O sociólogo da religião
Jose Casanova concedeu entrevista a Thamiris Magalhães,
Graziela Wolfart, Cleusa Maria Andreatta e Márcia Junges,
da Revista do Instituto Humanitas Unisinos - IHU On-Line
As religiões
estão se tornando cada vez mais globais - O catolicismo
se globaliza, mas as outras religiões também e formam
um mundo de religiões globais, todas abertas, sem monopólio
em parte alguma, constata o sociólogo, Senior Fellow da
Georgetown University
Por: Thamiris Magalhães,
Graziela Wolfart, Cleusa Maria Andreatta e Márcia Junges
| Tradução: Vanessa Alves
“O catolicismo
sempre significou uma religião universal”.
Essa afirmação
foi feita pelo sociólogo da religião Jose Casanova,
em entrevista concedida pessoalmente à IHU On-Line, quando
esteve na Unisinos a convite do Instituto Humanitas Unisinos -
IHU. Segundo ele, o catolicismo se faz global “porém
se desterritorializa, e isso quer dizer que os territórios
que eram católicos se tornam religiosamente pluralistas”.
E continua: “há um pluralismo religioso
muito grande no Brasil que é parte desse processo global.
Portanto, o catolicismo se globaliza, mas as outras religiões
também, formando um mundo de religiões globais,
todas abertas, sem monopólio em parte alguma”.
Há dois modelos de secularização,
segundo o autor de Public religions in the modern world.
Ele explica: “um que é secularização sem
religião, e, de alguma maneira, sobrevive à religião.
E outro, que é abrir um espaço neutro para todas as
religiões, para todas as culturas, para todas as formas de
pensar”.
Esses, segundo Casanova, são
os dois modelos de estágio secular: “um modelo de estágio
laicista, que quer marginalizar a religião para que ela não
tenha um papel na vida pública; e o outro modelo de estágio
secular, que é um estado neutro que garante a todas as religiões
igualdade e possibilidade de participar da vida pública”.
Jose Casanova esteve na Unisinos,
onde ministrou as palestras: “As religiões na sociedade
e na academia. Desafios e perspectivas” e “Teologia e
religiões no espaço público da academia e da
sociedade”.
Casanova é um dos mais respeitados sociólogos da religião
na atualidade. É professor titular no departamento de sociologia
da Georgetown University em Washington/DC, EUA, uma universidade jesuíta
fundada em 1789, e diretor do programa “Globalização,
religião e o secular” do Center Berkley daquela universidade.
Sua obra-prima é Public religions
in the modern world (Chicago/London: The University of Chicago Press,
1994), considerado um clássico na área. Nela contradiz
a muito postulada conexão íntima entre modernidade (ocidental,
mas vista como universal) e secularização, em especial
onde mantém que a religião seria fadada a virar algo
meramente privado, sem incidência pública. Além
dessa obra, é autor entre outros, do seguinte título:
A secular age: dawn or twilight? [capítulo tirado de uma coletânea
sobre o livro de Charles Taylor Uma era secular (São Leopoldo:
Unisinos, 2010)]
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual a contribuição
do catolicismo em uma época onde avança a secularização?
Jose Casanova
– Depende do que se entende por secularização.
O catolicismo seguia um modelo de religião estatal, territorial,
confessional. Desde o aggiornamento , em 1960, ele abandonou esse
modelo e se tornou uma religião mais livre, mais independente
da sociedade civil. E isso o permitiu se desterritorializar e se tornar
mais aberto a um modelo de religião global. O catolicismo sempre
significou uma religião universal. Nesse sentido, a Igreja
sempre foi universal. No entanto, isso é o que se pretendia.
Na realidade, só se constituiu em uma religião global
nos últimos cem anos.
IHU On-Line – O senhor considera que o catolicismo
está se tornando uma religião global?
