Entrevista por: Márcia Junges
“O
perdão é, antes de tudo, uma categoria teológica
ligada à noção de graça e dom, indicativo
de sua dimensão divina. Trata-se da dimensão do perdão
de Deus”.
A afirmação é do psicanalista e filósofo
Mario Fleig, professor da Unisinos, em entrevista
concedida por e-mail à IHU On-Line. Ele diferencia o perdão
entre o genuíno e o condicionado.
“O
perdão genuíno ocorre quando se perdoa o culpado como
culpado, aquilo que nele seria absolutamente imperdoável.
Perdoar o perdoável é o mais fácil, assim como
quando o perdão está a serviço de uma finalidade,
como reconciliação, redenção, restabelecimento
da ordem social, da paz, etc.”
Já no caso da anistia, por exemplo, há que se observar
que ela é um “ato jurídico e político,
e etimologicamente significa esquecimento: nela está em jogo
a tentativa de um apagamento de crimes cometidos, com o fito de restabelecer
as condições do convívio social”.
Algo impressionante ligado ao perdão é a dissolução
do ressentimento e do gozo do ódio, o que bloqueia a espiral
de agressão e violência, acentua Fleig.
“Assim,
o perdão é a pré-condição indispensável
para a reconciliação com o outro e o estabelecimento
de uma relação de paz”, além de possuir
um poder de cura sobretudo para aquele que perdoa.
Graduado em Filosofia pela Faculdade
de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, em São Paulo, e em Psicologia
pela Unisinos, Mario Fleig é mestre e doutor
em Filosofia. É professor titular da Universidade do Vale do
Rio dos Sinos – Unisinos, tem experiência na área
de Filosofia, com ênfase em metafísica. Como psicanalista,
é membro da Association Lacanienne Internationale e da Escola
de Estudos Psicanalíticos. Com Jean-Pierre Lebrun organizou
O mal-estar na subjetivação
(Porto Alegre: CMC Editora, 2010)
e O desejo perverso (Porto
Alegre: CMC Editora, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que sentido o perdão
pode ser encarado como uma aposta antropológica no “outro”,
como uma confiança de que o outro é capaz de mudar?
Mario Fleig –
Sim, o perdão é uma aposta de que na relação
com o outro e consigo possa ser introduzida uma contigência
que venha alterar o caráter de necessidade do curso da situação
de conflito insolúvel. O pressuposto do surgimento do ato de
perdão e de sua noção é que há
um mal perpetrado pela ação de um sujeito, e que deste
mal ele poderia ser redimido. Temos um par de antagônicos: o
mal e seu perdão, que se diferencia do outro par clássico,
crime e castigo. Contudo, se este par nos remete imediatamente ao
campo da lei e do direito, aquele não tem lugar no âmbito
do direito. A punição, na acepção jurídica,
é a resposta na forma da privação ou do castigo
que o Estado, amparado na lei positiva, dá a quem se torne
culpado de uma infração. E na mesma direção
se situa a noção de punição divina, em
que o pecador tem que pagar pelo mal que cometeu. Ao contrário,
o perdão é, antes de tudo, uma categoria teológica
ligada à noção de graça e dom, indicativo
de sua dimensão divina. Trata-se da dimensão do perdão
de Deus.
IHU On-Line – Como podemos
compreender filosoficamente o perdão?
Mario
Fleig – Tenho simpatia pela perspectiva introduzida
por Derrida na questão do perdão, que o trabalhou de
modo inovador. Sua derradeira conferência sobre o tema foi proferida
no Rio de Janeiro, em 2004, quando já não poderia mais
viajar em função de doença mortal. Dez anos antes,
publicara o livro Força de lei, no qual fazia a distinção
entre as leis e a justiça: o Direito e suas leis, por serem
construídos em camadas textuais interpretáveis e transformáveis,
ou ainda por terem um fundamento último infundado, são
perfeitamente desconstrutíveis, ao passo que a justiça
é essencialmente indesconstrutível. Ora, ao entrar no
debate em torno dos crimes impunes e da atitude corrente face aos
crimes contra a humanidade, e posteriormente na questão da
pena de morte, Derrida afirma que todas essas questões, assim
como a questão de reconciliação e da hospitalidade,
têm no perdão seu ponto comum. Sua primeira distinção
é entre o campo da punição e o campo do perdão.
