O espaço destinado a
Jaci Regis na história do Espiritismo depende de quem conta a
história. O que não se pode negar, entretanto, é
que ele é uma das personalidades mais marcantes da história
contemporânea do Espiritismo. Um homem que conseguiu questionar
e abalar as estruturas do movimento espírita oficial, introduzindo
a crítica fundamentada, numa obra profunda, contundente, consistente,
contra-hegemônica e..., portanto, profundamente polêmica.
Polêmico por natureza, personificou a contradição
em toda sua essência. Era, ao mesmo tempo, um homem sensível,
culto, repleto de ternura, explosivo, ríspido e autoritário.
Acessível às novas idéias, progressista, estimulou
e defendeu a adoção de comportamentos responsáveis
e livres de preconceitos no que diz respeito à sexualidade e
à liberdade, fundamentais para a construção da
felicidade humana, que compreendia como diretamente ligada à
busca do prazer.
Por outro lado, era politicamente conservador, um liberal
clássico na acepção da palavra, que nutria exagerada
antipatia ao socialismo e a esquerda em geral. Filho de Octávio
Regis e Izolina Adriano Regis, espíritas praticantes, nasceu
em Florianópolis, em 30 de outubro de 1932, sendo o sexto filho
de uma prole composta por oito irmãos: Otávio, Arnaldo,
Francisco, Albertina, Mariazinha (já falecidos), além
de Ivon, Luci e Egydio. Fez o curso primário nesta cidade catarinense,
onde começou a frequentar o Catecismo Espírita e, mais
tarde, a Mocidade Espírita. No início de 1947 veio para
Santos com a família e em novembro deste ano entrou para a Juventude
Espírita de Santos, recém-fundada pelo Centro Espírita
Manoel Gonçalves.
A partir daí começa a sua exitosa trajetória
de líder, divulgador e pensador espírita, destacando-se
pela sua inteligência, impulsividade e criatividade. Em 1949,
quando a Juventude, já então denominada Mocidade Espírita
Estudantes da Verdade (MEEV), mudou-se para o Centro Beneficente Evangélico,
assumiu a liderança da mesma (tinha então 17 anos) com
a transferência de Alexandre Soares Barbosa, fundador e grande
polarizador dos jovens, para a cidade de Araraquara. Em 1952 liderou
o movimento que assumiu a direção do Centro Beneficente
Evangélico. A partir daí esse centro tomaria um rumo diferenciado
dos demais.
Por sua sugestão, a casa mudou o nome para Centro
Espírita Allan Kardec (CEAK). Em 1962 liderou outro movimento
composto por um grupo de jovens que assumiu a direção
da Comunidade Assistencial Espírita Lar Veneranda, fundada em
1954, da qual foi presidente por 32 anos. Sua gestão foi marcada
por grandes realizações, culminando com a construção
de um belo prédio, sede da creche que atende hoje 130 crianças
e 80 mães, e outro para a escola (posteriormente vendido) que
continua atendendo 60 crianças. Participou destacadamente do
movimento juvenil no Estado de São Paulo, sempre combativo e
inovador. Foi um dos fundadores da União Municipal Espírita
de Santos (UMES), em 1951, sendo seu primeiro vice-presidente. Foi idealizador
e presidente da Divulgação Cultural Espírita (Dicesp),
órgão da UMES, desenvolvendo um grande trabalho de divulgação.
Jovens da MEEV, editavam o jornal Espiritismo, que posteriormente fundiu-se
com o jornal Mensageiro da União, órgão da UMES,
surgindo o "Espiritismo e Unificação", do qual
foi diretor e editor por mais de 23 anos, em companhia de José
Rodrigues, que faleceu também em 2010.
A partir das divergências e disputas encetadas
com o segmento religioso da UMES, fundou a Livraria Cultural Espírita
(Licespe), vinculada ao Lar Veneranda. E o Jornal ABERTURA, em 1987,
do qual foi presidente e redator até o seu desencarne. Por cinco
décadas foi membro do Conselho Diretor e participou de atividades
doutrinárias no CEAK, do qual foi presidente por 12 anos. Em
1999, afastou-se do CEAK e fundou o Instituto Cultural Kardecista de
Santos (ICKS), entidade ligada ao Lar Veneranda, que presidiu até
o seu desencarne. Também presidia, desde 1994, o Conselho Deliberativo
do Lar Veneranda.
Sempre empreendedor, criou em 2009 uma OCIP, denominada
Lar Ven, para cuidar dos cursos profissionalizantes ministrados no Edifício
Jaci Régis, pertencente ao Lar Veneranda e sede do ICKS e do
Lar Ven.