Jose Casanova
– Até o século XVI, o catolicismo esteve restringido
à Europa. Com o colonialismo europeu, estendeu-se a todas as
Américas e à Ásia. Nos últimos 50 anos,
ampliou sua abrangência por outras terras. No entanto, a grande
expressão do catolicismo surge com o colonialismo espanhol
e português principalmente. Hoje em dia, na Ásia, por
exemplo, com exceção das Filipinas, trata-se de uma
religião muito pequena.
IHU On-Line – Então, acredita que ele
tem tudo para se tornar uma religião global, é isso?
Jose Casanova
– Sim. Mas simultaneamente, enquanto o catolicismo se torna
global, ele se desterritorializa, e isso quer dizer que os territórios,
que antes eram católicos, agora se tornam também pluralistas
(do ponto de vista do pluralismo religioso). Então, a religião
católica se torna uma religião global, mas ela tem que
competir com outras religiões, inclusive nos países
que eram católicos e já não o são mais
(pelo menos não oficialmente). Por exemplo, o Brasil era oficialmente
um país católico e as outras religiões estavam
ocultas. Nos últimos 40 anos, apareceram com força o
pentecostalismo e as religiões afro-brasileiras. Então,
há um pluralismo religioso muito grande no país e isso
também é parte do processo global. Portanto, o catolicismo
se globaliza, mas as outras religiões também, formando
um mundo de religiões globais, todas abertas, sem monopólio
em parte alguma.
IHU On-Line – Nesse caso, de que modo a secularização
pode ou não conviver com o religioso?
Jose Casanova
– Havia um modelo de secularização que era visto
como um processo superior ao estágio religioso, como se o estágio
secular fosse sua sequência natural. Agora, há um processo
pelo qual se entende o secular como um espaço neutro, onde
todas as religiões, não religiões e ideologias
não religiosas podem viver conjuntamente. Há dois modelos
de secularização: um que é secularização
sem religião, e de certa maneira ele sobrevive à religião.
E há outro modelo de secularização que permite
abrir um espaço neutro para todas as religiões, para
todas as culturas, para todas as formas de pensar. Esses são
os dois modelos de estágio secular: um modelo de estágio
laicista, que quer marginalizar a religião, para que ela não
tenha um papel na vida pública; e o outro modelo que é
um estado neutro, para que todas as religiões tenham igualdade
e possam participar de uma vida pública.
IHU On-Line – Quais são as diversas
formas e aplicabilidades da secularização?
Jose Casanova
– O conceito de secularização é muito ambíguo
e multivalente, motivo pelo qual eu diria que há três
significados distintos: secularização simplesmente como
diferenciação de esferas seculares (o Estado, a economia,
a ciência da religião), tal como um processo geral de
modernização; secularização como o declínio,
a perda de crenças e práticas religiosas; e secularização
como a privatização, ou seja, a religião deve
se privatizar e se tornar mais “fina”. Na Europa, esses
três processos andaram conjuntamente e pensava-se que a modernidade
necessariamente tendia não só à diferenciação
de esferas seculares e religiosas, mas também à perda
da religião, à queda de práticas e crenças
religiosas. A experiência global nos indica que a secularização
como diferenciação é compatível com muitas
dinâmicas religiosas diferentes. As sociedades seculares europeias
são praticamente “sem religião”. No entanto,
nos EUA, a secularização de diferenciação
leva ao crescimento das religiões. No Brasil vemos o mesmo
caso: nos últimos 40 anos a sociedade brasileira se modernizou.
O catolicismo perdeu sua hegemonia, mas há o crescimento de
diversas religiões. Então, em muitas partes do mundo,
o que chamamos de “a primeira secularização”
é compatível e até ajuda no crescimento das religiões.
Ou seja, diferenciação não significa necessariamente
perda ou queda das religiões.
IHU On-Line – Qual a relação
entre secularização e democracia?
