(I) - Núcleo
de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde (NUPES), Faculdade
de Medicina, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de
Fora, MG, Brazil
(II) - Professor Thorsen de Psicologia, Lund University, Suécia
Revista Brasileira de Psiquiatria
Rev. Bras. Psiquiatr. vol.33 supl.1 São Paulo May 2011
RESUMO
OBJETIVO:
Contribuir para a validade da Classificação
Internacional de Doenças-11ª edição no
diagnóstico diferencial entre experiências espirituais/anômalas
e transtornos mentais revisando artigos de pesquisa sobre o tema
em psiquiatria e psicologia envolvendo populações
latino-americanas e/ou produzidos por pesquisadores latino-americanos.
MÉTODOS:
Pesquisa em bases de dados (PubMed, PsycINFO,
Scopus, and SciELO) por meio de palavras-chave (possessão,
transe, experiência religiosa, experiência espiritual,
Latin*, Brazil) em busca de artigos com dados psicológicos
e psiquiátricos originais em experiências espirituais.
Também foram analisadas as referências dos artigos
selecionados e autores na área foram contactados em busca
de dados e referências adicionais.
RESULTADOS:
Há evidências consistentes que
experiências psicóticas e anômalas são
frequentes na população geral e que em sua maioria
não estão relacionadas a transtornos psicóticos.
Frequentemente, experiências espirituais envolvem experiências
dissociativas e psicóticas de caráter não patológico.
Embora as experiências espirituais não estejam habitualmente
relacionadas a transtornos mentais, elas podem causar sofrimento
transitório e são frequentemente relatadas por pacientes
psicóticos.
CONCLUSÃO:
Propomos algumas características que
sugerem a natureza não patológica de uma dada experiência
espiritual: ausência de sofrimento, de prejuízo funcional
ou ocupacional, compatibilidade com o contexto cultural do paciente,
aceitação da experiência por outros, ausência
de comorbidades psiquiátricas, controle sobre a experiência
e crescimento pessoal ao longo do tempo.
* Embora o termo "psicótico"
seja geralmente utilizado para se referir a transtornos mentais
graves, experiências normalmente consideradas psicóticas,
como alucinações, inserções de pensamento
e vivências de passividade não são necessariamente
patológicas. Casos como estes seriam provavelmente melhor
agrupados por meio de um termo mais neutro como "experiências
anômalas" (10), por exemplo. Neste artigo, no entanto,
seguiu-se a sugestão de Jackson e Fulford (11) de utilizar
as expressões "fenômenos psicóticos"
ou "experiência psicótica" em um sentido
mais amplo para designar tanto experiências patológicas
como não patológicas. Daqui em diante, o termo "sintoma
psicótico" será utilizado apenas para designar
uma "experiência psicótica" patológica.
Introdução
Um número crescente de estudos
tem demonstrado a alta prevalência de experiências psicóticas*,
dissociativas ou incomuns na população geral, embora
a maioria dos indivíduos que vivenciam tais experiências
não sofra de transtornos psicóticos ou dissociativos
(1-4). Pessoas com estas vivências
parecem formar um grupo heterogêneo, no qual algumas são
afetadas por transtornos psiquiátricos e outras não.
De fato, alterações de consciência que podem
ser interpretadas como psicóticas têm sido relatadas
ao longo da história e interpretadas como tendo valor pessoal
e social, sendo consideradas ainda fontes de inspiração
nas artes, religião e outras áreas
(5,6). Uma vez que a maior parte do "conhecimento recebido"
sobre tais experiências baseia-se em amostras clínicas
e geralmente hospitalizadas, pouco se sabe de suas implicações
em populações não clínicas. Muitos clínicos
ao redor do mundo ainda não estão cientes desses resultados
recentes em populações não clínicas
e não possuem diretrizes clínicas para auxiliá-los
na compreensão de indivíduos que relatam experiências
pseudo-psicóticas ou outros eventos incomuns sem relação
com transtornos psicóticos ou outros quadros patológicos.
Esta situação resulta em um alto risco de diagnósticos
errôneos e iatrogenia.
Outro campo emergente em psiquiatria é o estudo das relações
entre espiritualidade e saúde mental. Um tema que foi pouco
explorado neste campo refere-se às experiências espirituais.
Do ponto de vista clínico, um conhecimento mais aprofundado
sobre o assunto é necessário, pois certas experiências
espirituais podem ser confundidas com episódios psicóticos,
uma vez que envolvem eventos de natureza visionária ou transcendental
que podem ser interpretados como sintomas de esquizofrenia. Por
outro lado, pacientes psicóticos podem apresentar sintomas
de conteúdo religioso/espiritual (7,8).