Assim, para ele é perfeitamente possível mantermos uma
acusação penal mesmo perdoando ou, inversamente, podemos
não julgar, mas perdoar. Nisso ele se afasta de posições
clássicas que afirmam que, se um crime não encontra
uma punição proporcional, permaneceria como absolutamente
imperdoável. O perdão também se diferencia do
indulto, da anistia e da prescrição do crime. Ou seja,
para Derrida, o perdão situa-se fora da política ou
do direito, não pertence à esfera política ou
jurídica. Assim, o perdão puro somente seria possível
frente ao absolutamente imperdoável. Essa posição
radical protege o perdão de qualquer banalização,
como ocorreu quando o presidente Lula foi pedir perdão aos
africanos pelo que os senhores da colônia brasileira haviam
feito a seus ancestrais.
O impossível à prova
Derrida
introduz a distinção entre o perdão condicional
e o perdão incondicional, que se encontra na tradição
judaico-cristã: o perdão condicional pode ocorrer se
quem fez o mal pede perdão. O pedido de perdão, com
a correspondente contrição, indica que o penitente já
se encontra no retorno ao bom caminho, efetivando-se uma troca entre
aquele que perdoa e o arrependido. Para Derrida, nesse caso não
se pode falar em verdadeiro perdão, mas quando ele é
concedido independente da atitude do culpado. O perdão genuíno
ocorre quando se perdoa o culpado como culpado, aquilo que nele seria
absolutamente imperdoável. Perdoar o perdoável é
o mais fácil, assim como quando o perdão está
a serviço de uma finalidade, como reconciliação,
redenção, restabelecimento da ordem social, da paz,
etc. Isso não caracteriza o puro perdão, que se aproxima
do poder de perdoar inerente ao ato divino, mesmo quando exercido
por um ser humano, e deveria sempre permanecer como algo excepcional
e extraordinário: colocar à prova o impossível
e, assim, interromper o curso comum da temporalidade humana.
IHU On-Line – Em que tipos
de casos se justifica não perdoar?
Mario
Fleig – Se seguirmos a diferença proposta por
Derrida entre perdão condicional e perdão incondicional,
todo o perdão que se justifica, seja pela sua finalidade ou
pela contrição do pecador, seria um perdão condicional.
Aquele perdão, que não encontraria nenhuma justificação,
entraria na categoria do perdão incondicional, o puro perdão
que sabe perdoar aquilo que é absolutamente imperdoável.
IHU On-Line – Não perdoar
significa necessariamente ressentimento? Por quê?
Mario
Fleig – Perdoar ou não perdoar escapa do registro
do legal e da obrigação. Mesmo diante daquele que solicita
o perdão, dar o perdão perdura como um ato de liberdade.
O perdão pode ser dado ou não, não há
nada que o torne obrigatório. Se assim o fosse, já não
seria um perdão.
Contudo, podemos pensar nos efeitos do perdão sobre aquele
que perdoa: talvez se produza uma dissolução do ódio,
visto que o ato de perdoar implica em abrir mão do gozo do
ódio. O ressentimento, como um modo de permanecer fiel ao ódio
para com o outro que cometeu um mal contra mim, pode cair e desfazer-se
como efeito do ato de perdão. Mas não me parece que
isso possa se alcançar com uma finalidade visada no ato de
perdoar, visto que perdoar implica sempre um ato de gratuidade.
IHU On-Line – Qual é
a importância psicológica para quem concede e para quem
recebe o perdão?
Mario Fleig –
Para quem concede o perdão pode se produzir uma dissolução
do ressentimento e do gozo do ódio, cortando-se a espiral de
agressão e violência na relação com o outro.
Para aquele que recebe o perdão, caso o tenha pedido, nem sempre
resulta na interrupção de sua cruel submissão
ao imperativo da culpa. Assim, o perdão é a pré-condição
indispensável para a reconciliação com o outro
e o estabelecimento de uma relação de paz.
IHU On-Line – Em que sentido
o perdão pode ser visto como um ato de amor e reconciliação?
