Henrique Fernandes
> Arrependimento, Culpa e
Reparação - Um caminho de Esperança
O caminho saudável de
uma pessoa que cometeu um erro e que já consegue classificá-lo
como inadequado, é, sem dúvida, o arrependimento. Este
seria o primeiro grito da consciência para anunciar que aquilo
que nós fizemos, não deveríamos ter feito. A
consciência moral adverte-nos quanto à qualidade ou valor
de nossa ação.
Do ponto de vista ético e vivencial pode-se afirmar que o arrependimento
é uma insatisfação causada pela violação
de um princípio moral aceito pela pessoa como valor necessário.
Isto resulta na livre aceitação da punição
ou castigo, além do que a pessoa se dispõe a evitar
futuras transgressões.
No plano da evolução do Espírito o arrependimento
em si mesmo já é uma conquista, porquanto significa
que houve algum progresso. Somente se arrependem sinceramente as criaturas
que conseguiram desenvolver uma certa sensibilidade (feeling
na língua inglesa), o que Kardec chamou apropriadamente de
maturidade do senso moral. E é esta maturidade que
nos permite compreender a essência da Doutrina, consoante a
análise particular que Kardec faz acerca dos bons espíritas:
“(...) a parte por
assim dizer material da ciência somente requer olhos que observem,
enquanto a parte essencial exige um certo grau de sensibilidade, a
que se pode chamar maturidade do senso moral (grifei),
maturidade que independe da idade e do grau de instrução,
porque é peculiar ao desenvolvimento, em sentido especial,
do Espírito encarnado”. (1)
O pensamento espírita estabelece uma nítida relação
entre senso moral e sensibilidade.
Propondo uma reflexão de natureza psicossociológica
que confirma nosso raciocínio, Kardec considera que os laços
de família são mais fortes no seio de uma civilização
moral mais avançada (como parece ser a nossa), e que “esses
laços, mais fracos nos povos primitivos, fortalecem-se com
o desenvolvimento da sensibilidade e do senso moral”. (2)
Kardec afirmou que “com a inteligência e o senso moral
nascem as noções do bem e do mal, do justo e do injusto”
(3). E nascem
também os fenômenos emocionais do arrependimento, do
remorso e da culpa, que abrem caminhos para a futura reparação.
Como vemos, há uma estreita relação entre sensibilidade,
desenvolvimento do senso moral e arrependimento.
Este representa uma expressão de sensibilidade do ser que já
alcançou um certo grau de sua consciência moral. Já
não se encontra numa condição de embotamento
da sua capacidade avaliativa e nem enceguecido pelo egoísmo
que o impele a atender exclusivamente seus interesses, não
raras vezes em prejuízo de muitos.
O arrependimento, deste modo, pode ser entendido como uma experiência
de alguém que já consegue se sensibilizar diante de
suas ações infelizes e percorre, em seguida, o rumo
que a maturidade psicológica já alcançada lhe
permitir.
É evidente que existem graus diferenciados de arrependimento,
variando desde formas mais pálidas e fugazes até a posição
de profunda sinceridade, fruto da maturidade psicológica. Neste
último caso, há uma disposição do ser
para o reajustamento através da reparação.
Os Espíritos esclarecem que o arrependimento no estado corporal
tem como conseqüência “fazer que, já na
vida atual, o Espírito progrida, se tiver tempo de reparar
suas faltas. Quando a consciência o exprobra e lhe mostra uma
imperfeição, o homem pode sempre melhorar-se”
(4).
É comum que nos sintamos culpados em decorrência do ato
psicológico e moral do arrependimento. Neste sentido, há
que se estabelecer uma distinção entre a culpa terapêutica
e a culpa patológica. A primeira é saudável,
ao passo que a segunda provoca transtornos variados.
A culpa pode se desdobrar em remorso como pode levar o indivíduo
a condutas e experiências de maior equilíbrio.
Quando alguém se equivoca por algum motivo e se arrepende,
é compreensível que surja a culpa nos painéis
da consciência.
Não sendo a culpa um sentimento negativo em si, cumpre o papel
de nos despertar a consciência para a renovação
de atitudes, recompondo-nos moralmente. É claro que não
estou a me referir à culpa enquanto experiência emocional
que se baste a si própria. Apenas vivenciar a culpa não
enseja nenhuma transformação. É precisamente
nesta etapa que a responsabilidade estabelecerá o ponto de
corte entre a culpa saudável e a não saudável.
Ao lidar com o sentimento de culpa, se o indivíduo assumir
a responsabilidade sobre seus próprios atos e agir verdadeiramente
como um adulto, saberá enfrentar de modo maduro as conseqüências
de seus atos. E neste caso não se inquietará com os
tormentos conscienciais do remorso, o qual representa um grau mais
profundo de culpa. A culpa é como uma constante insatisfação
e recusa na consciência, enquanto que o remorso traduz um estado
de inquietação na alma pelo erro cometido.