Em decorrência destes problemas, o Manual Diagnóstico
e Estatístico de Transtornos Mentais - 4ª Edição
(DSM-IV) introduziu uma nova categoria chamada "Problemas Religiosos
ou Espirituais" para direcionar a atenção clínica,
justificando a avaliação de experiências religiosas
e espirituais como parte constituinte da investigação
psiquiátrica sem necessariamente julgá-las como psicopatológicas.
Lukoff, Lu e Turner definem problemas religiosos como sendo conflitos
relacionados à fé e à doutrina (como perda
ou questionamento da fé e conversões religiosas) e
problemas espirituais como conflitos envolvendo a relação
com questões transcendentais ou derivados de práticas
espirituais (9). Como exemplos de problemas
espirituais, os autores mencionam experiências místicas
desencadeadas por práticas meditativas, experiências
de quase morte e emergências espirituais (desconforto e incapacidade
associados ao surgimento de experiências espirituais). Tais
experiências religiosas/espirituais não implicam, de
modo geral, em dificuldades psicológicas relevantes, mas
podem ser perturbadoras e levar à busca por avaliação
e tratamento médico ou psicológico. Nestes casos,
as experiências podem ser compreendidas como problemas religiosos
ou espirituais que não necessariamente constituem transtornos
mentais, podendo apenas refletir o modo da pessoa de adaptar-se
a uma nova fase da vida ou a uma experiência com efeitos potencialmente
positivos (12). Existe desde longa
data a ideia de que determinadas experiências psicóticas,
tais como as alucinações, possam ser parte de estágios
do desenvolvimento espiritual, e não apenas sintomas de um
transtorno psiquiátrico (13).
Com base nas considerações acima, acreditamos que
seria útil incluir diretrizes baseadas nas evidências
já disponíveis para auxiliar no diagnóstico
diferencial entre experiências espirituais, experiências
anômalas não patológicas e sintomas patológicos
reais na 11ª Edição da Classificação
Internacional de Doenças (CID-11). Para atingir este propósito,
revisamos artigos científicos das áreas de psiquiatria
e psicologia envolvendo populações latino-americanas
e/ou publicados por pesquisadores latino-americanos sobre o diagnóstico
diferencial entre experiências espirituais que se assemelham
a sintomas psicóticos e/ou dissociativos e transtornos reais.
Esta revisão poderá contribuir para a CID-11 em diversas
áreas, incluindo a classificação de transtornos
mentais na América Latina, e aprimorar a aplicabilidade global
das classificações de transtornos mentais, especialmente
no que se refere à esquizofrenia e outros transtornos.
Método
Foram realizadas várias buscas em bancos
de dados eletrônicos. No PubMed, utilizaram-se as expressões
de busca "((((possession) OR trance) OR religious experience)
OR spiritual experience) AND (latin *
OR Brazil)," as quais resultaram em um total de 140 referências;
no Scopus, buscas utilizando as expressões "ABS (possession
OR trance OR religious experience OR spiritual experience) AND ABS
(latin * OR Brazil)" acusaram 73
artigos; no banco SciELO, uma busca com as expressões "transe
OR possessão OR experiência religiosa OR experiência
espiritual" localizou 24 artigos; e, por fim, a busca realizada
no PsycINFO com os termos "trance" e "spirit
possession" resultou em mais de 700 artigos, a maioria
dos quais escapava ao tema desta revisão. As listas de referências
bibliográficas dos artigos selecionados foram examinadas
em busca de outras publicações relevantes e os pesquisadores
da área foram contatados e questionados sobre referências
e dados adicionais. A revisão foi focada em artigos com dados
originais relacionados aos aspectos psiquiátricos e psicológicos
de experiências espirituais, assim como em artigos de revisão
com ênfase em - mas não limitados a - populações
latino-americanas. Finalmente, realizou-se uma busca no banco de
dados PubMed a partir das expressões "psychotic
symtoms" e "general population" para
localizar artigos recentes representativos do estado atual da pesquisa
na área.
Resultados
1. Experiências psicóticas em
populações não clínicas
Um levantamento recente realizado pela Organização
Mundial da Saúde (OMS) envolvendo mais de 250.000 pessoas
de 52 países descobriu uma alta prevalência de experiências
psicóticas (que não ocorreram "quando você
não estava sonolento, dormindo ou sob a influência
de álcool ou drogas") na população geral
nos 12 meses anteriores ao levantamento: 12,52% na amostra total.
