Tudo está
tranquilo aqui na capital bósnia. As montanhas estão
belas agora, não mais sinônimo de morte. Dirigir por
elas é fácil, não mais uma jornada sem fim de
resultado incerto por entre linhas de frente. Mapas suvenires de Sarajevo
sitiada são muito procurados no comércio. Grupos japoneses
lotam os ônibus de turismo. É sereno no vale cônico.
Por 16 anos, após ter concluído
meu livro sobre a dissolução sangrenta da Iugoslávia,
eu não consegui voltar para a Bósnia, não podia
encarar outra lição de história dos Bálcãs
ou a ignorância de pessoas bem intencionadas.
É bom estar de volta. É
bom ouvir queixas sobre governança abjeta, corrupção
desenfreada, inviabilidade da arquitetura do Acordo de Paz de Dayton,
os partidos políticos ainda divididos segundo linhas étnicas,
desemprego, falta de rumo, sistema judiciário disfuncional,
a mesquinhez do sectarismo –ouvir tudo isso sem a explosão
de outro projétil de artilharia nas ruas desertas onde vidas
e membros eram partidos.
Eu me vi por acaso com Tarik Sabanovic,
o irmão mais novo de Faruk, sobre quem escrevi durante a guerra
após ele ter sido baleado em frente ao Holiday Inn, em 1995.
Tarik lembra do que aconteceu em 9 de novembro de 1993, quando ele
tinha 9 anos.
"Eu estava na escola com minha
mochila do Mickey Mouse, aguardando pelo sinal para voltar para
casa, quando ouvi o projétil cortando o ar. Já tinham
se passado 18 meses de guerra, de modo que eu já sabia o
que fazer e me joguei no chão. Quando me levantei havia um
colega de classe diante de mim. Eu vi que ele estava sem o seu olho
direito. Eu olhei para a direita e vi Sahir Kapo com um corte imenso
no antebraço direito. Eu olhei para a esquerda, onde antes
estava meu melhor amigo, Vedad Kujkanovic, que morava no meu prédio.
Ele foi feito em pedaços. Então olhei para onde estava
minha professora, Fatima Gunic. A cabeça dela estava sobre
a mesa. O quadro-negro atrás dela estava cheio de buracos
de estilhaço. Os cabelos dela saíam pelos buracos."
Tarik correu. Perto de sua casa ele
encontrou Faruk, que ainda podia caminhar. Faruk o carregou até
o apartamento da família. Posteriormente, Tarik viu a mãe
de Vedad em lágrimas. Ela não conseguiu encontrar um
ponto no corpo de seu filho para lhe dar um beijo de despedida. Tudo
o que o projétil sérvio deixou dele foram seus dentes.
Posteriormente nós nos encontramos
com Faruk. Foi um reencontro cheio de emoção. Ele ainda
está em sua cadeira de rodas, com a barba repleta de pelos
grisalhos. Ele tinha 20 anos quando o encontrei no hospital Kosevo
de Sarajevo em 1995, assistindo a um vídeo dele sendo baleado
enquanto um soldado da ONU olhava e não fazia nada: a paralisia
do Ocidente que encorajou o genocídio contra os muçulmanos
bósnios e produziu Srebrenica.
Médicos em Nova York se interessaram
por Faruk depois do artigo. Ele foi levado para lá. "Após
as velas e trevas em Sarajevo, eu era como uma mosca em um céu
de luzes em Manhattan. Foi um banho de luz.. Eu estava no Maimonides
Medical Center, no Brooklyn, com uma janela imensa com vista para
Manhattan, como um cartão postal com as Torres Gêmeas.
E então os médicos me deram a notícia de que
eu nunca mais andaria e a cidade inteira ficou escura."
Ele voltou. Ele estudou. Ele se apaixonou
e se casou. Ele se divorciou. Ele começou a fazer vídeos
musicais e comerciais --"e percebi que estava vendendo minhas
pedras preciosas para mentiras de fabricantes de detergente".
Ele queria fazer um filme que contasse sua história. E qual
era a história dele?
No ano passado, Faruk treinou arduamente
e, após seis meses, ele se levantou por 30 segundos, a primeira
vez em 17 anos. Ele diz:
"Eu meio que luto contra a
esperança o tempo todo. É sempre um momento difícil
quando tenho esperança ao ouvir sobre um novo chip, de modo
que tento ignorar". Ele é um bósnio, um sobrevivente,
alguém que "vive e compartilha com todos".
Beleza e paz o interessam, guerra
não.
O filme que ele está dirigindo se chama "Birds Like Us"
("Pássaros como nós", em tradução
livre), baseado na obra de um poeta sufi do século 13, Farid
al-Din Attar. Faruk escreveu o roteiro. Tarik também está
envolvido. É um filme de animação em 3D contando
com tecnologia de ponta. Os pássaros viajam muito e até
longe, mas descobrem no final que o segredo da vida que buscam se
encontra dentro deles mesmos.
Foi difícil encontrar pessoas
qualificadas em Sarajevo para o trabalho. Dois contavam com o conhecimento
tecnológico, mas eram sérvios de Pale, o quartel-general
durante a guerra das forças nacionalistas que bombardearam
Sarajevo. Talvez um deles tivesse disparado o projétil que
destruiu a sala de aula de Tarik. Talvez o outro fosse o atirador
que paralisou Faruk.
Faruk os contratou em 2010. Eles conversaram
muito sobre a guerra. Posteriormente, um dos sérvios morreu
em um acidente de carro. No funeral perto de Pale havia a conversa
de como ele cometeu o erro de trabalhar para muçulmanos.
Você segue em frente. Você
acredita, mesmo que leve 17 anos para ficar em pé por 30 segundos.
Todo ato de cura conta. "Contratar sujeitos do outro lado foi
a vitória suprema", diz Tarik.