É uma questão de grau.
Quando convertemos a culpa em responsabilidade, crescemos psicologicamente.
Disto resultará a disposição para o heteroperdão
(perdoar o outro) bem como para o autoperdão (perdoar-se),
passos fundamentais para a reparação.
Por outro lado, a fixação nos quadros de remorso se
nos tornará mais difícil a revisão dos atos,
a reflexão madura e a conseqüente atitude de responsabilidade
já referida. Será contingencialmente necessário,
neste sentido, vivenciar os resultados do remorso, suas conseqüências,
para podermos mais tarde nos liberar de tais cobranças internas
e despertar nosso senso de responsabilidade. Quando a culpa é
internalizada, estamos diante do remorso, o qual se converte em algoz
interno, verdugo de nós mesmos, a produzir quadros mentais
e emoções descontroladas que representam a base para
inúmeros outros problemas e transtornos psicológicos.
A responsabilidade marca, de fato, uma diferença na conduta
do ser. Ser responsável é reconhecer humildemente suas
falhas e desejar sinceramente reparar o mal feito. Assumir as nossas
responsabilidades é ter a coragem de ser, é demonstrar
capacidade de agir com elevação e dignidade, sem escamoteações
ou desculpismos insustentáveis. Em muitas situações
entendemos (quando a culpa é consciente) ou sentimos (quando
a culpa é inconsciente) que as condutas autopunitivas geradas
e sustentadas pelo sentimento de culpa estariam a serviço de
algum “pagamento” da dívida moral. Pessoas que
cometeram erros e que se arrependem, podem terminar por se punir,
acreditando que no fundo não merecem uma vida melhor, uma vida
feliz. Punem-se pela consciência de culpa que lhes visita a
alma. Não se permitem recomeçar ou reparar a falta cometida.
A culpa deita o indivíduo no berço esplêndido
da inação, dando-lhe ao mesmo tempo a falsa idéia
de resgate ou reajustamento. Não nos reerguemos pela dor escolhida
e vivida em clima de insatisfação, queixumes e revolta,
como aliás propõe o amigo espiritual Lacordaire em “Bem
sofrer e mal sofrer”. (5)
Numa linguagem da filosofia existencialista, ter responsabilidade
significaria sair de uma vida banal, inautêntica e vulgar para
uma vida autêntica e filosófica, através da consciência
dos problemas existenciais e da sua condição de ser
existente no mundo, sendo ele responsável por todos os seus
atos. Esta autenticidade se traduz pela coragem de ser, de romper
com a banalidade nas relações humanas e ser o que se
escolhe ser.
O pensamento espírita está todo ele baseado na noção
de responsabilidade pessoal pelos próprios atos.
Vejamos o que afirmaram os Espíritos a esse respeito:
“Deste ao bruto o instinto, que lhe traça o limite
do necessário, e ele maquinalmente se conforma; ao homem, no
entanto, além desse instinto, deste a inteligência e
a razão; também lhe deste a liberdade de cumprir ou
infringir aquelas das tuas leis que pessoalmente lhe concernem, isto
é, a liberdade de escolher entre o bem e o mal, a fim de que
tenha o mérito e a responsabilidade das suas ações
(grifei)”. (6)
É preciso considerar que estas noções de responsabilidade
e consciência dos resultados morais das ações
vão se desenvolvendo no ser imortal lentamente, ao longo de
seu processo de evolução espiritual, o que se reflete
no processo de desenvolvimento psicológico e emocional do ser
encarnado.
Assumida a responsabilidade, já estamos avançando em
direção à reparação.
Kardec considera três passos fundamentais nestes casos: o arrependimento,
a expiação e a reparação. Este modelo
rompe com a visão culturalmente transmitida até os dias
de hoje segundo a qual devemos temer o mal e buscar a todo custo o
bem.
Quantos conflitos neuróticos dominaram nosso campo consciencial
e emocional pelo remorso patológico a que nos entregamos por
conta de um sistema de valores (pessoal e socialmente compartilhado
muitas vezes) construído sobre as bases do medo e da culpa!
Até hoje ressumam de nosso inconsciente os resíduos
de tais conflitos.
O modelo proposto no pensamento espírita revela-se-nos acolhedor,
humanista e moralmente elevado em sua fundamentação.
Analisando o assunto em “O Céu e o Inferno”,
Kardec afirma que “o arrependimento, conquanto seja o primeiro
passo para a regeneração, não basta por si só;
são precisas a expiação e a reparação.
(...) Arrependimento, expiação e reparação
constituem, portanto, as três condições necessárias
para apagar os traços de uma falta e suas conseqüências”
(1 a parte, cap. VII, item 16).
