Antonio
Gouvêa Mendonça
> A experiência religiosa e a institucionalização
da religião
Antonio Gouvêa
Mendonça é doutor em Ciências Humanas pela Universidade
de São Paulo e professor do Curso de Pós-Graduação
em Ciências da Religião, Universidade Presbiteriana Mackenzie,
São Paulo.
MENDONCA, Antonio Gouvêa. A experiência
religiosa e a institucionalização da religião.
Estudos Avançados. São Paulo, v. 18, n. 52, 2004.
RESUMO
NA DINÂMICA do campo religioso brasileiro,
grupos diferentes surgem constantemente, permanecendo alguns, desparecendo
outros. Este trabalho constitui uma tentativa de mostrar como esses
grupos situam-se num gradiente que caminha do momento inicial de
um grupo até sua institucionalização final,
seja em forma de igreja ou outra segundo sua maneira de instituir
o sagrado. A referência teórica principal é
o conceito de “sagrado selvagem” de Roger Bastide.
ABSTRACT
WITHIN the dynamics of the Brazilian religious
milieu, different groups are constantly emerging – some remain,
while others disappear. This essay is an attempt to show how these
groups constitute a gradient, a continuum that stretches from their
inception to their ultimate institutionalization, either as a church
or in peculiar manners of institutionalizes sacredness. The main
theoretical reference is Roger Bastide's concept of “savage
sacredness”.
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________________
EM 10 DE ABRIL de 1974 falecia em
Paris, aos 76 anos, Roger Bastide, pioneiro da Sociologia da Religião
no Brasil. O serviço fúnebre, oficiado na capela protestante
da Clínica de Maisons-Laffite pelo pastor Raymond Leenhardt,
do Instituto de Línguas Orientais da Sorbonne, foi acompanhado
por "tambores religiosos, alternando toques brasileiros e africanos,
reunindo assim numa só homenagem as religiões que sem
dúvida formavam o pano de fundo de todo o pensamento de Roger
Bastide, homem e sociólogo: o protestantismo e os cultos afro-brasileiros" (1).
É extraordinário que um protestante de tradição
calvinista, formado, portanto, no rigor dogmático e ético
da Reforma franco-suíça, com seu culto extremamente
intelectual e, diríamos mesmo, desencantado e quase secular,
beirando o profano no sentido puramente técnico deste termo,
tivesse uma cerimônia fúnebre de tal natureza. Pois que
os tambores afros não representavam outra coisa se não
o mistério de cultos em que os deuses se mostram de maneira
diferente, não enquadrados em dogmas ou éticas institucionais.
Talvez um trecho do sermão fúnebre do pastor Leenhardt
nos ajude a entender a personalidade de Bastide, personalidade que
o levou a perseguir tenazmente a percepção do sagrado
nas religiões. Disse o pregador:
"Sua grandeza d'alma se desenvolveu
estreitamente ligada ao torrão cevenol, e a mensagem evangélica
trouxe ao vigor de seu pensamento uma abertura, um equilíbrio
entre espírito e coração…" (2).
Há, neste trecho do sermão, uma chave para entender
a razão do porque um protestante, formado e preso a uma tradição
religiosa fortemente instituída, pode abrir-se para religiões
sem dogmas e a-éticas e praticamente semi-institucionalizadas,
ou mesmo anteriores a qualquer institucionalização.
O pastor Leenhardt faz uma ligação entre a mensagem
evangélica que Bastide recebera na sua formação
na região de Cévennes, na França, teatro de terrível
guerra religiosa provocada pela revogação do Edito de
Nantes, em 1685, por Luís XIV, e o equilíbrio entre
o espírito, aqui a razão, e o coração,
isto é, a emoção. Pode-se inferir que a tradição
de lutas religiosas pode introduzir numa cultura religiosa minoritária
fortes traços emocionais que se superpõem à religiosidade
dogmática e mesmo intelectual.
No caso de Bastide, então, o peso do Evangelho, a narrativa
dos atos de Jesus de Nazaré, antecede, não somente no
tempo mas também no conceito, a progressiva institucionalização
do Cristianismo. Se isto é verdade, embora não me lembre
de nenhuma referência feita por ele, ou por alguém a
respeito dele, que autorize o que estou dizendo, parece que Bastide
se alinha, embora de forma absolutamente distinta, de um lado, aos
teólogos liberais do século XIX e, de outro, aos místicos
que viveram muito próximos, mas fora da igreja.
Os chamados liberais evangélicos buscavam, antes de qualquer
outra coisa, o modelo de beleza ética encarnado em Jesus de
Nazaré, historicamente comprovado, e os místicos, uma
contínua aproximação não mediada do mesmo
Senhor, tido como existente e vivo, mas não sujeito aos limites
do dogma e da ética institucionais. Se os liberais buscavam
provar a historicidade de Jesus, ao mesmo tempo livrando-o, como dizia
Harry Emerson Fosdick (3), das teologizações
já presentes nos textos evangélicos, os místicos
buscavam Jesus pelo atalho da intuição não discursiva.
Não é exagero dizer que, em última instância,
tanto os liberais como os místicos prescindiam da instituição
religiosa, neste caso a igreja, como necessária para a vida
cristã. Alguns liberais protestantes foram hostilizados pela
ortodoxia, mas a história registra que o padre Alfred Loisy
(1857-1949), líder do movimento modernista católico,
foi excomungado em 1908 ou 1909 pelas idéias por ele expostas
no seu célebre livro L'Evangile et l'Eglise, publicado em 1902.
Neste livro, Loisy exara a célebre frase "Jesus pregou
o Reino e veio a Igreja" (4).
Quanto aos místicos, pela própria natureza de sua experiência
religiosa, difícil de ser posta em forma discursiva e sistemática,
em geral não incomodavam a igreja. Regra geral, têm uma
trajetória paralela à vida da igreja, não contribuindo
diretamente para a sistemática, mas oferecendo exemplos notáveis
para a vida cristã.