No entanto, a prevalência destas experiências variou
amplamente entre os países, de 1% dos entrevistados do Vietnã
até 46% do Nepal que relataram ao menos uma experiência
psicótica. Dentre os sete países latino-americanos
incluídos no levantamento, a prevalência variou entre
5,5% no Uruguai e 32% no Brasil (9% no Paraguai, México e
Equador, 15% na Guatemala e 21% na República Dominicana).
Embora associadas com o diagnóstico de esquizofrenia em apenas
10% dos casos, o número de experiências psicóticas
correlacionou-se moderadamente com pior estado de saúde (4).
Em uma amostra nacionalmente representativa de latinos vivendo nos
Estados Unidos, a prevalência de experiências psicóticas
ao longo da vida foi de 9,5%, mas 93% dos entrevistados que relataram
experiências psicóticas nunca haviam sido diagnosticados
com quaisquer transtornos psiquiátricos (14).
Os relatos de sintomas psicóticos nesta população,
no entanto, foram associados a maior desconforto emocional e incapacitação,
interpretados pelos autores do estudo mais como marcadores de morbidade
psiquiátrica geral (normalmente depressão, ansiedade
ou transtornos relacionados ao uso de substâncias) do que
de transtornos psicóticos. De forma interessante, cerca de
1/3 dos indivíduos que relataram experiências psicóticas
não sofriam de transtornos psiquiátricos conforme
avaliação feita com uma entrevista clínica
estruturada. A prevalência de experiências psicóticas
ao longo da vida foi associada à busca de conforto por meios
religiosos/espirituais. Uma alta prevalência de experiências
psicóticas (20,9%) também foi observada entre 1.005
pacientes de serviços de saúde geral em centros urbanos
nos Estados Unidos (15). Tais experiências
foram mais frequentes entre pacientes de origem hispânica
e com baixa renda e foram associadas com maior incidência
de transtornos mentais (geralmente depressão e ansiedade)
e incapacitação.
2. Práticas e experiências
espirituais
Desde o século XIX, psicólogos e psiquiatras
tenderam a considerar experiências espirituais como transtornos
mentais e envolvimento religioso como um marcador de patologia ou
imaturidade psicológica9, com poucas exceções,
como William James (16). Tal abordagem
era especialmente forte no caso de experiências espirituais
semelhantes a transtornos psicóticos e dissociativos, como
as que ocorrem dentro das tradições espíritas
e afro-americanas, bastante populares em países latino-americanos.
Esta abordagem psiquiátrica inadequada fomentou o preconceito,
a segregação e internações psiquiátricas
involuntárias (17-19).
Modos particulares para expressar doenças ou desconforto,
bem comoas crenças e práticas espirituais entre indivíduos
de origem latina podem implicar complicações adicionais
relativas ao significado de experiências psicóticas
nestas culturas. Portanto, é necessário buscar outros
marcadores de transtornos mentais para avaliar o significado clínico
dos relatos de tais experiências (15,
20). Apresentamos abaixo estudos envolvendo principalmente
populações latino-americanas que avaliaram critérios
para o diagnóstico diferencial. Dada a escassez de estudos
adequados, são apresentados ainda dados obtidos a partir
de outras populações.
Uma das maneiras de se encontrar marcadores do caráter patológico
de experiências psicóticas consiste na identificação
de características associadas à busca por assistência
médica. Lovatt et al. compararam uma amostra
clínica de pacientes com transtornos psicóticos e
uma população não clínica de pessoas
com histórico de experiências psicóticas (a
maior parte dos indivíduos neste grupo pertencia a associações
espiritualistas ou paranormais) no Reino Unido (21).
Os dois grupos apresentaram os mesmos escores totais em uma medida
de percepções anormais/psicóticas; no entanto,
diferenças importantes foram observadas. A amostra clínica
teve maiores índices de problemas cognitivos/de atenção
(bloqueio do pensamento, déficits de atenção)
e de sintomas depressivos e ansiosos. Com respeito a experiências
anômalas/psicóticas, a população clínica
apresentava uma propensão substancialmente maior para atribuí-las
a outras pessoas (avaliar as próprias experiências
como sendo causadas por terceiros [OR = 21]) e para considerar estas
experiências como perigosas, negativas e ansiogênicas.
A amostra não clínica, por outro lado, tendia a compreender
tais experiências como normais e positivas. Em resumo, os
grupos não apresentaram diferenças com respeito aos
escores totais de experiências anômalas/psicóticas,
mas diferiram quanto ao tipo específico, interpretação
e resposta a estas experiências. Os autores concluíram
que "avaliar tais experiências como parte da gama normal
de experiências humanas parece ser, portanto, uma medida adaptativa;
ao passo que avaliações paranóides e externalizantes
parecem estar associadas a uma 'necessidade de cuidado" clínico
(p.817). Da mesma forma, pessoas que
relataram ouvir vozes, mas que não possuem problemas psicológicos,
diferem de pacientes com transtornos mentais em variáveis
como controle sobre a experiência e conteúdo mais benevolente
do que as vozes dizem (22).