Escreveu as seguintes obras: A Mulher na Dimensão
Espírita, em parceria com Nancy Puhlmann Di Girolamo e Marlene
Rossi Severino Nobre (1975), Amor, Casamento & Família (1977),
Comportamento Espírita (1981), O Poder no Movimento Espírita
(1981), Uma Nova Visão do Homem e do Mundo (1984), Caminhos da
Liberdade (1990), o romance As Muralhas do Passado (1993) Introdução
À Doutrina Kardecista (1997), A Delicada Questão do Sexo
e do Amor (1999), Doutrina Kardecista - Uma releitura da Obra de Allan
Kardec (2005), Novas Idéias - Textos Reescritos (2007), Doutrina
Kardecista - Modelo conceitual (2008) e Novo Pensar - Deus, Homem e
Mundo (2009).
Dirigente, orador, divulgador do Espiritismo, escritor,
jornalista, por décadas dedicou-se à causa espírita,
desempenhando inúmeros e relevantes papéis. Poucos, entretanto,
sabem que Jaci, muito embora tenha cedo iniciado seu contato com a mediunidade,
dirigindo reuniões por muitos anos, tardiamente desenvolveu faculdades
mediúnicas, tendo contribuído por muitos anos como médium
em reuniões de desobsessão, assistência espiritual
e de pesquisa mediúnica no CEAK. Por 17 anos interrompeu suas
atividades mediúnicas, mas há pouco mais de um ano as
tinha retomando nas reuniões do Gabinete Psico-Mediúnico
do ICKS.
Era casado com Palmyra há 57 anos, companheira
dedicada que conheceu na época de mocidade espírita e
com a qual teve 6 filhos: Valéria (pedagoga), Rosana (assistente
social), Gisela (bióloga), Cláudia (psicóloga),
Fernando Augusto (médico) e Marcelo (engenheiro). Seus genros,
Junior Oliveira, Roberto Rufo e Alexandre Machado, inspirados em seu
exemplo e dedicação, tornaram-se militantes espíritas
muito valorosos. A maioria dos seus 11 netos participa ativamente da
MEEV. Atualmente o Lar Veneranda é dirigido por sua filha, Valéria
Regis Silva, e sua numerosa e devotada família participa ativamente
na gestão desta entidade, bem como do Jornal Abertura, do Lar
Ven e do ICKS. Trabalhou durante 30 anos, até aposentar-se, na
Refinaria Presidente Bernardes - Petrobrás, chegando a cargos
de chefia de departamentos. Formou-se em Economia, Jornalismo e Psicologia.
Freudiano assumido, era psicólogo clínico e até
o seu desencarne exercia intensa atividade profissional, que influiu
decisivamente para que se dedicasse a abordagem de temas relacionados
ao comportamento humano, a sexualidade, a família, a personalidade
humana e suas relações com os problemas afetivos e psíquicos.
Desenvolveu, ao longo da década de 90 do século
passado, uma teoria a que denominou Espiritossomática, procurando
estabelecer pontos de confluência e a construção
de uma práxis terapêutica a partir das contribuições
doutrinárias do Espiritismo e de outras áreas da Psicologia,
em particular a psicanálise.
Era expositor e autor que fazia (e continuará
fazendo) muito sucesso entre os jovens e espíritas livre-pensadores,
desprovidos de preconceitos, tocados pelos argumentos e pela abordagem
moderna, aberta, fundamentada e consistente com quem lidava com os mais
diversos temas doutrinários e problemas humanos. Um autor que
possuía um estilo peculiar, de reconhecida competência.
Sua pena produzia há décadas ensaios e crônicas,
publicadas em jornais e livros, de rara sensibilidade e ternura, que
tocam as mais profundas fímbrias de nossos corações
e mentes. Um texto sensível e criativo, sem que recorresse à
mesmice que caracteriza a literatura espírita. Ao mesmo tempo,
era capaz de produzir artigos, trabalhos, textos e livros de cunho doutrinários
que se constituíram em verdadeiros clássicos da literatura
espírita contemporânea, indispensáveis aos estudiosos
da Doutrina Espírita. Desenvolveu uma linha de raciocínio
e argumentação extremamente fundamentada e consistente,
a partir dos postulados de Kardec – que conhecia como poucos.
Era um líder nato e grande realizador. Não
há dúvidas de que o Lar Veneranda foi a grande obra de
sua vida, pois embora tenha tido inúmeros e valorosos colaboradores,
sua obstinação, competência e liderança foram
fundamentais para erguer e consolidar esta instituição
modelar. Sua contribuição intelectual ao pensamento espírita,
por outro lado, foi sendo desenvolvida e aperfeiçoada num processo
no qual se destacam três fatos de fundamental importância
na definição de sua obra: a "descoberta" de
Freud e sua formação psicanalítica, no curso de
Psicologia; o acesso às informações contidas na
Revista Espírita, o que lhe permitiu um aprofundamento e a contextualização
do pensamento de Kardec; e, por fim, a elaboração de uma
proposta de re-leitura de Kardec, uma reconceituação das
atividades doutrinárias, de modo a adequá-las aos princípios
e objetivos do Espiritismo, num movimento criado e difundido a partir
de 1978, ao qual denominou "Espiritização",
que alcançou grande repercussão no movimento espírita.