Em suma, o que estou querendo dizer é que esta questão
da experiência religiosa, ou a visão e a experimentação
do sagrado como sendo algo exclusivo de religiões exóticas
e primitivas, não prevalece hoje no estudo das religiões.
A história da vida institucional do Cristianismo mostra, em
todas as suas diversas manifestações, que a experiência
religiosa, seja individual ou coletiva (neste caso, grupos ou comunidades
místicas em fase às vezes pré-institucional),
está sempre presente provocando retornos e simplificações
institucionais.
A intenção deste texto é demonstrar que entre
a experiência religiosa e a institucionalização
da religião há um caminho às vezes curto, às
vezes longo, que em certos casos se completa e noutros não.
Para isso, dedicarei espaço tanto para as teorias sobre a experiência
religiosa como para os processos de institucionalização
e suas formas de diferenciação por estágios.
As formas do sagrado
O subtítulo em si já denota uma dificuldade lógica
ou um paradoxo de conceito, pois que o sagrado absolutamente a priori
não pode ter formas, pois que se as tivesse seria objeto de
conhecimento sensível. E não o é. A experiência
do sagrado fundamenta-se num fenômeno, numa aparição.
Ora, um fenômeno, ou uma "aparição"
como preferem os existencialistas, por si só, ou por definição,
já é uma limitação do ser, não
é todo o ser. O sagrado da experiência não se
mostra por inteiro, pois que se isto ocorrer já não
é mais um sagrado, não é um deus.
Comecei falando em Roger Bastide e vou caminhar por um pouco com ele
nesta questão, embora na ordem dos autores que pretendo examinar,
ele não seja o primeiro. Começo por Bastide pelo fato
de ter sido ele o criador de um conceito que se tornou clássico
em Ciências da Religião: o conceito de "sagrado
selvagem". Além desse conceito, Bastide criou o de "cisão"
(coupure) que pode nos ajudar a compreender outras questões,
como o choque ético entre culturas religiosas diferentes e
a possibilidade de viver uma religião sem os compromissos institucionais.
Tratemos primeiro do tema do "sagrado selvagem", um dos
textos mais ricos de Bastide e que traz em si uma teoria consistente
a respeito das variações da experiência do sagrado
nas religiões. O livro, que traz o título do seu último
capítulo ("Le sacré sauvage") (5),
foi o último de Roger Bastide e contém artigos publicados
entre 1931 e 1973. O livro saiu em 1977 por iniciativa de seu amigo
Henri Desroche, de quem falarei mais adiante.
O capítulo sobre o "sagrado selvagem" parte de recorrências
do sagrado no sonho, nos mitos, na prece, no milenarismo do candomblé
da Bahia. Neste ponto, Bastide parte de seus conhecidos pontos de
vista psicológicos e psicanalíticos sobre a religião.
Segundo ele, o homem é uma "máquina de fazer deuses"
que, à medida em que o sagrado se torna "frio" (froid)
nas instituições religiosas (igrejas) recria o sagrado
"quente" (chaud), que ele chama de "sagrado selvagem".
A irrupção do sagrado constitui um ponto de efervescência,
un point d'orgue, isto é, uma suspensão na cadência
musical (caldeirão).
Émile Durkheim afirmara que a religião surge nos estados
de efervescência social, em que o tempo sagrado interrompe o
tempo profano das atividades sociais e econômicas. Bastide conclui,
a partir daí, que os estados de efervescência religiosa
não são duráveis.
Após a efervescência há uma queda do fervor sociológico.
A religião já instituída desenvolve-se a partir
dessa queda "como gestora da experiência do sagrado".
Essa gestão do sagrado pela igreja, diz Bastide, ao contrário
do que se pode pensar, tem um aspecto ou valor positivo, pois que
assegura sua continuidade sob a forma de uma comemoração,
de uma "lembrança" ensurdecida, de uma memória
ou tradição. Por outro lado, porém, a instituição,
através de sua liturgia burocratizada, impede que o sagrado
volte em inovações perigosas, e também com outro
discurso, um discurso diferente do aceito pela ortodoxia. A liturgia
padrão, assim como o discurso certo da ortodoxia, aprisiona
o sagrado, transformando-o de selvagem em dominado.
Repetindo o que eu disse de início, mas agora com as próprias
palavras de Bastide, "toda igreja constituída tem, sem
dúvida, seus místicos, mas ela desconfia deles, ela
lhes delega seus confessores e seus diretores para dirigir, canalizar,
controlar seus estados extáticos, quando ela não os
prende em algum convento que seus gritos de amor perdido não
possam perfurar". Os movimentos de reforma, as heresias, os messianismos
e os milenarismos são expressões sociais do desejo de
volta a um passado vibrante e efervescente de "deuses sonhados".
Daí, todos esses delírios místicos que, de vez
em quando, abalam o equilíbrio das igrejas.
Os católicos sonhariam com Joaquim de Fiore e, após
ele, com o reino do Espírito Santo que substituiria os reinos
da lei e da graça, um reino messiânico de guerra contra
a opressão, como exemplo a Teologia da Libertação,
ou um reino de liberdade e de paz, como no movimento de renovação.
Em ambos os casos, algo que, embora no âmbito da igreja, manteria
boa margem de autonomia a partir da liberação, ao menos
parcial do sagrado instituído ou dominado. No protestantismo,
os despertamentos, como o do século XIX, liberaram o sagrado
para sacudir os pecadores impenitentes, para em seguida subordiná-los
à ética do trabalho e do progresso sob a égide
da moral vitoriana; os pentecostalismos, por sua vez, substituem a
religião do livro, sistemática e racional, pela inspiração
divina com parcial descontrole do sagrado.