Estudos envolvendo pessoas que praticam o espiritismo ouligadas
à parapsicológia no Brasil, Argentina e Peru demonstraram
que estes subgrupos específicos apresentam uma alta prevalência
de experiências anômalas/psicóticas (visões,
vozes, experiências de influência, transmissão
de pensamento etc.), mas que tais experiências são,
em geral, associadas a níveis mais altos de espiritualidade
e melhor saúde mental, ajustamento social e bem-estar, ao
invés de serem relacionadas à patologia. Estes fenômenos
são frequentemente percebidos como assustadores no início,
mas costumam ser mais tarde interpretados como tendo consequências
positivas profundas (como promotores de bem-estar, de significado
para a vida, de esperança, crenças espirituais etc.)
por aqueles que os vivenciam (23-25).
Outros autores também enfatizaram os efeitos potencialmente
benéficos de experiências anômalas (26-28).
A mediunidade, definida como um conjunto de experiências nas
quais um indivíduo (o médium) alega entrar em contato
com ou estar sob o controle da personalidade de uma pessoa já
falecida ou outro ser imaterial, é um tópico relevante
nesta discussão. Experiências como estas, às
vezes equiparadas à possessão espiritual voluntária,
são também chamadas de "canalização"
e têm sido relacionadas à produção de
vários trabalhos criativos na literatura, na música
e nas artes em geral (29). Formas institucionalizadas
de possessão e outros estados alterados de consciência
induzidos ritualmente foram descritos em 53% de um total de 488
sociedades ao redor do mundo (30) e
são onipresentes tanto na história ocidental como
na oriental (31). Atualmente, estas
experiências são amplamente difundidas na América
Latina e ao redor do globo por meio de grupos religiosos, tais como
os católicos carismáticos, evangélicos pentecostais,
espíritas e religiões afro-americanas.
Koss-Chioino realizou um estudo aprofundado sobre a integração
de cuidados em saúde mental e práticas de cura realizadas
por espíritas em Porto Rico (32, 33).
A maioria dos médiuns consultados relatou que começou
a ver espíritos (geralmente parentes falecidos, anjos ou
outros espíritos amigáveis) quando criança
ou na adolescência, o que teve um efeito positivo no sentido
de prover ajuda ou suporte emocional em momentos de crise. Embora
a maioria dos pais aceitasse as experiências vividas por seus
filhos, alguns as ignoravam ou as interpretavam como transtornos
emocionais. A maior parte dos médiuns jamais havia buscado
assistência em saúde mental ou recebido diagnósticos
de transtornos mentais. Todos os médiuns participantes haviam
passado por processos de iniciação em centros espíritas
para utilizar suas habilidades mediúnicas para ajudar outras
pessoas. As características identificadas pelos autores como
úteis para diferenciar experiências espirituais de
transtornos mentais foram o controle sobre alterações
no estado de consciência e o aprimoramento de habilidades
interpessoais (por exemplo, práticas mediúnicas dirigidas
para a cura).
Negro et al. avaliaram 110 pessoas (60% das quais eram médiuns)
que frequentavam cursos em centros espíritas na cidade de
São Paulo, Brasil (34, 35).
No espiritismo, todas as atividades (incluindo cursos e intervenções
mediúnicas) são gratuitas e compreendidas como atividades
de caridade. Embora tivessem altos escores em medidas de dissociação,
os médiuns possuíam bons índices de socialização
e adaptação (educação, vida profissional
e nível de felicidade), além de baixos índices
de abuso na infância. O treinamento mediúnico foi associado
com controle sobre as experiências, mas não com níveis
maiores de experiências mediúnicas. Patologia foi relacionada
com menor controle sobre a atividade mediúnica, idade mais
baixa, início tardio de experiências anômalas,
menor suporte social e mais sintomas psiquiátricos anteriores.
Níveis mais altos de atividade mediúnica foram associados
a escores menores de evitação de danos (uma dimensão
da personalidade comum em indivíduos com propensão
ansiosa e caracterizados por preocupações pessimistas
na antecipação de problemas futuros e comportamentos
de evitação passivos) e não estavam relacionados
com dependência de recompensa (sentimentalidade e dependência
de aprovação alheia).
