Moisés Sbardelotto entrevista Antonio
Drucilla Cornell
No ubuntu, fazer justiça a alguém
tem a ver com cuidar da sua singularidade como uma pessoa única,
explica a filósofa e advogada norte-americana Drucilla
Cornell. Por isso, o ubuntu pode ser extremamente útil
para as feministas ou demais grupos de direitos humanos
Singularidade e alteridade: entre a relação
tensa entre esses dois âmbitos, o ubuntu pode ser um caminho
para se entender – e para ser – humano. Para a professora
da Rutgers University, dos Estados Unidos, Drucilla Cornell,
a ética do ubuntu nos ajuda a perceber que “viemos a
um mundo com obrigações para com os outros, e esses
outros têm obrigações para conosco”, pois
são eles que nos ajudam “a encontrar nosso caminho para
nos tornarmos uma pessoa única e singular”.
Por isso, ela descarta qualquer aproximação entre o
ubuntu e o conceito de comunitarismo. Diferentemente deste, o ubuntu
nos leva a “realizar uma individualidade verdadeira e nos erguer
acima de nossa mera distintividade” por meio “do envolvimento
e do apoio aos outros”, explica.
Em suma, segundo Drucilla,
“o ubuntu está intermitentemente conectado ao porquê
e ao como o ser humano é uma prática ética”.
Isso se explica pelo fato de que “sempre nascemos com obrigações
para com os outros e não podemos escapar delas, assim como
elas, por sua vez, têm de ser pessoas éticas na medida
em que nos ajudam a formar nosso caminho para nos tornarmos pessoas”.
Drucilla Cornell é professora de Ciências
Políticas, Literatura Comparada e Estudos da Mulher da Rutgers
University, de Nova Jersey, nos Estados Unidos. Também é
professora visitante das University of Pretoria, na África
do Sul, e do Birkbeck College, da Universidade de Londres. Antes de
começar sua vida acadêmica, Cornell foi líder
sindical e feminista ativa durante muitos anos. Doutorou-se em direito
pela University of California, em 1981. Ela também produziu
um documentário sobre a ética do ubuntu, intitulado
ubuntu Hokae. De 2008 até o final de 2009, Cornell foi professora
da cátedra em direito, valores indígenas e jurisprudência
da National Research Foundation, na University of Cape Town, na África
do Sul. Ela fundou o projeto Ubuntu em 2003 e continua sendo sua codiretora
junto com Chuma Himonga, no qual se busca compreender a importância
do ubuntu na nova África do Sul e sua possível tradução
na lei e no direito. É autora de diversos livros sobre teoria
crítica e feminismo, como Feminismo como Crítica
da Modernidade (Rosa dos Tempos, 1987), de coautoria de Seyla
Benhabib. Destacamos também seu artigo Interpreting ubuntu:
Possibilities for Freedom in the New South Africa, escrito com
Karin van Marle.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a senhora interpreta o conceito
ubuntu?
Drucilla Cornell –
Ubuntu é uma noção fundamentalmente ética
do que significa ser um ser humano. Por conseguinte, é um aspecto
crucial do que veio a ser conhecido como humanismo africano. É
claro que o ubuntu teve certa importância na política sul-africana
e foi muitas vezes aplicado como uma ideologia nacionalista africana.
Há razões importantes para reconhecer os valores africanos
como cruciais para o diálogo da humanidade, já que eles
foram excluídos durante muito tempo. Mas o ubuntu, como uma ética
em que praticamos o que significa ser humano em nossas atividades cotidianas,
não se justifica apenas devido a suas raízes indígenas
na África do Sul, mais especificamente nas línguas zulu
e xhosa. Por isso, uma ética como o ubuntu será sempre
contestada, e é um erro reduzi-la a uma ideologia nacionalista
africana.
IHU On-Line – Como um princípio
ético, quais são seus pilares fundamentais? Podemos encontrar
algumas similaridades com outras escolas de pensamento filosófico?
Drucilla Cornell – Sabe-se que,
na tradição xhosa e zulu, quando os bebês nascem,
seu cordão umbilical é enterrado, e o local do enterro
assinala o início de sua jornada a se tornar uma pessoa. A realização
da singularidade como pessoa sempre é um projeto inseparável
das obrigações éticas nas quais se participa, de
uma forma ou de outra, desde o início da vida. Nós nascemos
dentro de uma língua, de um grupo de parentesco, de um orgulho,
de uma nação, de uma família. Mas essa inscrição
não pode ser simplesmente reduzida a um fato social. Viemos a
um mundo com obrigações para com os outros, e esses outros
têm obrigações para conosco no sentido de nos ajudar
a encontrar nosso caminho para nos tornarmos uma pessoa única
e singular.