Neste ponto, é sugestivo que apontemos as diferenças
entre o catolicismo e o protestantismo, no que tange ao controle do
sagrado. No catolicismo, os mecanismos de controle do sagrado são
mais elásticos. Raramente o rigorismo institucional se preocupa
com os místicos. Estes, embora vivam à sombra do sagrado
como tal, portanto desteologizado, vivem ao mesmo tempo sob o pálio
da igreja à qual confessam. Quando, por um motivo ou outro,
propõem inovações, são submetidos às
regras de uma ordem. Se revolucionários, vão aos poucos
também sendo submetidos à hierarquia institucional.
Raramente a Igreja Católica exclui os que pretendem liberar
o sagrado; antes, os envolve com seu pálio e os transforma
em agentes eficientes da sua continuidade, como diz Bastide.
No protestantismo, ao contrário, os inovadores, os reformadores,
todos aqueles que se esforçam por voltar a um sagrado mais
"quente", são logo excluídos. Como o sistema,
ou princípio, de ordenação tornou-se legal ou
burocrático, independente da transmissão do carisma,
os dissidentes formam logo outras instituições e consagram
seus pastores sem outras formalidades. Além disso, a ausência
de um centro exclusivo de poder e de gestão do sagrado permite
o surgimento circunstancial de confissões de fé que
sustentam as diversas denominações. Para simplificar
e exemplificar, poderíamos dizer que as tradições
surgidas diretamente da Reforma, nas suas vertentes principais que
foram a anglicana, a luterana e a calvinista ou reformada propriamente
dita, mantendo, ou procurando manter, seus elementos religiosos fundantes,
viram e continuam vendo sucessivas e múltiplas dissidências
que se propõem a recuperar um sagrado mais "quente".
Nesse permanente movimento de aprisionamento e liberação
parcial do sagrado, numa seqüência dialética de
afirmação e negação, pode-se depreender
uma lei que rege o caminho da experiência religiosa (experiência
do fenômeno do sagrado) à institucionalização
da religião e vice-versa: quanto mais rígida e sujeita
a doutrinas estabelecidas e consolidadas for uma instituição
religiosa, mais sujeita estará a divisões ocasionadas
pela necessidade de liberação do sagrado. A história
mostra que, das tradições cristãs, a vertente
mais sujeita a divisões é a calvinista, ou reformada
propriamente dita, pela simples razão de que é a que
mais produziu confissões ou símbolos de fé. No
universo da Reforma, essa tendência caminha inversamente na
medida em que documentos simbólicos escasseiam ou são
ausentes: os luteranos com sua Confissão de Augsburgo e os
anglicanos, em que um corpo doutrinário está ausente.
Mesmo que nos lembremos da Lei dos 39 artigos de religião,
promulgada por Isabel I, assim como do Livro de Oração
Comum, o fato é que aquela só é conservada como
testemunho histórico e este, como o diretório da devoção
e do culto. Não têm valor dogmático.
Vale aqui relembrar o surto teológico havido no mundo protestante
de meados do século passado: o movimento teológico da
"morte de Deus". Dos grandes embates entre liberais ou modernistas
e conservadores, acentuados pela Guerra e o início da Guerra
Fria, surgiu um grande desapontamento com respeito às igrejas.
Elas tinham encastelado Deus a tal ponto que ele se tornou impotente
diante das necessidades do mundo. Elas haviam se transformado em "túmulos
de Deus", asilo de um Deus morto. Foram protagonistas desta teologia
Thomas J. J. Altizer e William Hamilton ("Teologia da morte de
Deus") (6) e, controvertidamente
arrolados, como diz Gibellini (7),
Gabriel Vahanian (8), Bispo J. A.
T. Robinson (9) e Harvey Cox
(10). Não se tratava, como
parece, de um surto de ateísmo, da consciência de que
Deus aprisionado nas igrejas e na cultura perdera relevância.
Para os teólogos da "morte de Deus", a excessiva
transcendência de Deus, além de seu aprisionamento institucional,
deixava-o distante e inoperante. Para Vahanian, por exemplo, seria
necessário lembrar que o Deus transcendente é também
imanente, bem na linha dos liberais evangélicos, dos místicos
e dos messianismos políticos.
Embutida ou paralela à teologia da morte de Deus estava a da
secularização, principalmente em Harvey Cox. Para estes
teólogos, a secularização é uma purificação
dos entraves do mito, da metafísica e da religião (11).
O fato é que o movimento teológico da morte de Deus,
da secularização, assim como da política, produziu
grande abalo nas igrejas protestantes no período pós-Segunda
Guerra, do movimento ecumênico e da Guerra Fria.
Até aqui tentei expor a teoria bastidiana que nos ajuda a compreender
e a explicar os movimentos e as mutações no interior
das religiões instituídas. Voltarei a essa questão
mais adiante.
Vou dividir a parte que se segue em três momentos daquilo que
chamamos de experiência religiosa: a experiência fundante,
que Mircea Eliade chama de hierofania, a institucionalização
ou a formação da religião e, por fim, os mecanismos
de transformação e manutenção da instituição.
Para isso, recorrerei ao auxílio dos clássicos das Ciências
da Religião.
_______________________
A experiência
fundante da religião
A experiência fundante ou modificadora da religião, chamada
na filosofia e na história das religiões de hierofania,
foi magistralmente trabalhada por Mircea Eliade. É um tema
considerado por ele em toda a sua vasta obra, mas o principal está
em Tratado de história das religiões (1970). Eliade
pretende, nesse trabalho, chegar normalmente à definição
do fenômeno da religião sem a necessidade de começar
pelos a priori da essência da religião. O estudo da hierofania,
ou dos grupos de hierofanias, nos leva a refletir sobre a morfologia
do sagrado.