Nosso grupo realizou um estudo envolvendo 115 médiuns de
centros espíritas da cidade de São Paulo selecionados
aleatoriamente. A amostra possuía alto nível socioeducacional,
baixa prevalência de transtornos mentais e era socialmente
bem adaptada. Os médiuns relataram altos níveis de
experiências psicóticas e dissociativas (incluindo
uma média de quatro sintomas schneiderianos de primeira ordem,
geralmente considerados na literatura psiquiátrica como sugestivos
de esquizofrenia, mas também encontrados entre indivíduos
com transtornos dissociativos, tais como pensamentos audíveis
ou inserção de pensamentos). Tais experiências,
no entanto, não tinham correlação com outros
marcadores de transtornos mentais, como adaptação
social, sintomas psiquiátricos comuns (depressão,
ansiedade ou queixas psicossomáticas) e história de
abuso na infância. De fato, experiências de incorporação
(experiência de ser completamente controlado por uma entidade)
correlacionaram-se com melhores índices de ajustamento social
e menos sintomas psiquiátricos. Experiências auditivas
e psicografia também se correlacionaram com melhor ajustamento
social (36-39). Em comparação
com dados de pacientes com transtorno de múltiplas personalidades,
redefinido como transtorno dissociativo de identidade (TDI), os
médiuns apresentavam melhor ajustamento social, menor prevalência
de transtornos mentais, uso menos frequente de serviços de
saúde, ausência de uso de antipsicóticos, menor
prevalência de histórico de abusos físicos ou
sexuais na infância, menos sonambulismo, menos características
secundárias de TDI e menos sintomas de transtorno de personalidade
limítrofe (38).
Em geral, as experiências mediúnicas relatadas surgiram
na infância e fora de ambientes culturais receptivos (parentes
e conhecidos frequentemente definiam tais experiências como
"loucura" ou "possessão demoníaca"),
o que gerava desconforto e sentimentos de ser diferente e socialmente
isolado, embora seja importante mencionar que a cultura brasileira
é mais aberta do que a maioria das outras culturas a este
tipo de manifestação. Somente décadas depois
as experiências mediúnicas eram integradas como eventos
espirituais saudáveis. Durante a realização
do estudo, experiências como ouvir vozes, ver espíritos
e eventos de influência, embora fossem mais comuns em contextos
rituais, também ocorriam no cotidiano, fora de tais contextos
(28,36).
Em outra investigação, Laria estudou três grupos
de cubanos: médiuns espíritas, pacientes com transtornos
mentais e um grupo controle sem médiuns ou pacientes (40).
Os médiuns relataram maior incidência de experiências
dissociativas comuns, menores índices de psicopatologia,
menos experiências traumáticas (incluindo abuso sexual)
e menor desconforto subjetivo do que os pacientes.
Reinsel observou que médiuns norte-americanos relatavam mais
experiências de despersonalização e absorção
do que controles, mas que os dois grupos não diferiam com
relação ao bem-estar subjetivo ou desconforto psicológico
(41). Em contraste, Seligman relatou
que, no candomblé (religião afro-brasileira), os médiuns
tendem a somatizar e a experimentar outros transtornos, embora este
estudo tenha a limitação de não controlar a
influência do perfil socioeconômico como uma potencial
variável de confusão (42).
No anseio de compreender as experiências anômalas em
geral, alguns estudos investigaram o perfil de sintomas esquizotípicos
(positivos, negativos e de desorganização) na população
geral. A esquizotipia é definida como um construto de personalidade
multifatorial cujos aspectos parecem localizar-se em um continuum
com a psicose (43). Um modelo de três
fatores compreendendo sintomas positivos (experiências anômalas
cognitivo-perceptuais), negativos (prejuízos interpessoais,
anedonia física ou social) e de desorganização
foi proposto. Claridge descreveu uma classe de "esquizotípicos
felizes", pessoas que têm experiências cognitivas
e perceptuais incomuns sem relação com sintomas negativos
ou de desorganização. A esquizotipia positiva foi
consistentemente associada a crenças e experiências
paranormais (43). Em uma amostra de
estudantes universitários de Buenos Aires, na Argentina,
e de Lima, no Peru, voluntários "espiritualizados"
tinham maiores níveis de experiências paranormais e
de sintomas esquizotípicos positivos do que voluntários
"não-espiritualizados". Não houve diferenças
entre os grupos com relação aos sintomas negativos
e de desorganização (24).
Schofield e Claridge investigaram participantes de grupos com interesses
paranormais na internet no Reino Unido (44).
Os autores observaram que a desorganização cognitiva
moderava a associação entre esquizotipia e avaliação
subjetiva de experiências paranormais como agradáveis
ou desagradáveis. O fato de possuir um sistema de crenças
capaz de fornecer sentido às experiências esquizotípicas
positivas teve um efeito protetor, relacionado com menor desorganização
cognitiva e experiências paranormais mais agradáveis.