Seria um equívoco profundo confundir o ubuntu com o conceito
anglo-americano de comunitarismo. É só por meio do envolvimento
e do apoio aos outros que somos capazes de realizar uma individualidade
verdadeira e nos erguer acima de nossa mera distintividade. Poderíamos,
portanto, dizer que uma pessoa está eticamente entrelaçada
com os outros desde o início. Esse entrelaçamento não
constitui quem elas são e quem devem se tornar. Pelo contrário:
cada um de nós precisa encontrar uma forma de se tornar uma pessoa
singular em relação ao resto. Nessa singularidade, elas
se tornam alguém que define suas próprias responsabilidades
éticas à medida que vai se tornando uma pessoa. Se, então,
uma comunidade está comprometida com a individuação
e a realização de um destino único para cada pessoa
– muitas vezes dissecada pelo nome, mas não determinada
por ele –, então a pessoa tem obrigações
para com a comunidade que a apoia, não simplesmente como um dever
abstrato correlacionado com direitos, mas é uma forma de participação
que permite que uma comunidade busque ser fiel à diferença
e à singularidade. Parte dessa diferença é que
também somos chamados a fazer a diferença contribuindo
para a criação e a manutenção de uma comunidade
humana e ética.
IHU On-Line – Para a ética
do ubuntu, qual é o significado e a importância da justiça
e do direito?
Drucilla Cornell –
Obviamente, o ubuntu tem implicações importantes para
o significado do direito, da justiça e da reconciliação.
Para o grande filósofo africano Kwasi Wiredu , a diferença
participativa – em que cada um de nós é diferente
– se confunde com o princípio da imparcialidade simpática,
em que procuramos imaginar a nós mesmos e aos outros como seres
singularmente únicos. A imparcialidade simpática, nesse
sentido singular, nos chama não a buscar a semelhança,
mas a imaginar os outros em sua diferença com relação
a nós. O problema de como desenvolvemos tal ligação
com a alteridade – crucial para a justiça e, com efeito,
para qualquer sistema jurídico – explica-se em parte porque
já estamos tentando desenvolvê-la com os outros e eles
são, em um sentido profundo, parte de nós.
Os críticos do ubuntu, incluindo
os críticos que confundem o ubuntu com uma modalidade obsoleta
de coesão e hierarquia social, cometem o erro de reduzir o ubuntu
a uma ontologia ética de um mundo supostamente compartilhado.
O que se deixa de perceber nessa crítica é justamente
o ativismo inerente à diferença participativa que marca
cada um de nós como a nossa própria pessoa. O ubuntu contém
claramente um fim aspiracional e ideal – produzir um mundo humano
e tornar-se uma pessoa nesse mundo humano para fazer uma diferença
nele é algo que não tem fim. Portanto, o ubuntu acarreta
um vínculo social, que está sempre sendo remoldado pelas
exigências éticas que ele coloca a seus participantes.
O ubuntu condensa, em sentido profundo, as obrigações
morais dos seres humanos que devem viver juntos, o que constitui a base
de qualquer noção do direito que vai além da limitada
noção anglo-americana do direito. O ubuntu implica em
uma moralização fundamental das relações
sociais, e essa moralização é o aspecto imutável
do ubuntu, que nos ensina que nunca podemos escapar do mundo ético
que compartilhamos. Mas quero mais uma vez deixar claro o que é
o ubuntu: não é perdão na acepção
cristã; no ubuntu, se um mal foi cometido por alguém na
comunidade, então seria necessário que o malfeitor compensasse
a pessoa à qual fez o mal. O perdão é um conceito
cristão que, às vezes, foi imposto na Comissão
da Verdade e Reconciliação da África do Sul sobre
a noção de ubuntu e não faz justiça a essa
noção.
IHU On-Line – Qual é o
valor do ser humano e da vida humana para o ubuntu?
Drucilla Cornell – Como vimos,
o aspecto aspiracional do ubuntu é de que precisamos nos esforçar
juntos para alcançar um bem público em um mundo compartilhado,
de modo que possamos sobreviver e florescer, cada um e cada uma de nós
em sua singularidade. Mas, ao mesmo tempo, cada um de nós em
nossas relações éticas está produzindo o
que significa ser um ser humano – um ser humano ético.
