Da fila,
na calçada em frente a um abrigo na zona sul da cidade de São
Paulo, é fácil perceber que a ansiedade tomou conta
das crianças. São gritos e gargalhadas de animação
pela chance de ganhar uma família. Esse sentimento também
está no semblante tenso dos casais que aguardam o andar da
fila. Esses estão prestes a ter um filho. "Tomara
que, aqui, tenha uma menina de uns três, quatro meses. E branquinha",
diz uma jovem para a mulher detrás. "Esse é o 4º
domingo que saio com meu marido para escolher uma neném. Também
quero uma bem clarinha. Tem que ver bem, porque tem umas que, conforme
cresce, vai escurecendo", responde a mulher.
Quando a porta se abre, pontualmente
às duas da tarde, é como uma liquidação
que começa. Um alvoroço! É um misturar de gente
grande com gente pequena. Uma confusão. Em alguns minutos,
as crianças de três a seis anos se agarram nas pernas
das mulheres e homens. Umas tentam fazer graça, para chamar
a atenção dos adultos. Querem parecer melhores para
serem escolhidas.
Os menores de três anos ficam
nos cercadinhos e berços, e os maiores, até 16 anos,
ficam espalhados, quietos pelos cantos. "Nem ligo mais. Sei que
não vão me querer mesmo!", diz baixinho o garoto
de 13 anos, que há sete espera por uma família. "Meu
pai morreu e a polícia chegou quando a minha mãe estava
me batendo", conta.
Ao ler o prontuário desse
garoto não é fácil olhar para ele sem sentir
pena. Em caligrafia quase ilegível, há o relato de uma
mulher que aciona a Polícia Militar pelo 190, denunciando espancamento
na casa vizinha. A moradora tem cigarro numa das mãos e na
outra um pedaço de vidro. A criança estava ensangüentada
e chorava muito pelos cortes e queimaduras. A mãe foi levada
à delegacia e a criança a um hospital. No item observação:
"a PM prestou atendimento porque o Conselho Tutelar estava fechado".
O fato ocorreu há sete anos, mas até hoje esses órgãos
funcionam apenas de segunda e sexta-feira, das 8 às 18 horas.
No pequeno espaço com grama,
três meninas brincam ao redor de uma árvore, enquanto
um casal as observa, com os olhos mais atentos a uma delas. "Vamos
perguntar sobre ela para a assistente social?", convida a mulher
ao marido.
"Não pode ser aquela
outra, de vermelho?, sugere a assistente ao casal. "É
que nós gostamos daquela mesmo. É pela semelhança
com a família do meu marido. Não pretendo contar depois
sobre a sua origem. Então, é melhor que ela seja parecida.
Mas, por que não pode?", questiona a mulher.
A assistente explica que nem todas
as crianças abrigadas estão livres para adoção.
Algumas estão aqui por determinação da Justiça.
Aquela menininha era maltratada pelos pais e está afastada
de casa até que o juiz decida se ela volta para a família
ou se é liberada para adoção.
"Nesse abrigo, tem cinco
irmãos, sendo três meninas e dois meninos. Muitos já
quiseram levar os mais novinhos, mas a Justiça proíbe
que eles sejam separados. Só que a mãe deles sempre
vem visitar. Mas toda vez ela está grávida", conta
uma das assistentes sociais para um casal que observa e comenta a
semelhança entre as crianças.
Outro casal, aparentemente com mais
de 45 anos de idade, observa um garotinho no berço. "Querida,
um menino. Deve ter menos de dois anos. Vamos conversar com a moça?",
sugere o homem à companheira, encantada com a possibilidade
de ser mãe, quando uma das funcionárias do abrigo se
aproxima e avisa sobre a não disponibilidade daquele bebê.
"Ele tem família. A mãe vem visitar de vez em quando.
Quando ela arrumar emprego, ela vem buscar o filho", esclareceu.
Já eram quase cinco da tarde.
Mais um dia de visitas chega ao fim. Os adultos, candidatos a pais,
foram esvaziando o local, deixando a sensação de fim
de festa para todos. Para mim, uma "falsa suposta mamãe",
era apenas o começo de um trabalho de denúncia, mais
do que jornalística, social.
Os semblantes das crianças
esmorecidas e, sem saber o porquê, mesmo que cativassem um casal
visitante, não podiam ser levadas ao ambiente familiar. Estão
presas à família de origem, que as deixaram ali. Seja
para protegê-las da pobreza, seja por determinação
da Justiça devido a maus-tratos e/ou negligência. A esperança
de muitas crianças é voltar para casa e de outras é
nunca mais ver os pais, que lhes causaram dor e humilhação.
Para que a visita não
mais seja o momento mais importante da semana é preciso cuidar
e curar a instituição família. É evidente
que muitos dos pais e mães violentos (as), por exemplo, foram
vítimas de maus-tratos na infância. Repetem suas histórias
e gritam por apoio, orientação e tratamento psicológico
e psiquiátrico, assim como aqueles que vivem qualquer vício.