Os autores sugerem que aqueles que não possuem esta estrutura
cognitiva de proteção seriam "bombardeados por
eventos estranhos que não conseguem explicar" (p.1910)
e estariam mais vulneráveis a sentimentos desconfortáveis
e mau funcionamento, posto que tais experiências seriam assustadoras
e perturbadoras. Isso pode explicar como o sistema explicativo de
várias tradições espirituais pode servir a
propósitos terapêuticos (45).
Um estudo prospectivo de 20 anos realizado na Suíça
demonstrou uma alta prevalência de experiências psicóticas
entre pessoas na faixa dos 20 anos, a qual diminuiu ao longo do
acompanhamento. Consoante com as dimensões da esquizotipia,
a análise fatorial das experiências psicóticas
gerou dois fatores: o primeiro relacionado principalmente com alucinações
e experiências de influência, e o segundo compreendendo
delírios paranóides e dificuldades interpessoais.
Estes dois fatores tinham padrões diferentes de preditores,
curso e desfecho funcional (46).
3. Experiências religiosas em pacientes
psicóticos
Um estudo envolvendo mulheres porto-riquenhas com
transtornos mentais graves vivendo nos Estados Unidos mostrou que
os conteúdos mais frequentes de alucinações
são relacionados à religião/espiritualidade,
e que crenças e práticas religiosas proveem uma fonte
de significado para lidar com sintomas psicóticos. Além
disso, um dos achados mais importantes e frequentes do estudo referiu-se
à incapacidade dos médicos para reconhecer e abordar
o significado (geralmente religioso) destas experiências psicóticas
junto aos pacientes, além da necessidade de se considerar
a história religiosa na avaliação inicial dos
mesmos (47). A importância de
levar em consideração crenças espirituais e
inclusive de desenvolver alianças com grupos religiosos/espirituais
no tratamento de pacientes foi ilustrada por outros relatos envolvendo
pacientes psicóticos em Porto Rico (28,
32, 33, 39) e na Suíça (48).
A importância de temas religiosos para pacientes psicóticos
também foi observada no Brasil por meio de um estudo etnográfico
envolvendo 21 pacientes em primeiro surto psicótico que buscaram
atendimento em um serviço de emergência psiquiátrica
na cidade de São Paulo (49).
Em quase todos os casos (20), os pacientes e suas famílias
haviam buscado fontes de ajuda religiosa (geralmente pentecostais
ou umbanda, uma religião afro-brasileira) paralelamente aos
recursos psiquiátricos.
Conclusão
Na última década, tornou-se claro que experiências
psicóticas são bastante prevalentes na população
geral, e que em aproximadamente 90% dos casos elas não têm
conexão com transtornos psicóticos. Designar tais
experiências como "sintomas psicóticos" resultaria
em cerca de 90% de falsos positivos (14).
Acreditamos que outros termos propostos na literatura, como "experiências
psicóticas" (11) ou o mais
neutro "experiências anômalas", seriam mais
adequados para descrever tais fenômenos (10).
Em um artigo recente, Van Os sugeriu uma reformulação
completa de nossa compreensão sobre os sintomas e transtornos
psicóticos. O autor propõe uma conexão entre
a psicose e as experiências humanas normais, uma vez que transtornos
psicóticos relacionam-se com experiências partilhadas
pela população geral. O artigo enfatiza o quanto ainda
não sabemos sobre tais experiências e a necessidade
de uma abordagem mais humilde nesta área (50)
(veja Bentall (22) para mais dados
sobre alucinações). As evidências sobre a alta
prevalência de experiências psicóticas na população
geral não clínica, em conjunto com outras descobertas
científicas recentes, alimentaram críticas sofisticadas
aos conceitos atuais sobre a esquizofrenia e aos critérios
diagnósticos utilizados na CID-10 e no DSM-IV (51,
52). Os achados indicam a necessidade de conceitos e critérios
diagnósticos para a esquizofrenia com maior embasamento empírico,
como proposto por autores que afirmam que há "uma distância
significativa entre a tradição na qual se baseia a
esquizofrenia definida pelo DSM-IV e o conhecimento acumulado nas
últimas décadas (...)" e que existe "uma
enorme lacuna entre as descobertas formuladas nas teorias contemporâneas
sobre a esquizofrenia e a forma (não baseada em evidências)
com que a esquizofrenia é definida no DSM" (p.409, 413)
(52).