Jose Casanova
– Ambos são modelos de pluralização, que
exigem a perda do monopólio. Mas a democracia simplesmente
significa pluralização de esquemas e de propostas políticas
que, em vez de imporem a hegemonia, mostram a necessidade de se conviver
uns com os outros. Nesse sentido, a democratização leva
necessariamente a um caminho de pluralização religiosa.
Há uma teoria que diz que a pluralização religiosa
põe em questão a pretensão de verdade absoluta
de uma única religião e, portanto, questiona todas as
religiões. Porque, se todas são verdadeiras, nenhuma
é verdadeira. Sociologicamente, o que vemos é que os
países mais pluralistas religiosamente não são
aqueles em que a religião desaparece, pelo contrário.
A Índia e os EUA são possivelmente as duas sociedades
mais pluralistas do mundo, ambas democráticas. Entretanto,
são muito religiosas. Então, não há evidência
sociológica nenhuma de que a pluralização religiosa
leve à perda da religião. Pelo contrário.
IHU On-Line – Nesse sentido, quais são
as religiões que mais contribuem com a democracia de um país?
O senhor pode citar como exemplo alguma religião que tenha
uma importante contribuição na América Latina?
Jose Casanova
– Essa é uma pergunta histórica, pois vivemos
um momento em que as religiões dos países autoritários,
que estão em viés de democratização, são
justamente as que têm a possibilidade de contribuir para a democracia.
O catolicismo, durante muitas décadas, não deu sua contribuição
nesse sentido. Pelo contrário, era um obstáculo em muitos
países. Nos anos 1960, a maioria dos países católicos
do mundo era autoritária, não democrática. Entretanto,
o processo de aggiornamento do Concílio Ecumêmico Vaticano
II ajudou a transformar a ideia de modelo político da Igreja,
que adotou o discurso dos direitos humanos e do valor da democracia.
Então, pela primeira vez na história, muitos movimentos
católicos participaram ativamente e desempenharam um papel
muito importante na democratização dos países.
Esse processo começou na Espanha, depois seguiu por toda a
América Latina, logo passou ao leste da Europa (como a Polônia)
e se estendeu, inclusive, por países que não eram católicos,
mas onde minorias católicas desempenharam um papel importante,
como em Taiwan, Coreia do Sul e África do Sul. Por isso essa
terceira onda democrática pode ser chamada de uma “onda
católica”. Hoje em dia, presenciamos uma quarta onda
democrática muçulmana. Pensava-se que a religião
muçulmana era antidemocrática, mas o islamismo se converteu
em democracia muçulmana, e movimentos muçulmanos desempenham
um papel muito importante na democratização da Indonésia,
que é o maior país muçulmano do mundo, ou na
Turquia, cujo partido que a governa é muçulmano e que
tem feito uma nação mais democrática do que era
antes (basta ver a Primavera Árabe, que não sabemos
como acabará). Há claramente um processo de democratização
dos países árabes.
IHU On-Line – Nesse sentido, que fenômeno
está surgindo com as religiões e/ou com a secularização
no mundo globalizado?
Jose Casanova
– Uma questão que pode ser citada como resposta é
a globalização, que leva à desterritorialização
de todas as religiões e à perda de hegemonia territorial.
O que temos percebido é um crescimento do pluralismo religioso
associado à imigração. Por exemplo, o Brasil
é um país de imigrantes, onde cada grupo trouxe sua
religião: os africanos, os portugueses, os chineses, os japoneses,
etc. Hoje em dia, em função da globalização,
da imigração e de movimentos intelectuais dos meios
de comunicação, tudo se globaliza, incluindo as religiões.
O que vemos é um processo de formação do que
se chamariam “comunidades imaginárias religiosas globais”
(comunidades católica global, muçulmana global, hindu
global, etc.). Dessa forma, todas as religiões estão
se reconstituindo globalmente como comunidades imaginárias,
competindo e também convivendo umas com as outras. É
um processo de reconhecimento múltiplo de todas as religiões
do mundo.
