Rodrigo
Cunha
> Jesus: mitológico ou histórico? Sobretudo,
literário
Apesar de não ter deixado nenhum
documento escrito de próprio punho – assim como Sócrates
– Jesus Cristo não tem sua existência questionada
– diferente do que acontece com o filósofo grego. Trata-se
de uma das figuras históricas sobre as quais mais documentos
se tem na literatura – seja ela “oficial” ou de
ficção. Pelo critério da múltipla confirmação,
a partir do relato de sua vida feito por diferentes autores que nunca
se viram, ele de fato existiu. Por um lado, é tido como um
revolucionário histórico assassinado por se auto-proclamar
o Rei dos Judeus dentro dos domínios de um ainda poderoso Império
Romano. Por outro, é um semi-deus mitológico cujas glórias
foram cantadas por legiões de admiradores, tal como o Ulisses
das epopéias gregas. Seja de ficção ou não,
literatura sobre ele é o que não falta.
De acordo com a historiadora Eliane Moura Silva, da Unicamp, os fatos
da vida de Cristo são relatados de passagem em alguns textos
antigos, como a Vida dos Judeus, de Flávio Josefo, que viveu
entre os anos 37 d.C. e 103 d.C., porém de forma pontual e
não muito extensiva. Segundo ela, há estudos que revelam
ser verdadeiras muitas das referências históricas contidas
nos Evangelhos do Novo Testamento, que tratam da vida de Cristo, mas
que também foram escritos posteriormente. “Trata-se de
período conhecido da história do Império Romano,
embora a Judéia [onde Jesus viveu] não fosse a principal
preocupação nem a província romana mais importante
na época”, afirma.
Uma dessas referências históricas é o reinado
de Herodes Antibas, durante o qual Jesus nasceu. Como esse reinado
acabou quatro anos antes do marco zero do calendário cristão
os pesquisadores são praticamente unânimes em afirmar
que o nascimento de Jesus se deu, na verdade, entre os anos 6 a.C.
e 7 a.C.. Outra unanimidade é que nenhum pesquisador, atualmente,
atribui ao Santo Sudário valor histórico para provar
a existência de Jesus. Uma pesquisa iniciada pelo brasileiro
Carlos Chagas Filho, que foi Decano da Pontifícia Academia
de Ciências do Vaticano, datou o tecido tido como Santo Sudário
como sendo do século VII, não podendo ter sido usado
para cobrir o rosto de Cristo em sua crucificação.
Luis Carlos Susin, da Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade
Católica (PUC) do Rio Grande do Sul (RS), também menciona
os textos literários como os principais documentos históricos
de que os pesquisadores dispõem para o estudo do período
em que Cristo viveu. Segundo ele, através do encadeamento de
uma literatura secundária – sobre os relatos bíblicos
– e estudos de evolução histórica das línguas
nas quais foram escritos o Antigo Testamento (hebraico) e
o Novo Testamento (grego), é possível ter bases
científicas para os fatos em torno de Jesus narrados na Bíblia.
“A arqueologia ajuda na confirmação e na contextualização,
mas permanece muda, sem documentos literários”, acredita
Susin.
Já Israel Finkelstein, diretor do Instituto de Arqueologia
da Universidade de Tel Aviv, em Israel, diz que sua área de
pesquisa é a única que fornece dados novos em relação
ao que já se conhece sobre os fatos relatados na Bíblia.
Uma das recentes descobertas arqueológicas foram as ruínas
de um antigo local de peregrinação religiosa, cuja datação
indicou que ele teria sido construído por volta do século
III d.C. Essas ruínas estavam nas margens do rio Jordão,
onde Jesus teria sido batizado por João Batista, segundo o
relato bíblico. Outros achados arqueológicos são
os restos de um barco e de uma casa que teria sido de um dos discípulos
de Jesus, em Cafarnaum, uma aldeia de pescadores onde ele começou
a pregar.
O historiador André Chevitarese, do Laboratório de História
Antiga da UFRJ e do Núcleo de Estudos Estratégicos,
da Unicamp, explica que existem dois tipos de pesquisa arqueológica
relacionada a fatos bíblicos. Uma é fundada nas religiões
judaico-cristãs, com viés religioso, tentando provar
a veracidade da Bíblia, e político, tentando provar
que as terras da região de Israel sempre pertenceram aos judeus.
A outra vertente parte de relatos como os do Velho Testamento para
procurar, por exemplo, restos arqueológicos materiais em regiões
descritas pelo texto bíblico, sem uma finalidade prévia
de comprovar ou refutar a Bíblia.
“Parece existir uma contradição entre a narrativa
dos Livros dos Reis, que fala de Salomão, e o que foi encontrado
pelos arqueólogos”, exemplifica Chevitarese. Segundo
ele, não havia nenhum vestígio de construções
suntuosas datadas do século X a.C., época em que teria
reinado Salomão. “As grandes construções
que os relatos bíblicos atribuem ao período fazem parte
de um discurso ideológico para valorizar Salomão em
relação a outros reis. Isso significa que devemos ter
cautela sobre a literatura da época”, avalia.