O reconhecimento pelos médicos e pela população
de que experiências psicóticas são bastante
comuns e não necessariamente patológicas pode não
apenas melhorar a prática clínica, mas também
contribuir para diminuir o estigma associado aos transtornos psicóticos,
que se baseia na premissa errada de que tais eventos são
totalmente distintos da experiência humana comum (22,
50, 51). Castillo, em uma revisão sobre psicose e
cultura, sugere que episódios psicóticos podem durar
menos e ter melhores desfechos em culturas capazes de acolhê-los
com "compreensão, suporte social e práticas tradicionais
de cura" (p.15), em parte explicados pelo fato de que estes
fatores podem resultar em menores níveis de emoção
expressa e fornecer uma base para a compreensão de tais experiências,
além de estratégias para reduzir seus efeitos negativos
(27). Em sociedades mais individualistas
e de orientação biológica, sentimentos de rejeição,
isolamento social e desamparo relacionados à possibilidade
de se ter uma doença crônica e incurável podem
contribuir para piorar a evolução do quadro.
Dados epidemiológicos sugerem fortemente que pessoas que
têm experiências psicóticas formam um grupo heterogêneo
no qual alguns sofrem de transtornos mentais e outros não,
como sugerido por investigações que exploram a relação
entre experiências psicóticas e espirituais (34,
37, 38, 53). A partir de uma perspectiva clínica,
é importante ter em mente o equilíbrio entre dois
extremos: considerar todas as experiências anômalas
como marcadores de transtornos psicóticos ou mesmo não
psicóticos, por um lado; ou entendê-las como irrelevantes
para a nossa compreensão do quadro de determinado paciente,
por outro (20, 54).
Nas últimas décadas, surgiram evidências mostrando
que o envolvimento religioso e as experiências espirituais
são geralmente associados a desfechos positivos em saúde
(55, 56). Como expresso pelos proponentes
da seção Problemas Religiosos ou Espirituais do DSM-IV,
"a resposta do clínico pode determinar se a experiência
será integrada e utilizada como um estímulo para o
crescimento pessoal, ou se será reprimida como um evento
bizarro que pode indicar instabilidade mental" (p.679) (9).
De modo geral, estudos transculturais mostram que pessoas que vivenciam
possessões espirituais, glossolalia e práticas similares
dentro de contextos rituais não têm maiores taxas de
patologia em comparação com outros grupos, e em alguns
casos parecem viver melhor a despeito de histórias eventuais
de traumas ou situações adversas importantes, o que
sugere que estas práticas podem ter efeitos terapêuticos
(26).
A associação entre experiências espirituais
e níveis normais ou até melhores de saúde mental
e ajustamento social não corroboram a visão de que
experiências mediúnicas são sintomas menos graves
em um continuum com os transtornos psicóticos ou dissociativos.
Se este fosse o caso, uma correlação diretamente proporcional
entre a intensidade de experiências mediúnicas e transtornos
psiquiátricos ou má adaptação social
seria provavelmente encontrada (37).
Estas afirmações não se aplicam, no entanto,
aos casos de possessão involuntária ou não
controlada, as quais podem causar desconforto e prejuízos
(26).
Para aumentar sua sensibilidade cultural, os manuais diagnósticos
consideram que experiências dissociativas devem causar desconforto
ou incapacitação e não podem ser aceitas pelo
grupo cultural local para que sejam classificadas como patológicas
(1, 57). Embora úteis, estes
critérios são limitados e não podem ser utilizados
de forma automática. Por exemplo, experiências espirituais
(cujos desfechos demonstram que não implicam patologia) podem
ocorrer em ambientes culturais não receptivos a tais eventos,
resultando em desconforto significativo para os envolvidos (36).
Ao lidar com pessoas oriundas de contextos culturais diferentes,
clínicos e pesquisadores devem buscar o significado "êmico"
(culturalmente intrínseco) da experiência em questão,
ao invés de serem guiados apenas por perspectivas universalistas
e gerais ("éticas"). Até mesmo os grupos
religiosos reconhecem que transtornos psiquiátricos ou neurológicos
são frequente e erroneamente rotulados como experiências
espirituais, adiando a implementação de tratamento
adequado (36, 39, 58, 59). Diagnósticos
equivocados podem ser feitos em ambas as direções
por médicos e líderes espirituais, o que destaca a
necessidade de diretivas mais sofisticadas, não tendenciosas
e baseadas em evidências para sustentar nosso raciocínio
clínico. Tem havido carência de diretrizes baseadas
em evidências empíricas para fazer o diagnóstico
diferencial entre experiências espirituais saudáveis
e transtornos mentais.