IHU On-Line – Em relação ao segundo
modelo de secularização abordado pelo senhor, ou seja,
o contexto da secularização em que as religiões
terão que aprender a se aproximar e a dialogar minimamente,
como se dará esse processo, uma vez que a maioria das religiões
tem, em sua essência, um sentido missionário, sempre
atuando mais na sociedade, buscando novos adeptos etc.? Nesse sentido,
como essa segunda secularização dialoga com essa pretensão?
Jose Casanova
– Trata-se de um processo de aprendizagem. Possivelmente o primeiro
lugar onde isso aconteceu foi nos EUA, país no qual não
havia processo de encontro ou de conflito entre várias religiões
cristãs, mas entre várias religiões protestantes.
Não havia apenas uma igreja protestante, mas sim várias
seitas, dúzias delas tiveram que aprender a conviver umas com
outras. Em princípio, não reconheciam o catolicismo.
Eventualmente, reconheceram os católicos e os judeus. A questão
é como pluralizar a situação para que não
haja uma igreja em minoria, e sim equivalência. A Igreja Católica,
por uma parte, afirma que é a detentora da verdade, mas reconhece
a liberdade religiosa e, portanto, o pluralismo religioso. Logo, não
pode lutar contra esse pluralismo. E isso leva à obrigação
de reconhecer a liberdade religiosa. Esse processo de cada religião
se apresentar ao mundo inteiro como verdadeira, e o direito de cada
uma ser diferente e única, é, hoje em dia, um princípio
universal de todas as religiões. Isso foi o grande ensinamento
do judaísmo, que resistiu à insistência do cristianismo,
de que este último era uma religião verdadeira, e que
os judeus deviam se tornar cristãos. O judaísmo insistiu
no direito de os judeus serem judeus, particulares, não universais.
Então, é o conflito entre universalismo e particularismo.
A verdade sempre pretende ser universal, mas, na realidade, cada verdade
universal é sempre particular. Ademais, nenhuma religião
precisa se converter às outras. No entanto, ao mesmo tempo,
todas pretendem que sua mensagem, por mais particular e única,
seja também uma mensagem universal para toda a humanidade.
Além disso, não são as religiões que têm
direito, pois elas não existem. Somente as pessoas têm
direito. Então, o mundo moderno sacraliza a pessoa humana.
E é ela quem tem direito sagrado inalienável à
verdade. Portanto, as religiões não têm direitos
absolutos, e sim os indivíduos.
IHU On-Line – Como analisa daqui para frente
as religiões? As vê cada vez mais desterritorializadas
e globais?
Jose Casanova
– O catolicismo vivia na tradição das famílias;
batizavam-se as crianças e esperava-se que elas seguissem católicas
por toda a vida. Esse era o modelo. Hoje em dia, isso não serve
mais. A fé atualmente tem que ser voluntária e assumida
individualmente. Não é suficiente batizar uma criança.
Ela tem que, quando adulta, confirmar sua fé. É um processo
que necessita de evangelização contínua. A religião
deve ser algo individual e voluntário. Isso ocasiona uma competição
entre todas as crenças, e elas podem se tornar um mercado livre.
Ademais, estamos em um processo de globalização que
implica no reconhecimento da pluralidade da humanidade, certamente
nunca homogênea. Reconhecemos que o universalismo é plural
e que, inclusive, todas as ideias universalistas humanas têm
formas distintas historicamente.
IHU On-Line – Como avalia o diálogo
da teologia com outras ciências na academia?
Jose Casanova
– É uma questão de contexto. Na Alemanha, é
muito simples, pois a teologia sempre fez parte da universidade moderna.
Ele é um conceito mais amplo do que o conceito latino de ciência
e significa a “atual forma de saber”, ou seja, é
a produção de conhecimento literalmente. Na Espanha
ou na França, isso é impossível. Por definição,
a universidade é um espaço laico, e não há
lugar para as religiões. Uma universidade pública na
França ou na Espanha não pode possuir nenhuma faculdade
de teologia, nem sequer formar uma ciência das religiões,
porque na França se trata de uma ciência secularista,
que estuda as religiões de uma perspectiva laicista.
