Em janeiro de 1867, Allan Kardec publicou um artigo de grande valor
histórico, denominado “Olhar Retrospectivo sobre
o Movimento Espírita”, cujo objetivo central era
fornecer um perfil dos adeptos da Doutrina segundo suas crenças
originais. Nele, podemos observar a existência de grande fatia
da sociedade da época para a qual as idéias espíritas
são completamente refratárias. De uma maneira geral,
esse conjunto é formado por dois extremos: de um lado os que
possuem uma crença; e de outro, os que a negam de maneira veemente.
No primeiro caso, encontram-se os fanáticos de todos os cultos;
os adeptos que estão plenamente satisfeitos com suas respectivas
crenças; e os crentes dotados do receio das idéias emancipadoras
que lhes tirariam o poder ou ainda os que professam uma crença
apenas para atender seus interesses pessoais. Com respeito ao grupo
dos incrédulos, esses correspondem às classes cujo próprio
nome já fornece o perfil de seus membros: os materialistas,
os livre-pensadores incrédulos, os sensualistas e os indiferentes.
A despeito das classes anteriores, a análise de Kardec revela
que há diversos segmentos da sociedade cujos elementos, em
maior ou menor grau, possuem simpatia pelas idéias espíritas.
A análise cuidadosa desse grupo mostra um cenário muito
curioso a respeito do ingresso, se assim podemos dizer, no espiritismo.
Duas classes se destacam nesse sentido por serem formadas por pessoas
ligadas diretamente a um culto religioso: a dos crentes progressistas
e a dos insatisfeitos. Os primeiros não se prendem necessariamente
a dogmas, possuindo o compromisso com a verdade, independente de onde
ele venha. Admitem, portanto, o progresso da religião, e vêem
no espiritismo a chave para explicar e desenvolver aquilo que outrora
eram seus artigos de fé. De outra forma, os crentes insatisfeitos
adotam as idéias espíritas por estas lhes iluminarem
a razão, fonte incessante de dúvidas perante os dogmas
religiosos aos quais se afeiçoaram inicialmente. Nessa mesma
linha aparecem os incrédulos por falta de coisa melhor, com
a diferença de que neste caso a dúvida e a indecisão
perante os dogmas atingiram um nível tal que resultou no rompimento
total com as bases que dão sustentação à
religião. Contudo, bastou-se a criação das condições
apropriadas, através do contato com idéias mais amplas,
para que a razão lhes apontassem novamente o caminho a ser
percorrido. Fenômeno semelhante é observado com os livres-pensadores,
movimento que se operava à época e que era representado
pelos indivíduos que, por vontade própria, não
se sujeitavam a qualquer prática religiosa. Compreendendo que
o espiritismo é uma questão de foro íntimo, uma
possibilidade a mais que se abre para a compreensão da Criação,
a imensa maioria de suas fileiras adotou os princípios espíritas,
justamente por reconhecerem neles algumas das leis gerais do Universo.
Por fim, encontram-se aqueles que Kardec didaticamente denominou de
“espíritas por intuição”, pessoas
que aceitaram o espiritismo de maneira absolutamente natural e imediata,
sem quaisquer posições antagônicas.
Ao fim do levantamento estatístico anterior, fruto da vivência
e observação das pessoas e acontecimentos em seu derredor,
Allan Kardec revela um dos itens de sua política de comunicação
social, isto é, os princípios amplos (política)
traçados com vistas para o estabelecimento de um diálogo
(comunicação) entre o Espiritismo e a sociedade de modo
geral (social): é justamente no segundo grupo, o de pessoas
afins com as idéias espíritas, que devem ser conduzidos
os esforços para a propagação do Espiritismo:
“Se se admitir, em média, a igualdade numérica
entre estas diferentes categorias, ver-se-á que a parte refratária,
por sua natureza, abrange mais ou menos metade da população.
Como ela possui a audácia e a força material (...) é
essencialmente agressiva; (...), É, pois, na outra metade que
o Espiritismo deve ser recrutado, e o campo a explorar é bastante
vasto; é aí que se deve concentrar seus esforços
e que verá seus limites se ampliarem. Entretanto (...) ele
aí encontra resistências obstinadas, mas não insuperáveis,
como na primeira [metade], da qual a maior parte é devida a
prevenções que se apagam à medida que o objetivo
e as tendências da doutrina forem mais bem compreendidas (...)”