Cada tipo de hierofania, entendida esta como a irrupção
do sagrado, cada uma ao seu modo, permite uma dada e diferente aproximação
do sagrado. A hierofania, com poucas exceções, é
um epifenômeno que se apresenta a um indivíduo e constitui
nele uma experiência fundante ou transformadora, ou mesmo mantenedora
de uma forma de religião. No primeiro caso, temos os indivíduos
fundadores de religiões; no segundo, os profetas que pregam
a volta às origens da religião instituída ou
a correção de seus desvios e, por último, o reforço
do sagrado dominado, cujos exemplos melhores são as aparições
da Virgem que estabelecem romarias a locais sagrados. Neste último
caso, a "aparição" do sagrado que se revela
em um de seus aspectos, mas que traz em si, por definição,
a totalidade do seu ser (no caso da Virgem que se revela por inteira),
a religião instituída apressa-se em limitar ou especializar
seu poder de modo a dominá-lo. Toda limitação
(regulamentação) da aparição ou epifenômeno
significa colocá-lo sob custódia.
Na rota conceitual de Eliade, vamos tentar, limitando-nos ao judeu-cristianismo,
dar alguns exemplos de hierofanias narradas na Bíblia e que
nos ajudam a entender melhor o que estamos vendo em sua teoria.
Vamos, didaticamente, partir da hierofania fundante da religião
do Antigo Testamento: Moisés e a sarça ardente. Pastor,
Moisés apascentava o rebanho de seu sogro quando, chegando
a um monte, viu uma sarça que ardia mas não se consumia.
Curioso, Moisés tenta se aproximar, mas Deus o advertiu que
permanecesse à distância e se revela como o Deus de seus
pais e faz promessas de salvamento para o seu povo (hebreus, escravos
no Egito). As promessas deviam ser transmitidas ao povo, mas em nome
de quem? Deus responde: "Eu sou o que sou". Diga a eles:
o "Eu sou mandou" (Ex. 3, 1-6).
Moisés não viu a Deus, não pôde fazê-lo
porque foi impedido de se aproximar, mas viu o fogo, símbolo
do sagrado, centro mesmo da hierofania. A voz se identificava com
o ser absoluto de Deus: "Eu sou", aquele que é a
plenitude do ser e, por isso, não tem nome porque o nome por
si já limita o ser. Mas este pleno "Eu sou" apresenta-se
limitado a Moisés porque o sujeito da hierofania é incapaz
de apreender o "Eu sou" pleno. O que Moisés vê?
Vê o fogo que, com seu poder extremamente móvel, imprevisível,
não dominado, que não se sabe de onde vem nem para onde
vai e que não consumia a sarça, como parte do sagrado
que assim se revelava.
Eliade nos chama a atenção para a recorrência
do fogo nas mais diversas culturas e religiões para significar,
particularmente, a energia ao mesmo tempo criadora e sustentadora.
Diz Ernst Cassirer que o fogo é uma metáfora radical.
Heráclito de Éfeso, segundo Diógenes Laércio,
afirmava que o fogo é o princípio de todas as coisas,
não da fixidez, mas da mutação, sendo capaz de
fazer passar a matéria de um estado a outro. O fogo é
o sujeito do movimento do mundo, inteligente e divino (12).
A experiência de Moisés, essa hierofania do fogo no monte
de Deus, o Horebe, autorizou-o a falar ao povo em nome de Deus. O
discurso de Moisés daí em diante parte dessa experiência
e segue na direção da criação de uma religião.
Num outro passo (Ex. 33, 12-23), Moisés,
desejando a confirmação de que Deus o acompanhava na
pesada missão de conduzir o povo à Terra Prometida,
roga a Deus que lhe mostre sua glória. Não pôde
ver a face de Deus, o que seria conhecê-lo por inteiro, mas
"sentiu" sua presença (glória) e "viu-o"
pelas costas.
Os profetas do Antigo Testamento desempenharam a função
de guardas da memória e da tradição diante de
uma religião sacerdotal já instituída e confundida
com um estado hierocrata, assim como de arautos de eventos desastrosos
futuros por causa da infidelidade e dos desvios de reis sagrados e
sacerdotes. Todos eles partiam de experiências pessoais hierofânicas
com Deus. Basta citar o episódio do chamamento de Isaías
(Is. 6, 1-8). No caso das hierofanias
de Moisés, temos experiências religiosas fundantes e,
no dos profetas, hierofanias de conservação da religião
instituída.
Voltemos a mais uma hierofania do fogo. Trata-se de uma hierofania
coletiva e transformadora. O Cristianismo começa de fato a
ser uma religião com o Pentecostes, embora ainda como uma seita
do Judaísmo.
A narrativa de Atos 2, 1-43 constitui-se na hierofania do Espírito.
Ela se distingue de outras, como as de Moisés, porque foi testemunhada
por uma comunidade de pessoas e não por um indivíduo.
Liga-se a uma promessa de Jesus aos seus seguidores como aparece no
Evangelho de João (16, 17). Os
elementos dessa hierofania, como sempre composta por homens e elementos
da natureza, são o fogo e o vento de um lado, e Pedro, os onze
e demais circunstantes de outro.
A metáfora do fogo como elemento principal do mito hierofânico
do Pentecostes pode significar, com toda a sua riqueza, o sagrado
como o logos que cria, mantém, transforma, purifica e está
presente em todas as coisas. É princípio de transformação;
é movimento, mas movimento não previsível porque
se processa segundo o destino. É um poder que vem de fora do
mundo, mas que tudo penetra, conserva e transforma e cuja trajetória
é imprevisível para os homens. A metáfora radical
do fogo introduz, no interior mesmo dos elementos da hierofania do
Pentecostes, uma conseqüência direta: a distribuição
de línguas que unifica o discurso querigmático de Pedro.
Fecha-se, assim, o círculo simbólico da hierofania do
Pentecostes: um poder vindo de fora do mundo, um sagrado universal,
fora do círculo do Judaísmo, mas que remete à
sarça ardente que fascinou Moisés no Horebe e que cumpriria
a promessa do Evangelho (parácleto) e, ao mesmo tempo, o compromisso
de romper o círculo religioso a que se achava restrita a "mensagem
nova" ("até os confins da terra"). Rompem-se,
ao mesmo tempo, os círculos geográfico e religioso-cultural.
