Epicuro está entre aqueles
sábios pouco compreendidos ou mal interpretados. Ainda é
comum encontrarmos quem confunda seu pensamento, de uma austeridade
quase ascética, com o hedonismo puro e simples. O pensamento
epicurista ensina uma modalidade de prazer que não se confunde
com a disciplina masoquista.
Na concepção de Epicuro, a felicidade é decorrência
do prazer; de um prazer que nasce da saúde do corpo e da serenidade
do Espírito. Este estado de alma é atingido - segundo
seus ensinos - pelo conhecimento e controle dos desejos, dentre outras
posturas diante da vida.
A sua Carta sobre a felicidade, dirigida a um de seus mais fiéis
discípulos, - uma das três que sintetizam sua doutrina
- deixa bem clara a sua concepção de prazer, simultaneamente
físico, intelectual, estético e espiritual. Em muitos
pontos coincidentes com o que nos propõe o Espiritismo.
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Carta sobre a felicidade (a Meneceu)
Epicuro (341-270 a. C.)
"Que ninguém hesite
em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo
depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem
ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito.
Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não
chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que
ainda não chegou, ou que já passou a hora de ser feliz.
Desse modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto
ao velho: para quem está envelhecendo sentir-se rejuvenescer
através da grata recordação das coisas que já
se foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas
que estão por vir; é necessário, portanto, cuidar
das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta presente,
tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la.
Pratica e cultiva então aqueles ensinamentos que sempre te
transmiti, na certeza de que eles constituem os elementos fundamentais
para uma vida feliz.
Em primeiro lugar, considerando a divindade como um ente imortal e
bem-aventurado, como sugere a percepção comum de divindade,
não atribuas a ela nada que seja incompatível com a
sua imortalidade, nem inadequado à sua bem-aventurança;
pensa a respeito dela tudo que for capaz de conservar-lhe felicidade
e imortalidade.
Os deuses de fato existem e é evidente o conhecimento que temos
deles; já a imagem que deles faz a maioria das pessoas, essa
não existe: as pessoas não costumam preservar a noção
que têm dos deuses. Ímpio não é quem rejeita
os deuses em que a maioria crê, mas sim quem atribui aos deuses
os falsos juízos dessa maioria.
Com efeito, os juízos do povo a respeito dos deuses não
se baseiam em noções inatas, mas em opiniões
falsas. Daí a crença de que eles causam os maiores malefícios
aos maus e os maiores benefícios aos bons. Irmanados pelas
suas próprias virtudes, eles só aceitam a convivência
com seus semelhantes e consideram estranho tudo que seja diferente
deles.
Acostuma-te à idéia de que a morte para nós não
é nada, visto que todo o bem e todo o mal residem nas sensações,
e a morte é justamente a privação das sensações.
A consciência clara de que a morte não significa nada
para nós proporciona a fruição da vida efêmera,
sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de
imortalidade.
Não existe nada de terrível na vida para quem está
perfeitamente convencido de que não há nada de terrível
em deixar de viver. É tolo, portanto quem diz ter medo da morte,
não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas
porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos
perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está
sendo esperado.
Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não
significa nada para nós, justamente porque, quando estamos
vivos, é a morte que não está presente; ao contrário,
quando a morte está presente, nós é que não
estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os
vivos, nem para os mortos, já que para aquele ela não
existe, ao passo que estes não estão mais aqui. E, no
entanto, a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior
dos males, ora a deseja como descanso dos males da vida.
O sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar
de viver; viver não é um fardo e não-viver não
é um mal.
Assim como opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante,
do mesmo modo ele colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda
que breve.
Quem aconselha o jovem a viver bem e o velho a morrer bem não
passa de um tolo, não só pelo que a vida tem de agradável
para ambos, mas também porque se deve ter exatamente o mesmo
cuidado em honestamente viver e em honestamente morrer. Mas pior ainda
é aquele que diz: bom seria não ter nascido, mas uma
vez nascido, transpor o mais depressa possível as portas do
Hades.
Se ele diz isso com plena convicção, por que não
vai desta vida? Pois é livre para fazê-lo, se for esse
realmente seu desejo; mas se o disse por brincadeira, foi frívolo
em falar de coisas que brincadeira não admitem.
Nunca devemos nos esquecer de que o futuro não é nem
totalmente nosso, nem totalmente não-nosso, para não
sermos obrigados a esperá-lo como se estivesse por vir com
toda a certeza, nem nos desesperarmos como se não estivesse
por vir jamais.
Consideremos também que, dentre os desejos, há os que
são naturais e os que são inúteis; dentre os
naturais, há uns que são necessários e outros,
apenas naturais; dentre os necessários, há alguns que
são fundamentais para a felicidade, outros, para o bem-estar
corporal, outros, ainda, para a própria vida. E o conhecimento
seguro dos desejos leva a direcionar toda escolha e toda recusa para
a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto
que esta é a finalidade da vida feliz: em razão desse
fim praticamos todas as nossas ações, para nos afastarmos
da dor e do medo.