Mario
Fleig – O perdão, especialmente o perdão
incondicional, é um ato de pura gratuidade e dom de si para
o outro, constituindo assim um sinal de amor. A condição
imprescindível para a reconciliação com o outro,
assim como para a reconciliação com a divindade, é
dar ou receber o perdão incondicional, aquele que pareceria
impossível de acontecer. Isso não deve ser tomado como
um sinônimo de anistia. A anistia é um ato jurídico
e político, e etimologicamente significa esquecimento: nela
está em jogo a tentativa de um apagamento de crimes cometidos,
com o fito de restabelecer as condições do convívio
social. No caso do perdão incondicional, não se trata
de esquecer e apagar a culpa, mas antes a ferida aberta pelo mal praticado
perdura viva e aberta. Ou seja, como propõe Derrida, é
preciso que o ato perdoado continue sendo sempre imperdoável
e que a aporia resultante desse impossível não se dissolva.
Tal posição parece de acordo com a concepção
cristã, dado que ainda que Deus conceda o perdão daquilo
que é imperdoável, isso não é esquecido,
pois, no momento do Juízo Final, todos serão julgados
e punidos por seus pecados.
IHU On-Line – Em que medida
podemos considerar que o perdão tem o poder de cura?
Mario
Fleig – O perdão, especialmente o perdão
incondicional, tem todas as chances de produzir efeitos tanto para
quem perdoa como para aquele que é perdoado. No trabalho psicanalítico
tenho presenciado efeito surpreendente nos analisantes que puderam
conceder um perdão incondicional. Sabemos que cada um de nós
passa por experiências de sofrer o mal perpertrado por outro,
especialmente o mal silencioso contra o qual pouco se pode fazer,
tanto para se defender como para denunciá-lo. É o mal
que os pais produzem nos filhos, o mal produzido na infância
por todas as formas de abuso, etc., e que são imperdoáveis.
Lembro-me de um garoto que atendi bem no começo de meu trabalho
clínico. Chegou até mim por causa de sua asma que havia
começado precisamente no primeiro ano escolar e persistia,
apesar de todos os cuidados médicos que recebia. Ele sofria
por ficar impossibilitado de todas as atividades que exigissem desempenho
físico. Para um garoto pré-púbere isso é
algo terrível. Vi uma luz no fim do túnel quando sua
asma começou a ter uma história, pois ele localizou
precisamente em que momento ela havia começado: fora brutalmente
humilhado por sua professora. E o ódio que continuava a nutrir
por ela era enorme e incessante. “Eu quero que ela morra”.
Esse passou a ser então o assunto de suas conversas, até
que um dia arrisquei: “No dia que tu perdoares tua professora,
poderás jogar futebol e andar de bicicleta sem problema”.
Depois de um bom tempo, ele chega em sua sessão e me diz: “Nessa
noite eu a perdoei”. E de fato, como que por milagre, sua asma
desapareceu definitivamente.
O poder de cura do perdão se exerce, então, mais para
aquele que perdoa, na medida em que consegue, pelo perdão incondicional,
abrir mão do gozo que o ódio proporciona. Quem fez o
mal para o outro, muitas vezes, não tem mais como pedir perdão,
por já ter falecido, ou até não tem ideia do
mal que fez. Por isso penso que o perdão que pode vir a acontecer
durante uma análise é concedido de forma incondicional
frente a algo de absolutamente imperdoável sofrido pelo sujeito.
IHU
On-Line – Como o conceito de liberdade se relaciona com a questão
do perdão?
Mario
Fleig – O ato de perdão pressupõe necessariamente
a responsabilidade daquele que praticou o mal, mas não sua
liberdade. A diferença entre liberdade e responsabilidade é
capital. Se agi movido por imperativos que me constragem, ou seja,
sem liberdade, isso não significa que eu possa me considerar
isento da responsabiliade de meus atos. Se eu faço algo desconhecendo
as leis e as consequências de meu ato, não posso dizer
que não sou responsável porque não sabia. De
forma igual, um governante não pode dizer que não é
responsável pelo que acontece em seu governo alegando que não
sabia o que estava sendo feito por seus subalternos. Pedir perdão
dizendo: “desculpa, foi sem querer”, de forma alguma isenta
o praticante de sua responsabilidade.
Então, assim como dar o perdão incondicional não
significa esquecer o mal sofrido, aquele que pratica o mal, mesmo
não o fazendo livremente, não deixa de ser responsável
por ele, apesar de poder se eximir da culpa. A liberdade está
no ato do perdão incondicional, visto que não há
nenhum imperativo para que esse perdão seja dado. Dar o perdão
incondionalmente, frente a algo absolutamente imperdoável,
é o dom de algo que constitui o supremo sinal de amor, sem
contudo querer a impunidade do outro.