É significativo para o estudioso da experiência religiosa
fundante que o mistério do sagrado, no mito cujo centro é
o fogo, conserva aquela qualidade essencial descrita por Rudolf Otto (13):
é o mysterium tremendum, porque não se sabe de onde
vem nem para onde vai.
Outro elemento da natureza que aparece na narrativa do Pentecostes
é o vento e tem um sentido complementar ao fogo no conjunto
dessa hierofania do Espírito. O Evangelho de João (3,
8) diz assim: "O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído,
mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece
com todo aquele que nasce do Espírito" (Bíblia
de Jerusalém).
Agora, são quatro os elementos da hierofania: o fogo, o vento,
o dom de línguas e o discurso fundante do Apóstolo entendido
por dezenas de falantes de outras línguas.
O sentido desse mito hierofânico deve ser buscado, como de regra,
nas condições sócio-históricas dos seus
sujeitos. Eram eles pescadores, artesãos ou pequenos funcionários
públicos oprimidos entre as elites politicamente comprometidas
da Palestina e o poderio romano. De um lado, o monoteísmo judaico
dos sacerdotes e levitas, ou legistas, e de outro, o politeísmo
helenizado dos romanos. Nada restava ao pequeno grupo de oprimidos,
seguidores de um mestre que, ao mesmo tempo, mantinha diplomaticamente
à distância o opressor político e demolia a elite
sacerdotal comprometida e sua religião, a não ser proclamar-se
detentor de um poder universal outorgado de modo espetacular pelo
mestre sacrificado pelo conluio dos dois poderes político-religiosos
opressores. Assim, uma pequena seita do Judaísmo rompe seus
estreitos limites geográficos, sociais e políticos,
para dois séculos e meio depois se transformar na religião
mais poderosa do mundo antigo, uma religião do Império.
O evento mítico, ao mesmo tempo transformador e fundante, transformador
quanto ao Judaísmo e fundante quanto ao Cristianismo, "racionaliza"
ou "justifica" a tese de origem sobrenatural da igreja,
sua universalidade e pobreza original. O livro de Atos narra outros
eventos hierofânicos miraculosos, como a nova manifestação
de forças da natureza na libertação de Paulo
e Silas da prisão de Filipos (Atos 16,
26), para legitimar a hierofania e, como sugere Eliade, corrigir
rotas e consolidar princípios da nova religião. Mas,
o Pentecostes, como tal, não se repetiu nos registros do Novo
Testamento. Mesmo a Reforma não abalou esse fundamento institucional
do Cristianismo. Fixaram-se somente os ritos e as doutrinas em torno
deles.
Concluindo estas considerações a respeito da experiência
bíblica do Pentecostes, é oportuno lembrar a nossa insistência
em recusar o pentecostalismo como um continuum em relação
ao protestantismo histórico, como uma espécie de popularização
das igrejas da Reforma. Em primeiro lugar, como bem frisou o teólogo
da cultura Paul Tillich, o popular não é da índole
do protestantismo, ele não é uma religião de
massas. Em segundo lugar, e mais relevante neste caso, é a
diferença fundamental entre o protestantismo e os pentecostalismos:
para estes, o Pentecostes se repete infinitamente pelo derramamento
do Espírito ao passo que, para aquele, o Pentecostes não
se repete porque o Espírito veio, segundo a promessa do Evangelho,
e ficou com a Igreja, mantendo-a e renovando-a sempre. Aliás,
este é o princípio também de todo o Cristianismo
tradicional.
Voltemos um pouco atrás a fim de completar esta teoria sobre
as hierofanias bíblicas. A hierofania de Moisés no Horebe
é fundante no Judaísmo; a do Pentecostes é transformadora
em relação ao Judaísmo e fundante face ao Cristianismo.
Mas, entre elas há outra que não pode ser omitida: a
epifania de Deus em Cristo, Deus conosco. Deste modo, a epifania é
fundante em relação ao Cristianismo e o Pentecostes,
uma transformação da epifania e a institucionalização
da igreja cristã. Vemos então que o mesmo sagrado está
presente nos três momentos fundantes e transformadores da religião.
O sagrado instituinte e o sagrado instituído
A experiência religiosa do sagrado, portanto, a rigor teorizada
por Eliade no seu conceito e análise das hierofanias, é
fundante e transformadora da religião, podendo ser ambas as
coisas ao mesmo tempo. Mas, também pode ser conservadora, mantendo
no interior mesmo da religião aquela dinâmica, ou ebulição,
necessária para que continue viva. Mesmo que as religiões
acreditem permanecer como tais porque se remetem sempre à sua
tradição e memória, por intermédio do
seu instrumento clerical e sacerdotal, elas estão sempre se
modificando através de outro instrumento que é o profetismo
constestatário e corretivo que há no seu interior.
Para que possamos prosseguir e atingir nosso objetivo será
necessário, neste ponto, estabelecer alguns parâmetros
teórico-conceituais. Tentemos, para isso, distinguir religião
de instituição religiosa, ou se preferirmos maior clareza,
de igrejas.
Diversos estudiosos da história das religiões ou, de
maneira mais particular, das ciências da religião, procuram
distinguir religião de igreja, ou religião instituída.
Antes e depois de Bastide, a distinção aparece com insistência.
Nenhum historiador, filósofo ou cientista da religião
apresenta igreja ou instituição religiosa, ao menos
de maneira direta, como seu objeto de estudo. A instituição
aparece como simples referência em alguns casos. Especificamente,
o estudo da instituição religiosa como tal estaria noutro
campo de estudos, como a Sociologia das Instituições,
por exemplo.
Falamos em antes e depois de Bastide, porque foi ele que, ao escrever
o seu clássico texto "O sagrado selvagem", definiu
com clareza todo o processo dialético que há entre o
sagrado não dominado, o sujeito-objeto da experiência
religiosa, e o sagrado dominado da instituição religiosa.