Outro achado importante, que mobilizou arqueólogos, historiadores,
filólogos e cientistas da religião, foram os pergaminhos
encontrados em vasos de cerâmica nas cavernas de Qumram, próximas
ao Mar Morto. Esse material, que pôde ser visto no Brasil em
exposições no Museu Histórico Nacional, no Rio
de Janeiro, e na Pinacoteca de São Paulo, inclui pedaços
de manuscritos originais de textos do Velho Testamento – correspondente
à Torá judaica – e textos de reflexão dos
essênios, que explicam por que essa comunidade de judeus foi
para o deserto viver segundo suas tradições: eles haviam
brigado com os sacerdotes do Templo de Jerusalém, que segundo
eles, haviam violentado as leis da Torá. Apesar de nada informarem
sobre Jesus ou o cristianismo, esses documentos revelam que um judeu
celibatário, como Cristo, não era tão incomum
assim naquele período.
Para o arqueólogo israelense, os relatos do Antigo Testamento
– que narram desde a criação do homem até
a longa travessia dos judeus pelo deserto antes de sua chegada à
terra prometida de Canaã – são uma mera coleção
de mitos e epopéias literárias criados a partir do século
VII a.C. E o teólogo James Veitch, diretor do Programa de Estudos
Religiosos da Victoria University of Wellington, na Nova Zelândia,
diz o mesmo inclusive a respeito dos Evangelhos do Novo Testamento
que, segundo ele, seriam histórias orais, em sua origem, nas
quais as figuras centrais são seres sobre-humanos ou divinos
– como as epopéias gregas que deram origem à literatura
ocidental.
“O testemunho transmitido por tradição oral nos
primeiros séculos têm um peso decisivo, que não
pode ser descartado”, pondera Susin, da PUC-RS. Mas Veitch,
em The birth of Jesus: history or myth, afirma que
Jesus foi basicamente um bom judeu que fez o melhor de si para apresentar
Deus a seus contemporâneos, e teria sido Saulo de Tarso –
que ficou conhecido posteriormente como Paulo – o responsável
pela disseminação do cristianismo e pela divinização
de Jesus. “Foi o grupo que catequizou Paulo que colocou a ressurreição
como elemento central da cristandade de Jesus. E Paulo, um judeu helenizado,
que falava grego e vivia em cidades, soube dialogar com outras culturas
não judaicas, disseminando o cristianismo”, confirma
Chevitarese.
A literatura de ficção, a exemplo de alguns teólogos
e historiadores, também explora um lado mais humano e menos
divino de Jesus. Entre os vários exemplos, estão O
evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, e A
última tentação de Cristo, de Nikos Kazantzakis,
este último adaptado para o cinema por Martin Scorsese. Ambos
exploram uma relação amorosa que Cristo teria tido com
Maria Madalena e que não aparece nos Evangelhos. No recente
best-seller O código Da Vinci, de Dan Brown, a protagonista
Sophie, neta do diretor do Museu do Louvre, em Paris, descobre ao
final da trama, ser uma descendente direta da linhagem iniciada na
relação entre Jesus e Madalena.
Sobre essa suposta relação, a historiadora da Unicamp
Eliane Moura Silva observa que há muita coisa escrita no gênero
romance. Os autores vão desde grupos que repensam esta questão
como uma tradição paralela que a Igreja nega ou esconde,
para justificar o celibato dos padres, até grupos feministas
que querem rever a questão do celibato e da ordenação
feminina. “Alguns autores, como Saramago, buscam, nessa relação
sensual e amorosa, recuperar o Cristo humano submetido ao comum que
é a marca da vida de homens e mulheres. Não há
muito que comprove nada disso do ponto de vista de documentação
de ‘época’”, diz.
Para Susin, pesquisador da PUC-RS, a leitura preconceituosa da história
da cristandade pintando Madalena como uma mulher pecadora não
condiz com os textos dos Evangelhos, nos quais ela aparece como uma
discípula proeminente. “Mas disso passar a ser a relação
íntima de Jesus, é tocar na imaginação,
no desejo e na inquietação, o que é uma sacada
de mercado”, diz Susin. “O autor consegue incluir um elemento
deixado à sombra numa cultura patriarcal: a mulher, a sexualidade
no coração da espiritualidade, a relação
de gênero”, completa.
Se os historiadores e arqueólogos não podem dizer nada
a respeito do grau de intimidade na relação entre Madalena
e Jesus, é possível pelo menos fornecer pistas sobre
o homem que ele foi. Chevitarese menciona escavações
arqueológicas que encontraram restos de um teatro grego datado
de 20 d.C. em uma cidade a 6 km de Nazareth, onde Jesus nasceu, chamada
Séforis, na qual ele provavelmente trabalhou na mesma profissão
de seu pai, como carpinteiro. O pesquisador da UFRJ lembra uma palavra
muito usada por Jesus – hipócrita, que em grego significa
“ator de teatro” ou “aquele que usa máscara”
– para levantar a hipótese de que ele não era
um matuto, mas um homem urbano que teve contato com a cultura helênica
em Séforis, próxima à sua cidade natal. Mais
um aspecto que, de certa forma, permite relacioná-lo com o
Ulisses das epopéias literárias.
Fonte: http://www.comciencia.br/reportagens/2005/05/04.shtml
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