Constituiu-se, sem dúvida, no mais contundente e consistente
crítico do Espiritismo evangélico/cristão e do
não assumido roustanguismo da Federação Espírita
Brasileira.
Denunciou a concentração de poder nas
mãos dos conservadores dirigentes das federativas e suas nefastas
consequências. Impulsionou, a partir de meados da década
de 80, a discussão em torno do caráter religioso do espiritismo,
defendendo vigorosamente que o espiritismo não é uma religião,
combatendo a incorporação de práticas e rituais
religiosos pelo movimento e as distorções no uso e prática
da mediunidade. Foi um dos líderes, em 1986, da chapa de oposição
à USE-SP, que terminou amplamente derrotada. A este processo
seguiu-se uma verdadeira caça às bruxas, que objetivava
isolar todos aqueles que de alguma forma estavam próximos ao
"Grupo de Santos", ou seja, os influenciados e/ou liderados
por Jaci Regis. Foi deliberadamente satanizado, rotulado de obsedado
por seus "fraternos" inimigos. A divulgação
do jornal por ele dirigido e de seus livros foram proibidos.
Deixou de ser convidado para proferir palestras e conferências.
As entidades do movimento de unificação do Espiritismo
brasileiro procuraram isolá-lo, crentes que desta forma conseguiriam
sufocar a crítica à deturpação do Espiritismo
por eles transformado em uma religião conservadora e assim sufocar
a retomada de um movimento genuinamente kardecista, progressista e laico.
Buscando construir uma estratégia que pudesse romper o isolamento
dos espíritas kardecistas que haviam sido excluídos e
marginalizados (ou que se auto-excluíram por não suportarem
mais as condições impostas pelo movimento oficial), idealizou
e realizou em 1989 o I Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita
(SBPE), bianual, destinado a estimular a produção doutrinária
de espíritas encarnados, que este ano atingirá a sua 12a
edição ininterrupta. Jaci Regis proporcionou com o SBPE
um reencontro de antigos líderes espíritas e o surgimento
de uma nova e promissora geração de dirigentes espíritas.
Com isto, houve um grande fortalecimento e a definitiva capilarização
da CEPA em todo o território nacional, que culminou com a criação
da CEPABrasil, que tradicionalmente realiza suas assembléias
durante esse evento. Proferiu palestras e conferências em vários
eventos internacionais realizados pela CEPA.
Assim, tornou-se conhecido (e suas idéias reconhecidas)
na Argentina, Venezuela, Espanha, etc., bem como seus livros e artigos
traduzidos para o espanhol. Inicialmente manteve uma posição
de autonomia em relação à entidade, mas aos poucos
foi se aproximando, culminando com a adesão do ICKS à
CEPA e a sua participação, em parceria com Milton Medran,
da Secretaria Editorial do Conselho Executivo da CEPA, eleito em Porto
Rico, para a gestão 2008-2012. Embora tenha participado ativamente
de seus eventos e seja responsável por vasta contribuição
intelectual ao debate de ideias no seio desta instituição,
manteve sempre uma relação extremamente tensionada, quase
conflituosa. Na última década “sacudiu” o
movimento espírita laico dirigido pela CEPA, a quem prioritariamente
procurava estabelecer um diálogo, ao propor novos rumos para
o espiritismo a partir de algumas ideias que sintetizam parte dos consensos
construídos no interior deste movimento nos últimos anos
com outros conceitos e propostas instigantes e polêmicas.
Concebeu um Novo Modelo Conceitual, com o qual se propunha
a reescrever o modelo espírita, e a Doutrina Kardecista, que
finalmente vinha denominando Ciência da Alma. Em setembro de 2010
esteve presente no II Encontro Nacional da CEPABrasil, em Bento Gonçalves,
discutindo em toda a radicalidade o seu Modelo Conceitual e a Ciência
da Alma. Tratam-se de contribuições fundamentais que devem
ser amplamente debatidas e aprofundadas, dado o alcance e repercussões
das proposituras ali contidas. Era sem dúvida um espírito
complexo e profundamente polêmico: íntegro, direto, inquieto,
impulsivo, autoritário, muitas vezes ríspido.