Embora a sociologia de Bastide nada tenha a ver com as teorias de
Max Weber, neste caso, as que dizem respeito aos tipos puros ou ideais,
não há como não observar que ambos os conceitos
de Bastide, o de sagrado dominado e não dominado, são
tipos puros ou ideais. Não há, na realidade, nenhum
sagrado absolutamente dominado, como também não há
um sagrado absolutamente selvagem. Nenhuma instituição
ou igreja pode, com seus dogmas ou confissões, engessar completamente
o sagrado: ele guardará sempre suas franjas de mistério
pois, caso contrário, deixará de ser sagrado; um deus
conhecido não é mais um deus, disse alguém. Por
outro lado, a experiência religiosa, seja íntima ou objetiva,
neste caso hierofânica, jamais capta o sagrado por inteiro pela
mesma razão anterior.
O que há é um espaço mais ou menos desorganizado,
ou às vezes mais ou menos organizado, entre a experiência
religiosa, espaço da religião propriamente dita, e a
religião instituída, ou igreja. Este espaço pulsa
antes da instituição ou no interior dela como um elemento
regulador entre sua inércia e dinâmica.
Um discípulo e companheiro de Bastide na Sorbonne, Henri Desroche
(1914-1994), nos ajudará a tornar mais clara esta teoria. No
seu livro pouco conhecido e quase nunca citado, "Sociologia da
esperança" (1985), ele consagra a "Introdução"
ao que ele chama de "milagre da corda". O milagre da corda,
recorrente na história das religiões, aparecendo em
vários lugares e autores, inclusive em Mircea Eliade, consiste
no seguinte: um xamã, faquir, ou malabarista, lança
uma corda para o ar e ela, espiralando para cima, fica firme e ereta
ao ponto de permitir que ele suba por ela. Está presa firmemente
em algum lugar acima, em algo que não se sabe o que é,
mas que oferece ao xamã ou seu secretário confiança
para subir por ela.
Desroche serve-se deste mito da corda para ir desenvolvendo-o em outras
direções de acordo com seus objetivos no livro. Mas,
como o mito permite outros usos e interpretações, servimo-nos
dele para o nosso próprio fim: o do mistério do sagrado.
Lançar a corda e subir por ela numa aproximação
infinita, porque nunca chega lá, de algo que não se
sabe o que é mas que me dá segurança e esperança,
seria a essência da religião. Essa confiança,
ao mesmo tempo perigosa e angustiante, em algo que não vejo
e que não conheço, distingue-se da religião instituída
em que os dogmas e os preceitos éticos concedem conforto e
paz.
Podemos avançar mais nesta questão caminhando ainda
com Desroche, agora relendo a introdução à primeira
edição do seu dicionário de messianismos e milenarismos (14).
Estamos trabalhando com os conceitos de religião e instituição,
mas Desroche fala em sentimento religioso e religião como patamares
distintos: aquele, a experiência religiosa antes da religião
ou instituição. Creio que não há discrepância
entre a proposta anterior e esta. Mas, não seria inconveniente
observar que a experiência religiosa como simples sentimento
nos remeteria mais a William James (15)
com sua proposta mais psicológica e subjetiva, ao passo que
a experiência objetiva nos remeteria a Mircea Eliade, que parte
do estudo das hierofanias. Entendemos, ainda, que ambas as propostas
não se excluem, mas se completam.
No mesmo passo, Desroche desfila os autores que desenvolveram o tema
de várias maneiras, mas que acabam convergindo para o sentido
que buscamos. Assim desfilam as teorias de Durkheim (religião
de efervescência e de administração), religião
de primeira mão e religião de segunda mão (W.
James), religião fechada e religião aberta (H. Bergson),
e religiões vivas e religiões em conserva (R. Bastide).
O estudo sociológico dos messianismos e milenarismos empreendido
por Desroche leva-o a registrar que o fato do sentimento religioso
vivido, como ato efervescente, de primeira mão, invade
a sociedade, ou o grupo religioso, em momentos de sobressalto da vida.
As grandes religiões tradicionais, em momentos sociais de efervescência,
ou também de grandes mudanças, que podem ser rápidas
ou lentas, tendem a assumir posições que variam da indiferença
a tentativas de ajuste ético, mas sempre preservando as posições
dogmáticas tradicionais. Algumas com maior capacidade de ajustamento
sem romper, ou enfraquecer, posições dogmáticas,
se saem melhor, no máximo perdendo adeptos que, no todo, não
lhes comprometem o futuro. Exemplo no Brasil foi a Igreja Católica
no período dos militares e da Teologia da Libertação.
Quanto ao protestantismo, nessa mesma circunstância, as perdas
foram grandes porque sendo religião mais secularizada e leiga,
o impacto de novas idéias políticas atingiu questões
dogmáticas ao mesmo tempo rígidas e fracas quanto a
centros de poder encarregados de sustentá-las.
Há, no protestantismo, particularmente na tradição
reformada propriamente dita, um paradoxo permanente: ao mesmo tempo
em que sustenta forte rigidez dogmática, seja por determinadas
formas de interpretação da Bíblia, seja pelas
formulações simbólicas consagradas em confissões
de fé, falta-lhe centros de autoridade que definam pontos de
divergência. Como consequência, são frequentes
os expurgos de pessoas e grupos que, por seu lado, reiniciam processos
de institucionalização que desembocam em novas igrejas.
Quanto maior for a rigidez dogmática, maior será a possibilidade
de divergências no interior da religião instituída,
ou igreja. Quando falamos em religião instituída como
aquela que atingiu o máximo em sua construção
dogmática, temos de considerar que esta religião formou
poderosa elite intelectual capaz não somente de sustentar seus
símbolos, mas também de oferecer alternativas quando
estes símbolos são contestados.