É a inserção do ubuntu em nossas relações
que a torna transformadora em seu cerne, e essa transformação
nunca pode ser eliminada da moralização das relações
sociais. Teria sido absurdo há 500 anos se o ubuntu tivesse exigido
eletricidade, já que nem havia acesso à eletricidade.
Agora, entretanto, não é nada absurdo fazer tal proposta,
porque a eletricidade é parte integrante da vida humana na sociedade
moderna. Por conseguinte, o ubuntu está intermitentemente conectado
ao porquê e ao como o ser humano é uma prática ética.
O ubuntu tem implicações importantes para a noção
do que significa ter uma vida humana: em última análise,
que a vida humana deve ser uma vida ética.
Por isso, ele tem certa ressonância com o pensador Immanuel Kant
. Para ele, diferentemente de quase todos os outros pensadores do mundo
ocidental, a liberdade é inseparável da obrigação.
Em Kant, é ao menos uma possibilidade prática que os seres
humanos se postulem como autônomos, na medida em que podem formular
uma lei entre si mesmos. Assim, podemos, por sua vez, nos representar
como livres de nossos desejos cotidianos que nos impulsionam e, com
efeito, nos tratam duramente. A relação entre o âmbito
da liberdade interior (da moral), e o âmbito da liberdade exterior
(do direito ou Recht), tem sido muito debatida na pesquisa sobre Kant.
Mas está claro que precisa haver uma ligação entre
os dois. Se não houver ligação, não há
terreno para a liberdade exterior em que coordenamos mutuamente nossos
fins.
É exatamente por isso que o experimento hipotético kantiano
na imaginação, em que podemos configurar as condições
em que os seres humanos podem aspirar ao grande ideal do Reino dos Fins
, desperta a possibilidade de que, como criaturas da razão prática,
podemos harmonizar nossos fins, o que nos permite reconciliar a obrigação
com a liberdade. Essa reconciliação também é
crucial para o ubuntu, o que explica por que Kant continua desempenhando
um papel tão importante na herança intelectual do humanismo
africano.
IHU On-Line – A partir do ubuntu, como o ser
humano pode e deve se relacionar com a natureza? Que tipo de relação
deve haver entre os seres humanos e não humanos?
Drucilla Cornell – O ubuntu,
assim como expusemos anteriormente, tem a ver primordialmente com uma
prática de ser humano que seja ética. Houve, entretanto,
uma série de pensadores do ubuntu que tentaram sustentar que
essa forma de praticar a humanidade implica efetivamente uma relação
muito diferente e não exploradora com a natureza e a proteção
da vida dos seres não humanos. É claro que, no humanismo
africano, a noção do humano é expandida para incluir
quase todo o mundo na comunidade humana.
Dito isso, o ubuntu é uma forma de ser humano que não
desperta nenhuma capacidade que nos separe dos animais, mas nos devolve
a uma relação mais holística com a natureza. Acredito
que o ubuntu pode ser um conceito muito útil para repensar nossas
obrigações para com os animais, indo além da noção
jurídica de direitos animais.
IHU On-Line – Como o ubuntu pode enriquecer
as culturas e a ética das sociedades não africanas?
Drucilla Cornell – Um dos meus
alunos de pós-graduação está trabalhando
atualmente em uma tese que sustenta que a noção de Amartya
Sen , segundo a qual liberdade é desenvolvimento, pode ser melhor
concebida através da herança intelectual do humanismo
africano. Em seu mais recente livro, The Idea of Justice (Cambridge:
Belknap Press/Harvard University Press, 2009), o próprio Sen
sustenta que precisamos introduzir ideias de diferentes heranças
intelectuais em nossos diálogos sobre a justiça. Mas nem
mesmo o melhor diálogo nos levaria necessariamente a um acordo.
Em última análise, o ubuntu nos ajuda
a entender por que o conflito é sempre inevitável entre
os seres humanos e por que nem mesmo uma ética da solução
de conflitos jamais levará necessariamente a um conjunto único
de princípios éticos ou a regras jurídicas.
No direito, o ubuntu sempre desempenhou um papel importante
ao nos lembrar que precisamos olhar para o contexto, por exemplo, de
por que um determinado indivíduo roubou um carro, ao invés
da lei do sentido do roubo de carros. É essa insistência
de que olhemos para o conflito e o resolvamos que tornou o ubuntu tão
importante em várias áreas de peso do direito constitucional
na África do Sul atualmente – incluindo a jurisprudência
muito importante que está se desenvolvendo em torno dos direitos
sociais e econômicos.
