Doutor em Antropologia pela USP e
professor adjunto do Departamento de Antropologia e do Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Ufrgs. Pesquisador do Núcleo de Estudos da Religião,
tem colaborado em diversas publicações acadêmicas,
onde vem escrevendo sobre espiritismo, patrimônio, cultura
escrita e cotas raciais.
É autor do livro O Grande Mediador: Chico Xavier e a
cultura brasileira (Edusc, 2004).
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(trecho inicial)
Desde seu início os kardecistas
acreditam que seu movimento religioso harmoniza “ciência”
e “religião”. Para compreender o que está
em jogo na compreensão espírita desses termos, é
preciso salientar que “ciência” e “religião”
não são conceitos setoriais ou partes de um jargão
especializado, mas categorias culturais do entendimento de nossa época,
portadoras de alta ressonância axiológica, de onde deriva
parte dos problemas historicamente enfrentados quando o espiritismo
tentou colocar em prática o componente científico dessa
relação.
O tipo de nexo entre ciência e religião que virou senso
comum entre os espíritas é produto da conjunção
de alguns fatores, quais sejam: (a) a ênfase médica e terapêutica
do movimento espírita, que teve a psiquiatria como adversária
privilegiada e que termina por enfatizar a manipulação
da dimensão espiritual como a única área legítima
de atuação e contribuição da medicina espírita;
(b) a desvalorização das práticas e pesquisas de
materialização e prescrição mediúnica
de receitas de medicamentos, embriões iniciais do sucesso do
movimento mas também o seu calcanhar de Aquiles, na medida em
que mais facilmente o expunha a escândalos e processos; (c) as
metamorfoses da disputa com o catolicismo no Brasil, que diversificou
sua estratégia incorporando a parapsicologia, não como
pesquisa, mas como retórica de ataque aos espíritas. A
parapsicologia – com fortes ingredientes positivistas –
tornou-se um terreno de disputa que permitia definir uma instância
externa de julgamento e prova da verdade ou da fraude dos fenômenos
espíritas. Como veremos, iniciativas posteriores propuseram o
abandono desse marco de discussão em nome de uma posição
demarcacionista, onde materialistas e cientistas não-espíritas
tenham o seu lugar próprio e separado, tanto quanto os espíritas,
em nome da especificidade de domínios e sistemas de conhecimento.
Desejo, assim, chamar atenção para a presença de
variações e efeitos inesperados na operacionalização
das idéias de “ciência” e “religião”
no espiritismo kardecista. A periodização proposta tem
um valor meramente heurístico: inicia-se com um momento de composição
entre ciência e religião, no século 19. A seguir,
há uma progressiva dissociação desencadeando uma
polêmica religiosa entre essas esferas espíritas e católicas
através da parapsicologia. Por último, a posição
demarcacionista tem levado a uma reconsideração dos termos
da polêmica, introduzindo a valorização de espaços
autônomos e novos atores institucionais no espiritismo.
Nota do Autor:
A complexidade
da questão é ilustrada pela imensa bibliografia sobre
filosofia e sociologia da ciência, em que termos como “crença”,
“relatividade” e “verdade” são objetos
e partes de uma guerra cultural analisada no trabalho de Barbara Smith
(2002). No âmbito da religião os trabalhos de Fernando
Catroga (2006), Talal Asad (1993), Danielle Hervieu-Léger (1999)
e Roberto Cipriani (2004) são suficientes para assinalar as
várias ressonâncias socioculturais e implicações
sociológicas da consideração do objeto e do termo
religião na modernidade.
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Fonte:
Civitas – Revista de Ciências Sociais,
v. 6, n. 2, jul.-dez. 2006
http://revistaseletronicas.pucrs.br/fale/ojs/index.php/civitas/article/viewFile/60/60