Uma limitação deste artigo refere-se à escassez
de estudos de qualidade planejados especificamente para investigar
o tema em questão. Entretanto, a convergência dos dados
obtidos por autores diferentes a partir de populações
distintas nos permita tirar conclusões e delinear recomendações
razoavelmente confiáveis. Embora tenhamos discutido diretrizes
para o diagnóstico diferencial em outras publicações,
(60, 61) investigações
adicionais como as que podem ser obtidas a partir de estudos longitudinais
ainda são necessárias (62).
Com base no conhecimento atualmente disponível, seria útil
incluir informações relativas ao diagnóstico
diferencial entre experiências espirituais e transtornos mentais
na CID-11. Clínicos e pesquisadores devem perceber a importância
de se:
- Reconhecer a relevância da competência
cultural no manejo de pacientes com relatos de experiências
espirituais e desenvolver esta competência e o raciocínio
clínico no estabelecimento do diagnóstico diferencial
entre experiências espirituais e transtornos mentais. Isso
deve ajudar a reduzir a ocorrência de danos iatrogênicos
ao evitar o risco de patologização de comportamentos
saudáveis e a expandir a relevância transcultural
da CID-11;
- Reconhecer que experiências dissociativas,
psicóticas ou outros eventos incomuns não são
necessariamente patológicos, embora possam causar desconforto
caso o ambiente circundante não seja receptivo ou não
forneça uma parâmetros para uma interpretação
não patológica de sua ocorrência;
- Estimular pesquisas que expandam o nosso conhecimento
sobre as experiências espirituais, melhorando nossa compreensão
sobre sua natureza (por exemplo, prevalência, fatores precipitantes,
fenomenologia e desfecho) para que possamos realizar diagnósticos
diferenciais e manejo clínico adequados.
Embora a maior parte deste artigo se baseie em contribuições
da América Latina, os temas discutidos aqui não são
relevantes apenas para minorias étnicas ou terras exóticas,
um preconceito comum em relação à psiquiatria
cultural63, mas também são importantes para a prática
clínica ao redor do mundo, uma vez que pesquisas demonstram
altos níveis de experiências psicóticas associadas
a crenças religiosas e envolvimento religioso em todo o planeta
(4, 13, 64). Esta é outra razão
para que se inclua ao menos uma breve discussão sobre o assunto
na CID-11, que tem o propósito de servir a todos os países.
Dado o reconhecimento crescente da importância da religiosidade
e da espiritualidade e de suas implicações para a
avaliação diagnóstica e o planejamento terapêutico,
várias organizações médicas recomendam
a investigação da história religiosa/espiritual
do paciente e práticas relacionadas durante a avaliação
clínica (65, 66). A obtenção
destes dados de pacientes com relatos de experiências psicóticas
deve servir não apenas para aumentar a precisão diagnóstica
e evitar a rotulação de experiências espirituais
potencialmente saudáveis como patológicas, mas também
para ajudar os clínicos a lidarem melhor com pacientes psicóticos.
Recomendação
Considerando-se que crenças
e experiências religiosas e espirituais podem afetar a saúde
mental e a forma com que os pacientes lidam com problemas e transtornos
mentais, e que experiências espirituais saudáveis podem
apresentar características que se assemelham a sintomas dissociativos
e psicóticos, é recomendável investigar o contexto
e as crenças, práticas e experiências espirituais
e religiosas do paciente.
É fundamental desenvolver
a competência cultural e o raciocínio clínico
para compreender o sistema de referência cultural do indivíduo
e analisar a relevância clínica de experiências
que podem se assemelhar a sintomas dissociativos e psicóticos.
Profissionais clínicos devem estar cientes de que a maioria
das pessoas que relatam experiências anômalas, psicóticas
ou dissociativas na realidade não sofre de transtornos psicóticos
ou dissociativos. Alguns elementos (Tabela
1), embora não necessariamente presentes ou suficientes
em si, são indicativos da natureza não patológica
de tais experiências. Embora contra-exemplos patológicos
possam ser encontrados para cada um destes parâmetros (por
exemplo, episódios catatônicos sem sofrimento psicológico),
as variáveis descritas na Tabela 1
geralmente falam contra a presença de psicopatologia. Quanto
mais destes elementos estiverem presentes, de modo geral, menor
é a possibilidade de que a experiência em questão
esteja relacionada a um transtorno mental.
Os autores reconhecem que a utilização
destas diretrizes impõe algumas demandas sobre os profissionais
clínicos, no entanto, fazer menos resultaria em ignorar um
corpo crescente de evidências e, mais importante, na possibilidade
de causar danos ao invés de benefícios.
- clique para ampliar -
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Fonte: Revista Brasileira de Psiquiatria
• vol 33 • Supl I • maio 2011
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