Quando a contestação se dá no campo intelectual,
os contestários são geralmente tolerados; no máximo
são olhados com desconfiança pela ortodoxia e, vez por
outra, sofrem pequenas advertências ou disciplinas. Neste caso,
as querelas ainda laboram no campo do sagrado dominado. Os problemas
surgem com maior gravidade quando pessoas ou grupos insatisfeitos
com a rotina eclesiástica, ou acicatados por situações
de efervescência social, decidem liberar o sagrado em favor
de uma religião mais emocional que possa amenizar os impactos
situacionais do cotidiano. As mudanças institucionais, regra
geral, têm início, não por contestação
intelectual, mas pela liberação ao menos parcial do
sagrado através de formas emocionais de experiência religiosa.
Estudos consagrados, como os de Max Weber (16)
e Ernst Troeltsch (17) mostram que
as contestações de ordem emocional, que caminham como
que num retrocesso em busca da recuperação do sagrado
ao menos mais puro de um passado fundante tendem a formar grupos com
pouca organização interna, assegurados por simples laços
de comunhão. São chamados seitas. Mas, atingido um ponto
máximo nesse retrocesso efervescente, tem início um
processo gradativo de rotinização e organização
dogmática cuja tarefa é assumida pelos intelectuais.
Voltamos a dizer que entre o sagrado instituinte da experiência
religiosa e o instituído da instituição religiosa,
há um gradiente cujos segmentos mostram o grau de dominação
do sagrado. A maneira de determinar em que ponto do gradiente certo
grupo religioso se encontra é verificar o grau de intelectualização
que atingiu, principalmente pela produção dogmática
escrita, como também pelo grau de controle do sagrado nas reuniões
religiosas ou cultos. Pode, todavia, haver casos em que o grupo religioso
se recuse a produzir escritos ao expressar recusa ao labor intelectual,
mas que apresentam certo grau de rotinização ou controle
do sagrado ao mesmo tempo em que mantêm praxes e doutrinas por
transmissão oral.
Duas grandes instituições religiosas brasileiras de
perfil pentecostal podem servir de exemplo para o que estamos dizendo.
Ambas tiveram início quase que ao mesmo tempo e em circunstâncias
praticamente iguais. Tratam-se da Assembléia de Deus e da Congregação
Cristã no Brasil, aquela surgida no norte do Brasil em 1911
e esta, no sul em 1910. Ambas fazem parte do que temos chamado de
pentecostalismo clássico.
A Assembléia de Deus, ou Assembléias de Deus, pois que
seguem a tradição batista de autonomia das congregações
locais, começou com um movimento de experiência religiosa
induzida por dois missionários sueco-americanos em uma igreja
batista de Belém do Pará. Da experiência da posse
do Espírito Santo com o sinal da glossolalia percorreram um
longo caminho de institucionalização até chegar
hoje a ocupar o lugar de maior igreja evangélica no Brasil.
A não ser a ênfase ainda mantida na posse do Espírito,
com certa liberação emotiva, principalmente nas orações,
a Assembléia de Deus pouco se distancia das igrejas protestantes
tradicionais. Possui uma teologia explícita calcada no metodismo
wesleyano (18), isto é, na
variante arminiana do calvinismo, textos teológicos, um jornal
semanal vendido em bancas, assim como seminários para a educação
de sua liderança. Em seus cultos, há um espaço
limitado e controlado para o sagrado mais livre. É o seu único
distintivo em relação às igrejas tradicionais
pois que, no gradiente, está muito próxima delas.
A Congregação Cristã no Brasil inicia-se com
a mesma experiência fundante da Assembléia de Deus e
acabou fortemente institucionalizada. Talvez esta característica
tenha seu fundamento no traço calvinista herdado de seu fundador,
o valdense e depois presbiteriano nos Estados Unidos, Luis Francescon.
A herança calvinista da CCB reflete-se bastante na ordem e
na disciplina, tanto na vida privada como no culto, assim como na
vida institucional. A forte institucionalização dessa
igreja, ao que se observa, reduziu mais ainda o espaço para
a ação livre do sagrado.
Dentro de um culto extremamente racionalizado, há dois momentos
de liberdade: um é a abertura para qualquer membro da congregação
tomar a iniciativa de ler a Bíblia e pregar, o outro é
o momento de testemunho, ou "testemunhança" como
eles preferem dizer. O testemunho é o espaço do culto
em que qualquer pessoa pode relatar alguma experiência religiosa
em sua vida. A liberdade de pregar, apesar de continuar a ser oferecida
nos cultos, quase que não é mais aproveitada pelos adeptos
que preferem deixar a prédica por conta dos líderes.
O testemunho é atentamente fiscalizado pelo líder à
frente do culto que, ao notar irrelevância ou inconveniência
no relato, tem a autoridade para interrompê-lo dizendo "não
vem do Espírito".
A transmissão religiosa na CCB é exclusivamente oral
eclesial (na igreja). Os únicos textos são a Bíblia,
e ainda exclusivamente a versão de João Ferreira de
Almeida Revista e Corrigida, o livro de hinos e o relatório
anual de atividades da igreja. Circulou entre os membros da Igreja,
ao menos até recentemente, um folheto com poucas páginas,
de autoria do fundador Luís Francescon, uma narrativa de sua
experiência religiosa. Este autor foi informado de que o folheto
não estava mais sendo impresso porque muitas pessoas estavam
tomando Francescon por santo e orando com sua intermediação.
Tanto uma como outra dessas igrejas, fortes no cenário religioso
brasileiro, representam estágios diferentes no gradiente sagrado
selvagem ou instituinte e sagrado dominado ou instituído.
Experiência religiosa e institucionalização
Tentamos expor as variações, tanto instituidoras como
transformadoras, no campo representado pelo gradiente sagrado selvagem
ou instituinte e sagrado dominado ou instituído.
Agora, caminhando para a conclusão deste texto, desejamos apresentar
uma teoria que nos ajuda a resumir de forma clara tudo o que já
foi exposto e discutido.