A obra de Charles Taylor –
A secular age – é uma análise de como se formou
a referida era, mas é também uma tentativa de chamar
a atenção à possibilidade de encontrar formas
de transcendência nesta idade secular e de questionar o fato
de que há uma razão secular natural que é superior
à razão religiosa. Portanto, esta última não
pode ser inserida na cena pública. Seria um fator arbitrário,
privado, que não pode ser submetido a um discurso público.
Há a possibilidade de que o conceito de religião seja
demasiado ambíguo e equivalente, e que se torne totalmente
ineficaz. Logo, seria melhor abandoná-lo, porque não
há nenhum conceito de religião que possa incorporar
tudo o que hoje, no mundo, denomina-se “religião”.
IHU On-Line – Já que citou a obra de
Charles Taylor – A Secular Age – gostaríamos que
o senhor fizesse uma apresentação geral da obra.
Jose Casanova
– Muito difícil. É uma obra de 900 páginas:
são três livros em um. Seria impossível eu oferecer
um resumo sucinto. Convidei Charles Taylor a ir a Georgetown para
ministrar três palestras e elaborar um resumo de sua obra para
o público geral, e ele foi incapaz de fazê-lo. Portanto,
eu também não poderei. Mas posso dizer que o livro é
possivelmente a reconstrução genealógica mais
completa que temos de como se transformaram as sociedades cristãs
ocidentais de uma situação em que todo mundo acreditava
em Deus – e a crença Nele era aceita como o normal, sendo
muito difícil, quase impossível, não acreditar
– a uma situação em que, ao inverso, o natural
é não acreditar, sendo a fé que exige um processo
reflexivo. Então, ele toma esse modelo que começa em
1500, quando o natural era acreditar, e a reflexão quase impossível
em não acreditar. Por um lado, Taylor quer explicar esse processo,
também comparando como é diferente o que ocorre na Europa
e na América do Norte. O que ele quer fazer é mostrar
àqueles que não creem, principalmente porque não
crer não é natural, a refletir por que não creem,
que a não crença não é algo simplesmente
natural, mas que se trata de um produto desse processo histórico.
Além disso, ser reflexivo não é tarefa apenas
dos crentes. Os não crentes também o devem ser. Então,
a questão é como, dentro do pluralismo enorme, pode
reaparecer a transcendência, principalmente porque ela é
muito importante para Charles Taylor.
IHU On-Line – Qual é o grande mérito
da obra?
Jose Casanova
– É precisamente forçar, na idade secular, todos
os grandes pensadores seculares a repensar a história, sendo
que esta era uma genealogia da religião como uma forma de liberação
da ignorância e do avanço da ciência. O que Charles
Taylor faz é unir todas as religiões, não como
alternativas que se excluem, mas sim como todas construíram
o presente. Talvez, a função mais importante seja levar
todos a refletirem. Ademais, percebe-se que esse era um tema que os
cientistas e os filósofos não abordavam. Já os
não religiosos não tratavam do referido assunto porque
se pensava que era um tema irrelevante, mas Charles Taylor apostou
nele: da crença e da transcendência, e o que esta última
significa na humanidade. Aliás, ele apostou em todos os discursos
sérios e filosóficos contemporâneos.
IHU On-Line – Quais são as suas críticas
perante o livro de Taylor?
Jose Casanova
– O livro está restringido ao que chamam Atlântico
Norte. É baseado numa experiência de países do
norte europeu, sobretudo a França, a Alemanha, assim como na
experiência da América do Norte. Os EUA são os
que Taylor conhece melhor, mas ele passa muito tempo trabalhando na
Índia e sabe que a situação global é muito
mais complexa. Então, faz-se necessário reconstruir
essa história dentro do marco norte-atlântico para poder
globalizar.