Por isso, em um sentido profundo, o ubuntu tem muito
a nos ensinar sobre a cultura e a ética africanas, porque ele
nos ajuda a pensar sobre o sentido do desenvolvimento como liberdade,
pois entendemos que a liberdade tem um vínculo intrínseco
com nossas obrigações para com os outros.
IHU On-Line – De que forma o ubuntu nos ajuda
a repensar as questões de gênero ou feministas hoje?
Drucilla Cornell – O ubuntu foi
muitas vezes criticado por feministas que sustentam que ele oferece
uma ética patriarcal em que as mulheres são necessariamente
colocadas abaixo dos homens. Como sustentei, o ubuntu não nos
dá uma ontologia social estática. Pelo contrário,
ele é uma noção ativa de como nos tornamos humanos
em nossa própria prática cotidiana da ética.
Então, o que isso tem a ver com o feminismo?
Pense-se, por exemplo, no caso Shilubana , em que uma mulher se tornou
chefe. A associação de mulheres da área rural sustentou
vigorosamente que o direito consuetudinário vivo da África
do Sul, incluindo a ética do ubuntu, sempre permitiu que se desse
grande flexibilidade ao que é a resposta certa em uma situação
específica, que não pode ser reduzida a uma noção
jurídica do que a lei nos diz o que fazer. Assim, no caso de
uma mulher da área rural, elas argumentaram que o direito consuetudinário
sempre foi flexível e que elas buscavam a justiça para
permitir que uma mulher se tornasse chefe.
Por isso, discordo dos críticos que dizem que
o ubuntu implica em uma ontologia social que necessariamente implica
em desigualdade de gênero. Essa é uma compreensão
equivocada da noção muito ativa do ubuntu como uma virtude
ética em que damos vida ao nosso ser humano através de
nossas ações para com os outros.
IHU On-Line – Em sua opinião, como o
ubuntu pode ser uma alternativa – ou fomentar algumas alternativas
– para a modernidade capitalista neoliberal e à cultura
ocidental?
Drucilla Cornell – Muitos dos
movimentos de base apelam ao ubuntu como uma forma de justificar sua
própria militância de base e, de fato, seu apelo a uma
ética socialista. Parte da razão pela qual os valores
nativos são aplicados é, sem dúvida, por causa
do legado colonial da borracha, do apagador. Como observei repetidamente
em minhas respostas, essa não é a forma pela qual o ubuntu
se justifica. O ubuntu se justifica como uma prática ética
universalizável do que significa ser um ser humano, visto que
temos sempre, desde o início, obrigações para com
os outros e precisamos expandir as necessidades de nossa humanidade
tanto quanto possível para incluir todos aqueles que podem estar
excluídos do registro da humanidade.
Assim, não surpreende que muitas pessoas relacionem
o ubuntu com a noção de Karl Marx segundo a qual uma sociedade
comunista se basearia na ideia “de cada um de acordo com sua capacidade,
a cada um de acordo com sua necessidade”. Essa é, com efeito,
a ética mais individuada da justiça que se possa imaginar.
O ubuntu entende por que essa noção de obrigação
e de nossas próprias responsabilidades como pessoas com capacidades
não tornaria necessário que tentássemos alcançar
o máximo possível por nossa própria conta. Mas,
ao invés disso, ele nos leva a criar uma comunidade justa em
que possamos viver junto com outras pessoas.
Lembrem-se de que há uma verdade no ubuntu: sempre
nascemos com obrigações para com os outros e não
podemos escapar delas. Assim como elas, os outros, por sua vez, têm
de ser pessoas éticas na medida em que nos ajudam a formar nosso
caminho para nos tornarmos pessoas.
Isso nos leva a um último aspecto de por que
o ubuntu é importante para as feministas. Muitas feministas sustentam
que existe um conflito, ou ao menos uma tensão, entre a justiça
e o cuidado. Mas, no ubuntu, fazer justiça a alguém sempre
tem a ver com cuidar da sua singularidade como uma pessoa única.
Por isso, o ubuntu pode ser extremamente útil para as feministas
que veem isso como uma tensão que não pode ser superada.
Em última análise, o ubuntu inspirou muitos movimentos
a se chamarem explicitamente de socialistas ou até a praticarem
o comunismo vivo ao procurarem corresponder às obrigações
cotidianas que todos nós aceitamos se entendemos que as relações
sociais mútuas são primordialmente éticas e que
isso inclui a nossa noção de eu-econômico, que é
completamente incompatível com a visão capitalista de
mundo.
Fonte: https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/3692-drucilla-cornell
Edição 353 | 06 Dezembro 2010
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