O autor desta teoria, que tomamos a iniciativa de denominar "teoria
dos círculos concêntricos", é Frederico Heiler
(1892-1967), cientista da religião que começa a circular
no Brasil recentemente através de Giovanni Filoramo e Carlo
Prandi (19). Suas obras tiveram
circulação restrita, parecendo que com mais evidência
na Itália, onde pelo menos sua obra principal Erscheinungsform
und Wesen der Religion (1961) foi traduzida (20).
Tenho tentado inteirar-me o melhor possível da teoria de Heiler
sobre a fenomenologia da religião. Encontrei o melhor material
em seu livro, o único ao que se sabe traduzido para o inglês,
que é Das Gebet (1923). Quanto à sua obra principal,
valho-me da excelente exposição de Peter Mckenzie (21),
The Christians, their Beliefs and Practices (1988).
A teoria dos círculos concêntricos permite-nos percorrer
a trajetória, ou o gradiente sagrado-instituinte-sagrado-instituído,
inclusive as diferentes formas de expressão individual e social
da religião.
Suponhamos três círculos concêntricos. O primeiro,
o exterior, revela parcialmente o objeto sagrado, as maneiras pelas
quais o sagrado se revela no mundo empírico porque pode ser
percebido pelos sentidos, fenomenologicamente nas "aparições"
das condutas pessoais e nas instituições. São
as maneiras ou formas pelas quais o sagrado se manifesta, principalmente
nas instituições religiosas visíveis: templos,
cultos, ritos, objetos sagrados etc. É o mundo do sagrado dominado,
instituído.
O círculo intermediário trata das concepções
e idéias religiosas (teogonias ou teologias). É o lugar
dos sistematizadores da experiência religiosa, dos dogmáticos
e seus representantes e guardiões. É o espaço
dos intelectuais da religião instituída. As efervescências
que começam no círculo externo são controladas
neste círculo, pois que elas tendem para o círculo central,
lugar do sagrado puro ou instituinte.
O círculo central é, pois, o lugar do sagrado absoluto.
É o mundo vivido da experiência religiosa. Este é
o lugar dos místicos, dos ascetas. É o coração
da religião, mas não é ainda a religião
em si. O asceta, o místico, não tem religião
alguma; só tem a posse parcial, limitada, do sagrado. Em resumo,
quando o sujeito da experiência religiosa, partindo do círculo
central chega ao intermediário, cria uma religião; quando
parte do círculo externo, círculo dos leigos por excelência,
ou do intermediário, círculo dos intelectuais e sacerdotes,
e chega ao central, sai da religião.
O místico sai da religião porque na sua ascensão
para o sagrado ele vai abandonando todas as formas de crença
anteriores, assim como as sistematizações adquiridas.
O místico contempla o sagrado sem intermediações
e nisto se contenta.
Conclusão
Nosso intuito foi expor o duplo caminho, de ida e volta, entre a experiência
religiosa psicológica ou hierofânica, se é que
se pode separar uma da outra, à religião institucionalizada
ou igreja, no caso do Cristianismo. Esse percurso, que constitui um
gradiente, apresenta o sagrado como constituinte ou constituído
e é, ao mesmo tempo, conservador e transformador da religião.
E, por fim, através da teoria dos círculos concêntricos
de Frederico Heiler, mostrar idealmente os campos específicos
da religião, dedicando atenção especial à
formação da religião como instituição
e o caminho de saída da religião, modelarmente representado
pela mística.
Notas
1 Cadernos do Ceru, n. 7, out. 1974.
2 Idem, p. 9.
3 Herry Fosdick, The Man from Nazareth, New York, Pocket Books, 1953.
4 Tradução inglesa The Gospel and the Church, 1908, p.
115.
5 Rger Bastide, Le Sacré Sauvage et autres études, Paris,
Payot, 1975.
6 Thomas J. J. Altizer e William Hamilton, Radical Theology and The
Death of God, 1966
7 Rosino Gibellini, A teologia do século XX, 1998, p. 142.
8 Gabriel Vahanecin, The Death of God, 1961.
9 J. A. T. Robinson, Honest to God, 1965.
10 Havey Cox, The Secular City, 1965 (A cidade do homem, São
Paulo, 1971).
11 Robert Adolfs, Igreja, tœmulo de Deus?, Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1968.
12 IX, 1-17 (DK 22 A 1), em "Os Pré-Socráticos",
Coleção Os Pensadores, p. 83.
13 Rudolf Otto, O sagrado, S. Bernardo do Campo, Imprensa Metodista/
Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências
da Religião, 1985.
14 Dieux d'hommes - Dictionnaire des Messianismes et Millénarismes
de l'Ère Chré-tienne, 1969 (Dicionário de messianismos
e milenarismos, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista
de São Paulo, 2000).)
15 The varieties of religious experience: a study in human nature, 1902
16 Max Weber, Economia e sociedade, vol. 1, 1991, pp. 310 e ss.
17 Ernst Troeltsch, The Social Teaching of the Christian Churches, vol.
2, London, George Allen & Unwin Ltd./New York, The Macmillan Company,
1956, pp. 691 e ss.
18 De John Wesley (1703-1791), fundador do metodismo.
19 Giovanni Filoramo e Carlo Prandi, As ciências das religiões,
São Paulo, Paulus, 1999, pp. 27 e ss.
20 Traduzido com o título Le religioni dell'umanità, 1985.
21 Peter Mckenzie, The Christians, their Beliefs and Practices, Nashville,
Abingdon Press, 1988.
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WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília, Editora UNB, 1991,
vol. 1.
>>> texto
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Antonio Gouvêa Mendonça
é doutor em Ciências Humanas pela Universidade de São
Paulo e professor do Curso de Pós-Graduação
em Ciências da Religião, Universidade Presbiteriana
Mackenzie, São Paulo.
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