Não é tanto uma
crítica. A minha diferença com Taylor, e o que na crítica
havia lhe proposto, é que um mesmo modelo de experiência
fenomenológica nos força a repensar sua própria
teoria e, principalmente, a refletir por que essa secularização
na Europa teve uma experiência fenomenológica de não
crença, que é muito radicalmente diferente da norte-americana,
uma vez que, se pensamos no que Taylor afirma, de que na Europa, hoje
em dia, o normal é não crer e acreditar é muito
difícil, é verdade.
Para que uma pessoa seja crente
atualmente na Europa, ela tem que fazer um esforço de pensamento
reflexivo. O que reflete hoje em dia é o crente; o não
crente não precisa ter refletido. É a opção
natural. Mas nos EUA não é assim. Pelo contrário,
lá todo mundo crê ainda. E é a pessoa jovem não
crente que tem que ter uma coragem muito grande para se opor à
crença da sociedade. Então, para mim Taylor não
refletiu suficientemente, porque esse mesmo marco que ele construiu
leva a essas experiências fenomenológicas tão
diferentes na Europa e nos EUA. E, se esta experiência é
tão diferente nesses países, a perspectiva se faz global.
Logo, a pergunta que Taylor nos faz é: de que maneiras diferentes
se experimentam fenomenologicamente, em diferentes culturas, essa
expansão global do marco imanente secular?
IHU On-Line – Quais as principais críticas
de Taylor à nossa época?
Jose Casanova
– Uma das principais críticas de Taylor é que
o ser secular é um ser não reflexivo. E a humanidade
necessita sempre ser reflexiva. Então, a não crença
se converte na crença. Quando a não crença se
converte em crença reflexiva, ele convida a refletir sobre
a transcendência, constituindo uma maneira de convidar o homem
moderno à reflexão para que não considere natural
o que é naturalizado, mas sim se encontre sempre em processos
contingentes não naturalizados. Enfim, o mais importante de
Taylor não é reproduzir como chegamos a ser seculares,
mas questionar a forma como naturalizamos essa secularidade, como
se isso fosse algo natural.
IHU On-Line – Qual é o conceito de secularização
adotado por Taylor e no que esse conceito se diferencia do seu?
Jose Casanova
– Há diferenças. Ele fala de três: secular
one, secular two, secular three. Dois dos nossos conceitos são
muito parecidos: o conceito de secularização como diferenciação
e o conceito de secularização como perda de religião.
No que nos diferenciamos tomaria muito tempo; prefiro não responder,
porque é muito complicado. Taylor mesmo não está
claro nisso. Ele escreveu o livro quando estávamos juntos.
Certamente nossas posições, hoje, estão muito
mais próximas do que quando eu escrevi ou quando ele escreveu,
uma vez que estão continuamente mudando. Não há
fórmula válida que explique. É muito complexo.
IHU On-Line – Para Charles Taylor, o que significa
crer em Deus no mundo de hoje?
Jose Casanova
– O que significava acreditar em Deus está mais ou menos
definido por uma tradição cristã de uma ideia
de transcendência. Taylor naturalmente acentua a importância
do deísmo como uma face que passa do teísmo, da crença
em Deus particular, o Deus do Abraão, de Jacó, de Jesus
Cristo, ao Deus deísta universal natural. E isso levou do teísmo
para o deísmo e deste ao ateísmo. Houve uma transformação,
segundo a análise de Taylor.
A explicação
Teísmo é simplesmente
a crença em um deus particular, é unido à fé
cristã, a Deus, principalmente à Revelação.