“A Organização do
Espiritismo”, Revista Espírita, Janeiro de 1867.
A leitura atenta de obras como a
Revista Espírita revela outros pontos igualmente
importantes da política de comunicação social
adotada por Kardec, como sua postura perante as críticas e
ataques ao Espiritismo. Nessa matéria, o raciocínio
de Kardec é absolutamente simples e ao mesmo tempo sólido
como uma rocha: repousando sobre leis gerais, e jamais sobre opiniões
pessoais, o Espiritismo nada deve temer com respeito às pedras
que lhe são atiradas. Pelo contrário: esse comportamento
é um sinal inequívoco, evidente, de que ele marcha firme
em seus propósitos de esclarecer a criatura humana acerca da
realidade em que se encontra. De outra maneira, porque despertaria
tanto ódio e perseguições por parte daqueles
que, em maior ou menor grau, contribuem para manter a humanidade mergulhada
na ignorância? Poderíamos citar inúmeros textos
de Kardec sobre o assunto, cada qual abordando a questão por
um determinado ângulo, sem margem para dúvidas para os
que se interessarem por esse assunto. Contudo, centralizaremos a atenção
em um artigo publicado em março de 1863, em um período
que, segundo o próprio Allan Kardec, foi um dos que se registrou
um maior número de ataques por parte dos inimigos do Espiritismo.
“Não intervenhais, pois, nem oponhais violência
em parte alguma. (...) Não imiteis as seitas que se entredilaceram
em nome de um Deus de paz, que cada um invoca em auxílio de
seus furores. A verdade não se prova pelas perseguições,
mas pelo raciocínio; em todos os tempos as perseguições
foram as armas das causas más e dos que tomam o triunfo da
força bruta pela razão. (...) Jamais useis de represálias:
à violência oponde a doçura e uma inalterável
tranqüilidade; aos vossos inimigos retribui o mal com o bem.
Por aí dareis um desmentido às suas calúnias
e os forçareis a reconhecer que vossas crenças são
melhores do que eles dizem. A calúnia! Direis. Podemos ver
com indiferença nossa doutrina indignamente deturpada por mentiras?
(...) Sem dúvida, é útil desmascará-la;
mas é preciso fazê-los com calma (...). Deixai aos vossos
adversários a cólera e as injúrias; guardai para
vós o papel da força verdadeira: o da dignidade e da
moderação.” “A
Luta entre o Passado e o Futuro”, Revista Espírita, Março
de 1863.
Até o momento analisamos somente os componentes da política
de comunicação com respeito ao que poderíamos
denominar de público externo, isto é, às pessoas
que não se consideram partidários do Espiritismo. A
partir desse ponto, voltaremos nossas atenções ao público
interno, ao Movimento Espírita propriamente dito. É
nele que encontraremos os itens que mais requereram a atenção
de Kardec, onde seu bom-senso se fez mais necessário, como
poderemos observar.
Em um discurso pronunciado em 01/04/1862 por ocasião do quinto
aniversário da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas,
ou simplesmente Sociedade de Paris como era conhecida, e publicado
em junho de 1862 na Revista Espírita,
Allan Kardec esclarece os membros da Sociedade com respeito à
natureza das relações entre esse agrupamento e os demais
que estavam surgindo nas mais variadas localidades da França
e do Exterior.
Vejamos suas palavras:
“Aqui, senhores, coloca-se
naturalmente uma observação importante sobre a natureza
das relações que existem entre a Sociedade de Paris
e as reuniões, ou sociedades, que se fundam sob os seus auspícios,
e que erradamente se consideraria como sucursais. A Sociedade de Paris
não tem sobre elas outra autoridade senão a da experiência;
mas, como disse em outra ocasião, ela não se imiscui
em nada nos seus negócios; seu papel se limita a conselhos
oficiosos, quando lhe são solicitados. O laço que as
une é, pois, um laço puramente moral, fundado sobre
a simpatia e a semelhança das idéias; não há,
entre elas, nenhuma filiação, nenhuma solidariedade
material; uma só palavra de ordem é a que deve unir
todos os homens: caridade e amor ao próximo, palavra de ordem
pacífica e que não poderia levar desconfiança.”
