IHU On-Line - Qual
a relação da doutrina espírita com a produção
de experiências e valores próprios?
Maria Laura Viveiros de
Castro - Meu livro foi escrito no começo dos anos
1980. Até então, o espiritismo era enfocado, sobretudo,
como um dos contribuintes para o sincretismo brasileiro do catolicismo
e das religiões da tradição afro-brasileira.
Creio que minha pesquisa foi a primeira a defender a ideia de que
o espiritismo kardecista era uma religião por si mesma e que
estudou a sua cosmologia e seu sistema ritual característicos.
É verdade que o espiritismo é um elemento importante
no sincretismo brasileiro e pode ser mesmo visto como uma religião
mediadora entre o catolicismo e a umbanda em especial. Mas é
importante também perceber que é um sistema religioso,
internamente articulado e bastante consistente e complexo do ponto
de vista simbólico. A relevância da noção
de livre-arbítrio nessa religião, a valorização
do estudo, as características muito próprias da experiência
da mediunidade, tudo isso torna o espiritismo uma religião
capaz de produzir valores próprios e dar sentido à experiência
de amplos segmentos das camadas urbanas no Brasil.
IHU On-Line - Como a senhora define as noções
chaves da cosmologia espírita - evolução, carma
e reencarnação?
Maria Laura Viveiros de
Castro - Eu as estudei em profundidade no meu livro (O mundo
invisível). Essas noções são os pilares
da visão de mundo espírita na perspectiva de uma temporalidade
diacrônica, ou seja, se pensarmos o mundo como um devir, um
processo que caminha no tempo no qual os espíritos existem.
No caso do espiritismo, esse caminho no tempo, rege a vida dos espíritos
que é vista, através das sucessivas encarnações,
como um progresso numa evolução linear e sempre do mais
imperfeito e incompleto rumo ao mais perfeito, superior e completo.
O carma integra esse conjunto, trazendo a marca das formas da atuação
de um espírito por essa trajetória cósmica em
outras encarnações para cada nova encarnação.
É um sistema de pensamento complexo, pois, se o carma é
uma forma do determinismo, a cada nova encarnação o
espírito ao reencarnar poderá também exercer
novamente seu livre-arbítrio que assim iria também evoluindo
e tornando-se mais forte.
IHU On-Line - Qual a importância, dentro do espiritismo,
da questão do estudo?
Maria Laura Viveiros de
Castro - O espiritismo é uma religião letrada
que tem a escrita e a leitura como atividades centrais. Tanto a escrita
mediúnica, a psicografia, como a escrita propriamente humana
tem espaço importante nessa prática religiosa e o estudo
é muito valorizado por conta da relevância do valor do
livre-arbítrio e da responsabilidade individual. As sessões
de estudo integram, assim, a prática ritual do espiritismo
como um todo. E o incentivo à leitura, às indagações,
à curiosidade e mesmo à imaginação torna
o espiritismo uma religião muito atraente para as camadas médias
urbanas.
IHU On-Line - Como podemos entender a perspectiva
da caridade dentro da doutrina espírita?
Maria Laura Viveiros de
Castro - Junto com a mediunidade e com o estudo, a caridade
é o outro componente característico do sistema ritual
espírita. Ela aproxima todos os espíritos encarnados
pela ideia da imperfeição - somos sempre os rotos ajudando
os esfarrapados, me dizia uma das minhas interlocutoras durante uma
das pesquisas que realizei. Toda caridade tem, contudo, um elemento
hierárquico; quem ajuda é, de alguma forma, superior
a quem é ajudado. Isso porque a ideia da evolução
perpassa tudo na doutrina espírita e há sempre superiores
e inferiores se encontrando numa mesma encarnação ao
longo da trajetória cósmica de cada um. Isso não
quer dizer que a prática concreta da caridade não possa
ser muito efetiva do ponto de vista social. É também
uma doação de si do ponto de vista de quem ajuda.
IHU On-Line - Como se dá o processo da descoberta
da mediunidade? Quais as características de um médium?
Maria Laura Viveiros de
Castro - Para os espíritas, todos somos médiuns.
Porque somos humanos e humanos são, por definição,
espíritos encarnados que se comunicam querendo ou não,
sabendo ou não, aceitando ou não, com os espíritos
desencarnados. A mediunidade ocorre assim no cotidiano, em todos os
ambientes para os espíritas porque esse mundo terreno em que
vivemos é apenas o mundo visível, englobado sempre pelo
mundo invisível com o qual se comunica todo o tempo, seja pela
mediunidade, seja pelas encarnações e desencarnações.
Tornar-se espírita é, de certa forma, aceitar esses
primados e praticar as diferentes formas da comunicação
mediúnica dentro de uma rede de relações espírita
e articulada através dos centros e lares espíritas.
IHU On-Line - Como compreender a dinâmica de
relacionamento entre os homens e os espíritos a partir da discussão
da noção da pessoa nessa religião?
Maria Laura Viveiros de
Castro - A pergunta é chave. A noção
da pessoa é um conceito central na antropologia e estabelece
uma base comparativa ampla para a antropologia das religiões.
Escrevi mais recentemente um artigo Vida e Morte no espiritismo kardecista
que enfocou bem essa questão.
Para exemplificar brevemente:
No eixo diacrônico que considera toda a evolução
cósmica de um espírito através das suas sucessivas
encarnações, nesta minha encarnação agora
eu sou apenas um "eu menor", pois o meu "eu maior"
é essa outra identidade mais ampla. Há assim, dentro
de cada espírito individual, uma heterogeneidade interna, pois
sempre somos mais do que podemos saber e conhecer nesta vida. No eixo
sincrônico que considera a comunicação desse eu
menor com os outros espíritos desencarnados nesta encarnação
de agora, eu nunca estou segura de que uma ideia, pensamento ou mesmo
atitude seja exatamente minha, ou seja, influenciada pela comunicação
espiritual. Esses “não eu”, que são os outros
espíritos, de alguma forma, participam então decisivamente
do meu “eu” ao longo da minha vida. A noção
da pessoa é aqui fundamentalmente relacional, incompleta, processual.
É um ponto bastante interessante.
IHU On-Line - Que visão antropológica
podemos estabelecer do espiritismo?
Maria Laura Viveiros de
Castro - O espiritismo é ainda pouco estudado diante
da importância de sua presença na nossa sociedade. Trata-se
de uma religião discreta, não proselitista, mas muito
marcante na sociedade brasileira, até por conta de sua proximidade,
ou melhor, fluência de fronteiras, entre muitos ambientes católicos
e mesmo umbandistas.
IHU On-Line - Em que sentido o espiritismo pode ser
apontado como um elemento de mediação entre a tradição
católica e as religiões afro-brasileiras?
Maria Laura Viveiros de
Castro - Voltando a esse ponto, algumas ideias católicas,
como as de santidade, podem ser aproximadas do universo espírita,
também a de purgatório me parece muito próxima
dos diferentes mundos invisíveis habitados e povoados por nossos
seres queridos que já se foram e com quem podemos, no espiritismo,
a continuar a nos comunicar. É importante lembrar que o espiritismo
se vê como uma religião cristã. Com relação
às tradições afro-brasileiras, a experiência
da mediunidade, isto é, da comunicação com seres
espirituais, é o elemento central de conexão. Muito
embora no espiritismo a ideia da possessão não seja
valorizada como forma de comunicação espiritual, por
conta do valor livre-arbítrio, a possessão no espiritismo
ganha a forma da obsessão e é uma forma negativa da
experiência da mediunidade.