Ao mesmo tempo era um homem sensível, sereno,
amável, carinhoso e profundamente benemerente. Entre os adeptos
do Espiritismo e dirigentes espíritas, é admirado por
muitos, odiado por tantos outros, mas respeitado por todos. Um espírita
que ousou romper a mediocridade reinante. Alguém que contribuiu
como poucos (e ainda contribuirá por muito tempo) com o estudo
e a divulgação do Espiritismo, comprometido de fato com
o pensamento de Kardec, numa dinâmica libertária, capaz
de produzir uma nova visão do homem e do mundo.
Um dirigente espírita influenciou profundamente
a cada um dos que com ele conviveu ou teve acesso a suas ideias e pensamentos.
Um líder na essência da palavra, com seus erros e acertos,
defeitos e virtudes. Uma vida dedicada com amor e paixão ao Espiritismo.
Inquestionavelmente, uma das grandes personalidades espíritas
do século 20 e da primeira década do 21. Até a
véspera de sua internação na Santa Casa de Santos,
em decorrência de insuficiência renal crônica, vinha
trabalhando normalmente em seu consultório e em suas atividades
doutrinárias. Mas o corpo cansado, embora tenha deixado a UTI
por 2 dias, não mais resistiu. Jaci Regis desencarnou no dia
13 de dezembro de 2010, aos 78 anos de vida, em Santos, após
45 dias de hospitalização. Retornou ao mundo dos espíritos,
onde queridos companheiros devem (em festa) tê-lo recebido.
Deixa-nos, entretanto, com a firme convicção
de que a partir desta data o clima de contemplação e tranquilidade
idealizado por muitos para caracterizar o mundo dos espíritos
estará com os dias contados. Em breve, o mais radical discípulo
de Kardec estará de volta, com toda a sua genialidade e inquietude,
produzindo entre encarnados e desencarnados novas reflexões,
desmobilizando o conservadorismo reinante, instigando a todos a dar
continuidade à permanente atualização do pensamento
espírita, a buscar incansavelmente o conhecimento e o crescimento
espiritual. E, ao mesmo tempo, envolvido nas tarefas de acolhimento
aos que padecem de sofrimentos psíquicos e morais e que necessitarem
de sua ajuda qualificada e amorosa.
O desencarne de Jaci Regis, por tudo que ele representa
para incontáveis espíritas em todo o mundo, não
será o fim de uma história. Não extinguirá
a trincheira libertária que ele abriu nas mentes de várias
gerações de espíritas. O movimento emancipatório
que ele liderou terá continuidade. Caberá a cada um de
nós, que ao longo de nossas vidas nos iluminamos a partir de
suas ideias, dar continuidade, de alguma forma, às diversas frentes
que esse homem (insubstituível) plantou, cultivou e viu florescer.
Cuidar desse imenso jardim não é tarefa para poucos, mas
terá continuidade.
Ademar Arthur Chioro dos Reis
- Membro do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita
(CPDoc), foi presidente do CE Allan Kardec, de Santos-SP e presidente
do Departamento de Mocidade da União Municipal Espírita
de Santos. Escreveu os livros "Magnetismo e Vitalismo" e
"Mecanismos da Mediunidade - Processo de Comunicação
Mediúnica".
Graduado em Medicina pela Fundação
Educacional Serra dos Órgãos (1986), com Residência
em Medicina Preventiva e Social pela Universidade Estadual de São
Paulo (UNESP)(1988). Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp)(2001). Doutor em Ciências pelo
Programa de Saúde Coletiva da Universidade Federal de São
Paulo (UNIFESP)(2011). Professor-adjunto C-IV do Departamento de Medicina
Preventiva da Escola Paulista de Medicina/UNIFESP (área Política,
Planejamento e Gestão em Saúde). Orientador permanente
(mestrado e doutorado) e coordenador da Área de Política,
Planejamento e Gestão em Saúde do do Programa de Pós-graduação
em Saúde Coletiva da EPM/Unifesp. Membro do Laboratório
de Saúde Coletiva - Lascol. Professor de Saúde Coletiva
da Faculdade de Fisioterapia na Universidade Santa Cecília
(Unisanta) e da Faculdade de Medicina na Universidade Metropolitana
de Santos (UNIMES), ambas de Santos-SP. Foi secretário municipal
de saúde de São Vicente-SP (1993-1996) e de São
Bernardo do Campo-SP (2009-2014). Foi presidente do Conselho de Secretários
Municipais de Saúde do Estado de São Paulo (Cosems-SP)
por três mandatos. Foi Diretor do Departamento de Atenção
Especializada do Ministério da Saúde (2003-2005) e Ministro
de Estado da Saúde (2014-2015).
Fonte:
https://icksantos.blogspot.com/2011/10/jaci-regis-bibliografia.html?_sm_au_=iMH10HsW67SnZngR
* * *
topo