Apagar os traços de uma falta e suas consequencias é
tarefa para os seres que já despertaram a consciencia para
outros valores e adotam, por isto mesmo, uma postura mais realista
e produtiva na vida.
Em algumas tradições religiosas basta o indivíduo
se arrepender, que ele estará isento das responsabilidades
sobre os atos cometidos anteriormente. Entende-se que nestes casos
o perdão seja uma dádiva, uma graça, e não
uma conquista, algo que resulta do trabalho e do esforço.
Kardec esclarece:
“O arrependimento suaviza os travos da expiação,
abrindo pela esperança o caminho da reabilitação;
só a reparação, contudo, pode anular o efeito
destruindo-lhe a causa. Do contrário, o perdão seria
uma graça, não uma anulação.
Vemos no trecho acima que é a esperança o que resulta
do arrendimento. Sendo este o primeiro passo, é compreensível
que haja, pela expiação, sofrimentos físicos
e morais, todavia isto será precedido pela esperança.
É a esperança que nos dá a força necessária
para os resgates que se fazem necessários, a fim de que nossa
consciencia se tranquilize após a reparação.
Deste modo, a visão defendida pelo Espiritismo há que
ser sempre otimista e esperançosa, porquanto não se
deseja “a morte do ímpio, senão que ele se
converta, que deixe o mau caminho e que viva”, conforme
asseverou o profeta Ezequiel (33:11)
e cujo ensinamento encontra-se na página de rosto da obra “O
Céu e o Inferno”.
É o próprio Codificador quem nô-lo evidencia,
quando considera que “desde que se manifestam os primeiros
vislumbres de arrependimento, Deus lhe faz entrever a esperança”.
Observe-se que a esperança poderá resultar desde os
primeiros vislumbres de arrependimento. Isto significa que a expiação
e a reparação poderão ser frutos da esperança,
ao mesmo tempo em que ela própria sustenta as ações
do ser na realização do que lhe compete para assumir
as consequencias de suas condutas.
Este modo de pensar inverte a lógica do pensamento judaico-cristão.
Antes se admitia a necessidade de sofrer para evoluir. Aqui se entende
que o sofrimetno é acidente de percurso, e não uma condição
sine qua non para o desenvolvimento das potencialidades do ser. Sofremos
por conta de nossas açoes equivocadas e não devido a
um impositivo da Lei de Deus. O único impositivo desta é
nosso crescimetno moral e intelctual para conquistarmos, nós
mesmos, a felicidade plena pela perfeição relativa.
A noção de expiação é tratada com
o mesmo tom de esperança e otimismo. Há pessoas que
mesmo tendo bebido altas doses de conhecimento nas fontes seguras
do conhecimento doutrnário espírita entendem que a expiação
é punição, quase castigo. Afirmou o codificador
que “até que os últimos vestígios da
falta desapareçam, a expiação consiste nos sofrimentos
físicos e morais que lhe são conseqüentes, seja
na vida atual, seja na vida espiritual após a morte, ou ainda
em nova existência corporal. (item
17 – CI)
Não sendo nosso planeta um “vale de lágrimas”,
a expiação consiste, na realiade, de experiencias que
terminam por desenvolver nossa sensibilidade mais profunda. É
como o processo de lapidação de uma predra preciosa.
Para mostrar nossa essencia precisamos viver experiências de
amor, mas qando delinquimos no amor, no conhecimento, o sofrimento
é caminho que se nos abre para o desenvomvneto da nossa sensibilidade
e amadurecimento de nosso senso moral diante da vida. Afirmou Kardec
que “a reparação consiste em fazer o bem àqueles
a quem se havia feito o mal” (7).
Como estamos considerando nossa jornada evolutiva como uma caminho
de esperança, recordemo-nos nos momentos difíceis de
arrendimento e culpa, quando “nosso coração nos
condena”, de que “Deus é maior que o nosso
coração, e conhece todas as coisas” (8).
(*) Henrique Fernandes Membro
Expositor da Associação Médico-Espírita
do Rio de Janeiro. Membro Conselheiro da Rádio Rio de Janeiro.
Mestre em Psicologia, Psicólogo e Psicoterapeuta.
____________
(1) KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo
o Espiritismo , capítulo 17, item 4.
(2) KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo , capítulo
XXIII, item 6.
(3) KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno , primeira parte,
capítulo VII.
(4) KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos , questão
992.
(5) KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo e Espiritismo, cap. V,
item
(6) KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo , capítulo
XXVIII, item 3.
(7) KARDC, Allan. O Céu e o Inferno , ............
(8) O Novo Testamento. João, 3:20.
Fonte: http://www.umep.com..br/artigos/artigo0014.htm
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