Nossa colega “Abertura” Jornal
de Cultura Espírita, da cidade de Santos, em sua edição
de novembro de 2005 trás uma ampla cobertura do 9º. SBPE
(Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita), realizado
entre os dias 13 e 16 de outubro na sede do ICKS (Instituto Cultural
Kardecista de Santos). Desde já felicitamos nossos irmãos
espíritas dessa cidade pela iniciativa e, se não pudemos
nos inteirar mais profundamente do evento, foi por conta de outras
atividades de divulgação em nosso Instituto. Dos diversos
assuntos e propostas apresentadas no 9º. SBPE, uma nos chamou
a atenção, principalmente pela postura democrática
assumida pelo seu autor. Jaci Régis, presidente do ICKS, em
seu discurso de abertura do evento propôs a criação
de uma nova doutrina, denominada “doutrina kardecista”.
A seguir, transcrevemos o trecho do referido discurso que contém
a proposta tal qual foi apresentada.
“Temos
que criar uma nova doutrina.
Chamaria esse movimento de doutrina kardecista, como forma de identificação
a fidelidade a Allan Kardec, e seu propósito de resgatar
a essência do pensamento de Allan Kardec A estrutura
do Espiritismo, desenhada por Kardec é, de
forma geral, muito boa, mas certos detalhes atenderam não
apenas aos tempos em que foram elaborados, como as idiossincrasias
dos elaboradores espirituais.
Tais afirmações, contudo, não podem ser feitas
graciosamente, mas com elevado espírito de reflexão,
de pesquisa e de consideração à evolução
que o próprio Kardec estabeleceu.
Que não seja nosso objetivo renovar o Espiritismo religioso
a outros Espiritismos, porque estão consolidados como expressão
da maioria a de consenso mais ou menos generalizado.
As resistências das igrejas ao avanço da ciência
apenas confunde o cenário, embora seja lícito afirmar
que não se pode deixar a ciência comandar todo o sistema,
seja porque ela é frágil e precária, seja porque
há de se estabelecer princípios éticos para
as investigações, não como barreira ao avanço
irremediável dessas investigações, mas para
fazê-las avançar com cuidado.
Temos que estar aptos e abertos para acompanhar as inovações
e estabelecer os limites éticos para nosso próprio
governo.
A proposta, contudo, não pode ser olhada como a burocratização
do pensamento. Precisamos desenvolver um ambiente liberal, aberto,
capaz de reciclar-se sem perder-se.”
Para iniciarmos nossa argumentação,
faremos um paralelo entre a Doutrina Espírita e uma ciência
de observação, como a química, a física,
ou mesmo a astronomia. A comparação é perfeitamente
aplicável, visto que Allan Kardec utilizou essa própria
definição para o Espiritismo:
“O Espiritismo é ao
mesmo tempo uma ciência de observação e uma
doutrina filosófica. Como ciência prática, ele
consiste nas relações que se podem estabelecer com
os Espíritos; como filosofia, ele compreende todas as conseqüências
morais que decorrem dessas relações.” O
que é o Espiritismo, Preâmbulo.
(1)
Há inúmeros casos na
história da Ciência em que teorias, isto é, o
conjunto de leis e regras que descrevem a observação
da natureza, foram completadas ou mesmo substituídas por outras.
No primeiro conjunto, citamos o caso da “Mecânica
Clássica”, formulada por Isaac Newton. Após
dois séculos de reinado absoluto, no início do século
XX diversos físicos, entre eles Albert Einstein, Neils Bohr,
dentro outros, elaboraram o que conhecemos por “Teoria
da Relatividade” e “Mecânica
Quântica” que ampliaram, cada qual a seu
modo, os horizontes traçados por Newton. Nem por isso, no entanto,
a mecânica newtoniana deixou de fazer parte de nossas vidas,
visto que repousa sobre fundamentos que, dentro de certos limites,
a tornam ainda capaz de fazer aquilo o que se espera de uma teoria:
fornecer explicações e previsões acerca dos fenômenos
dos quais diz respeito. Em resumo, houve a necessidade da criação
de novas teorias para suprir o que faltava em uma anterior. Há
casos mais drásticos como o observado no caso da teoria dos
quatro elementos, criada pelo filósofo grego Empédocles
e defendida por Aristóteles. Apoiada em observações
incompletas acerca da realidade, foi totalmente substituída
pela sua concorrente, a teoria atômica, defendida por outros
gregos como Demócrito, e séculos mais tarde retomada
pelos químicos modernos como John Dalton.