O deísmo é a busca por um Deus natural, universal abstrato,
que não está relacionado com nenhuma revelação
particular. Então, é da passagem do teísmo ao
deísmo que, na análise de Taylor, faz-se possível
que chegue ao ateísmo, sendo esse um marco imanente secular
completo. Logo, para o referido autor a questão é como
se pode voltar a introduzir a ideia de transcendência que rompe
com o marco imanente, sem necessidade de se voltar para o teísmo
antigo e nem para o deísmo. Ademais, já não se
pode pensar em uma forma de transcendência imposta a toda a
sociedade como modelo, como marco.
A divinização
Ao final do livro de Charles
Taylor há uma expressão de fé enorme; uma ânsia
de divinização e encarnação: “Deus
encarna em mim e eu me divinizo”. Então, o que Taylor
quer oferecer é a possibilidade de cada indivíduo no
mundo moderno procurar e experimentar essa divinização.
O autor oferece a possibilidade de romper com os marcos analíticos
que faziam a transcendência impensável dentro do mundo
imanente da ciência, da democracia, da economia moderna, do
individualismo. Mostra, inclusive com sua própria experiência,
como grandes indivíduos, inclusive os santos, são modelos
de procura da transcendência.
Logo, ele almejava abrir lacunas,
romper barreiras dentro desse marco imanente pelo qual a transcendência
pode ser inserida novamente. Com isso os indivíduos podem estar
abertos a ela. E, na última parte de seu livro, há uma
afirmação de uma experiência própria de
transcendência – “se eu experimentei, outros indivíduos
do mundo podem também experimentar”.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a crença,
nos últimos séculos, visto que, outrora, ela era apenas
a um Deus, e agora passa a ser a vários outros deuses ou outras
coisas?
Jose Casanova
– A crença em Deus é algo muito complexo. Alá
se tornou um deus particular muçulmano. Então, a questão
é se outros indivíduos que não são muçulmanos
podem usar o nome de Alá. Em árabe, ele é simplesmente
deus. No cristianismo, a questão é se Deus é
trinitário ou unitário. Deus é Pai, Filho e Espírito
Santo. E o que significa isso? Como sabemos, para os pentecostais,
é um renascimento do Espírito Santo na crença
de Pentecostes. Há outras tradições que são
politeístas ou panteístas, que Deus está em tudo
e é tudo. A nossa crença ocidental acredita que Deus
é um ser criador e que há um hiato enorme entre Ele
e a criação.
Sagrado na natureza
Estamos, hoje, em um momento
de crise ecológica global em que é necessário
encontrar outra vez o sagrado na natureza. Devemos encontrar a transcendência,
a imanência e o sagrado no natural. Por isso, na atualidade
são as religiões mais primitivas, as afro-brasileiras
ou as ameríndias que sempre sacralizaram a natureza. E o homem
moderno se quiser se salvar e não destruir a si próprio
e ao meio ambiente, do qual necessita para viver, precisa ressacralizar,
de algum jeito, a natureza, e não impor essa divisão
moderna cartesiana entre sujeito e objeto, matéria e espírito.
Idade global
A questão não
é acreditar em Deus, mas no que é Deus e como acreditar
nele. A globalização nos força a reconhecer como
a humanidade desenvolveu, construiu e encontrou formas universais
de conceitualizar, de ver, de experienciar Deus, e como cada uma é
experiente, é positiva. Além disso, a ideia de que uma
delas é verdadeira e as outras são falsas é problemática.
Logo, a questão é sempre estar aberto a uma experiência
que vai além de qualquer experimento histórico contingente,
inclusive a que acredita que Deus pode encarnar-se não somente
em Jesus Cristo, mas em outras culturas. A mesma ideia da contingência
histórica nos força a reconhecer as possibilidades de
uma encarnação contínua. Deus em manifestações
distintas é o que seria precisamente o espírito trinitário.
A cristologia tem que aceitar um espírito que está aberto
a toda criação e a toda a experiência da humanidade.
Então, não é questão de acreditar em Deus
como acreditávamos, mas sim de uma abertura de significado
de Deus em uma idade global, em que se devem incorporar todas as experiências
religiosas de toda humanidade.