“Discurso do Sr. Allan Kardec”,
Revista Espírita, Junho de 1862.
Para entendermos com maior profundidade
os pensamentos de Kardec, é necessário abrirmos um breve
parêntesis para situá-los historicamente. Cerca de cinco
anos antes Kardec publica sua primeira obra de caráter espírita,
“O Livro dos Espíritos”.
Esse livro em pouco tempo se tornou referência para inúmeros
grupos de estudo e pesquisas, justamente por conter de forma sistematizada,
pedagógica e ampla os ensinamentos que esses mesmos grupos
vinham também recebendo em suas próprias reuniões.
De posse das novas informações, esses núcleos
cada vez mais puderam observar e captar novas informações,
que por sua vez eram naturalmente compartilhados com Paris, realimentando
o processo. Portanto, a condição de destaque alcançada
por Paris se deu meramente pelo interesse dos demais núcleos
pelas idéias que de lá irradiavam. Contudo, tomando
o efeito pela causa, muitos começaram a pensar, e propor, justamente
uma idéia oposta: que a condição alcançada
pela Sociedade de Paris fosse utilizada como instrumento de normatização,
de imposição de determinados conceitos e procedimentos.
Essa corrente propunha, em última instância, uma estrutura
baseada na hierarquia, onde ficaria a cargo de uma determinada instituição,
no caso, a de Paris, a condução de toda a movimentação
das idéias. Daí a posição firme de Kardec
em dizer insistentemente que ele, na condição de presidente
da Sociedade de Paris, não via os demais núcleos espíritas
como filiais. O mais curioso é que essa idéia não
era acariciada tão somente por determinados membros da Sociedade,
mas também e principalmente pelos participantes dos centros
em geral, uma vez que, se existem mandatários, é porque
necessariamente existem aqueles que se afinizam com a situação
de subalternos.
Portanto, em contraposição ao modelo de relações
verticais, em que as instituições se encontram em diferentes
níveis de importância, Kardec optou pelo modelo horizontal,
isto é, aquele em que todas elas possuem a mesma importância.
Ao fazer essa opção, assumiu como política que
as idéias devam ser aceitas livremente. Importante ressaltar
que o processo inverso é verdadeiro: nenhum grupo estava obrigado
a aceitar qualquer coisa que o seja. Idéias contrárias
aos pontos que poderíamos considerar como fundamentais da doutrina
eram respeitadas com naturalidade por Kardec. E não poderia
ser diferente, uma vez que, segundo esse modelo, interferir nos trabalhos
e pensamentos de um grupo espírita seria o mesmo que interferir
nas questões íntimas de uma família, o que é
intuitivamente inaceitável. Eis o motivo pelo qual Allan Kardec
defendia que os verdadeiros laços deviam ser exclusivamente
fundamentados na caridade e amor ao próximo.
A comparação anterior com uma família é
perfeitamente válida, sendo muitas vezes utilizada por Kardec.
E com ela daremos início à discussão um dos aspectos
mais relevantes, segundo nossa interpretação, da política
de comunicação de Allan Kardec: a formação
e as relações dentro de um agrupamento espírita.
