kitano
Tenmangu, em Kyoto, é o preferido dos estudantes e seus parentes,
que desejam boas notas e ingresso nas melhores universidades.
O templo Togo, em Tóquio, também
é muito popular. O santuário, que atrai japoneses que
buscam alívio para todos os tipos de problemas, fica no meio
do distrito da moda, o Harakaju, freqüentado pela juventude da
cidade.
Muitos jovens pintam o cabelo de amarelo
brilhante ou de vermelho radiante, e usam roupas bizarras, como se fossem
pessoas que vão a uma festa de Halloween. Poucos parecem dar
a mínima para a tradição. O patrono do templo é
Heihachiro Togo (1847-1934), um almirante lendário que comandou
a marinha imperial no Estreito de Tsushima, em 1905, onde destruiu a
frota russa do báltico e acabou de fato com o império
tzarista.
Os jovens japoneses em Harajuku pouco
sabem sobre a História, e tampouco se preocupam com ela. Mas
eles ainda freqüentam o templo em multidões. Para eles,
Togo é um ancestral que virou deus e que fará com que
os seus sonhos mais seculares, na verdade até carnais, se tornem
realidade. Assim sendo eles compram pequenas tábuas de oração
que trazem a imagem do almirante barbudo, entalham os seus desejos nelas,
e as penduram. Depois disso, postam-se de pé defronte ao templo,
fazem duas mesuras, batem palmas duas vezes e fazem mais uma mesura.
Eles estão seguindo o chamado da tradição, da mesma
forma que gerações de japoneses fizeram antes deles.
Fonte : Der Spiegel
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