Uma vez que tenhamos atingido esse estado, toda a tempestade da alma
se aplaca, e o ser vivo, não tendo que ir em busca de algo
que lhe falta, nem procurar outra coisa a não ser o bem da
alma e do corpo, estará satisfeito. De fato, só sentimos
necessidade do prazer quando sofremos sua ausência; ao contrário,
quando não sofremos, essa necessidade não se faz sentir.
É por essa razão que afirmamos que o prazer é
o início e o fim de uma vida feliz. Com efeito, nós
o identificamos como o bem primeiro e inerente ao ser humano, em razão
dele praticamos toda escolha ou recusa, e a ele chegamos escolhendo
todo bem de acordo com a distinção entre prazer e dor.
Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos
qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos
prazeres, quando deles advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis;
ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos
prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores
por muito tempo.
Portanto, todo prazer constitui um bem por sua própria natureza;
não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo
modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser evitadas.
Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de
acordo com o critério dos benefícios e dos danos. Há
ocasiões em que utilizamos um bem como se fosse um mal e, ao
contrário, um mal como se fosse um bem.
Consideramos ainda a auto-suficiência um grande bem; não
que devamos nos satisfazer com pouco, mas para nos contentarmos com
esse pouco caso não tenhamos o muito, honestamente convencidos
de que desfrutam melhor a abundância os que menos dependem dela;
tudo o que é natural é fácil de conseguir; difícil
é tudo o que é inútil.
Os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer que as iguarias
mais requintadas, desde que se remova a dor provocada pela falta:
pão e água produzem o prazer mais profundo quando ingeridos
por quem deles necessita.
Habituar-se às coisas simples, a um modo de vida não
luxuoso, portanto, não só é conveniente para
a saúde, como ainda proporciona ao homem os meios para enfrentar
corajosamente as adversidades da vida: nos períodos em que
conseguimos levar uma existência rica, predispõe o nosso
ânimo para melhor aproveitá-la, e nos prepara para enfrentar
sem temor as vicissitudes da sorte.
Quando então dizemos que o fim último é o prazer,
não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que
consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pessoas que
ignoram o nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou o
interpretam erroneamente, mas ao prazer que é ausência
de sofrimentos físicos e de perturbações da alma.
Não são, pois, bebidas nem banquetes contínuos,
nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes ou das outras
iguarias de uma mesa farta que tornam doce uma vida, mas um exame
cuidadoso que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeição
e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa
perturbação toma conta dos espíritos.
De todas essas coisas, a prudência é o princípio
e o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa
do que a própria filosofia ; é dela que originaram todas
as demais virtudes; é ela que nos ensina que não existe
vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não
existe prudência, beleza e justiça sem felicidade.
Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade,
e a felicidade é inseparável delas.
Na tua opinião, será que pode existir alguém
mais feliz do que o sábio, que tem um juízo reverente
acerca dos deuses, que se comporta de modo absolutamente indiferente
perante a morte, que bem compreende a finalidade da natureza, que
discerne que o bem supremo está nas coisas simples e fáceis
de obter, e que o mal supremo ou dura pouco, ou só nos causa
sofrimentos leves? Que nega o destino, apresentado por alguns como
o senhor de tudo, já que as coisas acontecem ou por necessidade,
ou por acaso, ou por vontade nossa; e que a necessidade é incoercível,
o acaso, instável, enquanto nossa vontade é livre, razão
pela qual nos acompanham a censura e o louvor?
Mais vale aceitar o mito dos deuses, do que ser escravo do destino
dos naturalistas: o mito pelo menos nos oferece a esperança
do perdão dos deuses através das homenagens que lhes
prestamos, ao passo que o destino é uma necessidade inexorável.
Entendendo que a sorte não é uma divindade, como a maioria
das pessoas acredita (pois um deus não faz nada ao acaso),
nem algo incerto, o sábio não crê que ela proporcione
aos homens nenhum bem ou nenhum mal que sejam fundamentais para uma
vida feliz, mas, sim, que dela pode surgir o início de grandes
bens e de grandes males. A seu ver, é preferível ser
desafortunado e sábio, a ser afortunado e tolo; na prática,
é melhor que um bom projeto não chegue a bom termo,
do que chegue a ter êxito um projeto mau.
Medita, pois, todas essas coisas e muitas outras a elas congêneres,
dia e noite, contigo mesmo e com teus semelhantes, e nunca mais te
sentirás perturbado, quer acordado, quer dormindo, mas viverás
como um deus entre os homens. Porque não se assemelha absolutamente
a um mortal o homem que vive entre bens imortais."