Se, segundo Kardec, as relações entre os centros de
estudo deveriam ser fundamentadas na similitude de idéias,
não haveria motivo para que os laços entre os membros
de um mesmo grupo fossem construídos em outras bases. Pode-se
dizer mesmo que as políticas anteriormente abordadas são
meras conseqüências das relações estabelecidas
na intimidade dos grupos espíritas. Um grupo que busca a caridade
e amor ao próximo jamais tentaria impor suas idéias
sobre outro grupo, da mesma forma que não revidaria com pedras
os ataques de irmãos que também estão buscando
seus próprios caminhos e, por fim, não apregoaria que
detém a verdade sobre todas as demais crenças. Sob essa
óptica, afirmamos que empregar esforços em demasia nos
outros itens, sem se preocupar com a base do que conhecemos por Movimento
Espírita, isto é, o centro espírita, tal qual
idealizado por Kardec, é tomar o efeito pela causa. Não
foi sem motivo que Kardec destinou grande parte de seus discursos
para esclarecer alguns pontos nebulosos em torno desse assunto. Nas
grandes viagens que empreendeu pela França, nos anos de 1860,
61 e 62, Kardec deparou-se com diversas questões levantadas
pelos grupos locais, para quais sempre tinha uma resposta pronta,
tal qual apresentamos a seguir:
“(...) Consentistes em me
pedir alguns conselhos, eu me farei um prazer vos dar aqueles que
a experiência poderá me sugerir; (...) Tínheis
a intenção de formar uma grande sociedade; (...) Está
reconhecido que as melhores comunicações
são obtidas nas reuniões pouco numerosas,
naquelas sobretudo onde reinem a harmonia e a comunhão de sentimentos:
ora, quanto mais o número é grande, mais esta
homogeneidade é difícil de se obter.
(...) Os pequenos grupos, ao contrário, serão sempre
mais homogêneos; nele se conhece melhor, se está sempre
em família, admite-se melhor quem se quer; e, como, em definitivo,
todos tendem ao mesmo objetivo, podem perfeitamente se entender, e
se entenderão tanto melhor quanto não houver esse choque
incessante, incompatível com o recolhimento e a concentração
de espírito. (...)” “Discurso
do Sr. Allan Kardec”, Revista Espírita, Outubro de 1860.
No trecho anterior, vemos a essência, já citada anteriormente,
do que representava um núcleo espírita para Allan Kardec:
um lugar onde se está em família, onde as discussões
e conflitos podem ser suportados pelos laços de amor e carinho
que permeiam por entre seus membros. Logicamente aqui não nos
referimos às construções materiais, nem que seus
membros devam ser exclusivamente membros de família consangüínea.
Estamos falando dos seres que se querem bem, que podem se reunirem
onde e como bem entenderem. É nesses núcleos espíritas,
portanto, que se encontram as bases para qualquer política
de comunicação destinadas às massas, opinião
essa expressada por Kardec na continuação imediata do
texto anterior:
“Do ponto de vista da propaganda, há ainda um fato
certo, é que não é nas grandes reuniões
que os novatos podem haurir elementos de convicção,
mas bem na intimidade; há, pois, duplo motivo para se preferir
os pequenos grupos, que podem se multiplicar ao infinito; ora, vinte
grupos de dez pessoas, por exemplo, sem contradita, obterão
mais e farão mais prosélitos do que uma única
assembléia de duzentos membros.” “Discurso
do Sr. Allan Kardec”, Revista Espírita, Outubro de 1860.
Uma última palavra com respeito
às idéias aqui discutidas: elas são fruto da
leitura atenta e meditação acerca de diversos textos
nos quais Kardec deixa transparecer o modo pelo qual ele compreendia
o Espiritismo. Ressaltamos que os tomamos como ponto de partida para
nossas idéias não pelo fato de efetivamente representarem
o pensamento de nosso querido amigo Allan Kardec, mas sim por atendem
à lógica, ao bom-senso e principalmente por suscitarem
felicidade naqueles que delas fazem uso. Esses itens, na verdade,
formam talvez o último aspecto da política de comunicação
de Allan Kardec que gostaríamos de apontar:
“Examinai primeiro aquele que
é o mais lógico, aquele que responde melhor às
vossas aspirações (...); o mais verdadeiro, evidentemente,
será aquele que explique o melhor, que dê a melhor razão
de tudo. (...) Examinai, em seguida, os resultados práticos
de cada sistema; a verdade deverá estar do lado daquele que
produz mais bem, que exerce a influência mais salutar, que faz
mais homens bons e virtuosos (...). O objetivo constante ao qual o
homem aspira é a felicidade; a verdade estará do lado
do sistema que proporcione a maior soma de satisfação
moral, em uma palavra, que o torna mais feliz.”
"Discurso
do Sr. Allan Kardec”, Revista Espírita, Outubro de 1860.