Retornando à idéia central dessa discussão, segundo
os exemplos anteriores, é razoável inferirmos, deduzirmos,
que, ao propor a criação de uma nova doutrina, o companheiro
Jaci Regis acredita que há algo falso e/ou incompleto com a
atual. A pergunta natural que poderíamos lhe endereçar
seria a seguinte: quais os princípios fundamentais da Doutrina
seriam passíveis de mudança ou de correção?
Aqui deparamo-nos com um ponto fundamental da questão. Se fosse
apontada a falsidade do conceito da pluralidade das existências
(vide “Diálogos Espíritas” nesse
número), por exemplo, certamente ouviríamos os argumentos
com atenção, procurando entender a lógica dos
raciocínios apresentados, a fim de tirar instruções
para nosso proveito. No entanto, não iríamos mais longe
do que isso. Os argumentos apresentados pelos Espíritos à
Kardec, com respeito à reencarnação, formam aquilo
que em Ciência denomina-se “Princípio”,
uma proposição, uma idéia elementar e fundamental
que serve de base a uma ordem de conhecimentos, no caso, o conhecimento
dito espírita. Nesse caso, declararíamos que cada um
é livre para defender seus próprios pontos de vista,
e nada mais teríamos a falar sobre o assunto.
No entanto, ficaríamos muito felizes e motivados se fossem
apontadas as questões na Doutrina Espírita que continuam
em aberto. Os exemplos, aliás, são inúmeros.
Para ilustrá-los, citaremos dois pontos contidos em “O
Livro dos Espíritos” que têm sido
motivo de estudos em nosso Instituto junto aos Espíritos: qual
a natureza exata do Fluido Universal (questão 24, “O
Livro dos Espíritos”)?(2)
De que forma o Espírito adquire o livre-arbítrio? (Questões
121 e 124, idem)”(3). Nesse caso,
porém, argumentaríamos que a idéia de uma nova
doutrina seria desnecessária, até mesmo infundada, visto
que o próprio Espiritismo registra em seu seio a possibilidade
de progresso onde se fizer necessário, segundo esclarece Allan
Kardec:
O Espiritismo não se
apartará da verdade e nada terá a temer das opiniões
contraditórias, enquanto sua teoria científica e sua
doutrina moral forem uma dedução dos fatos escrupulosa
e conscienciosamente observados, sem preconceitos nem sistemas preconcebidos.
É diante de uma observação mais completa, que
todas as teorias prematuras e arriscadas, surgidas na origem dos
fenômenos espíritas modernos, caíram e vieram
fundir-se na imponente unidade que hoje existe, e contra a qual
não se obstinam senão raras individualidades, que
diminuem dia a dia. As lacunas que a teoria atual pode apresentar
ainda encher-se-ão da mesma maneira. O Espiritismo está
longe de haver dito a última palavra, quanto às suas
conseqüências, mas é inquebrantável em
sua base, porque esta base está assentada nos fatos.”
Da Perpetuidade do Espiritismo, Revista
Espírita, fevereiro de 1865. (4)
Portanto, dizer que nada resta mais
a fazer na Doutrina Espírita é revelar absoluto desconhecimento
do seu real significado.
Lendo o artigo publicado no “Abertura”,
é evidente a posição de seu autor: a identificação
e fidelidade a Allan Kardec é o objetivo perseguido, o que
implica dizer que a primeira hipótese, a de que existe algo
falso, pode ser descartada. Neste caso, também poderíamos
encerrar a discussão com o argumento de que bastaria seguirmos
todos em frente com os estudos e que mais cedo ou mais tarde a Doutrina
ganharia em ensinamentos. A este respeito, porém, Jaci Regis
defende o seguinte pensamento:
“Alguns colegas pretendem
que a atualização do Espiritismo, seja feita pela
produção de novas teorias ou revisão de algumas
teorias para compatibilizá-las com os avanços da ciência
a dos costumes.
Entretanto, no meu entender, é necessário, primeiro,
começar pelo rompimento com os esquemas mentais criados e
ajustados à mente, através da repetição
a vivência nos ciclos reencarnatórios, que se sedimentam
no Espírito. Não é fácil se desvencilhar
deles, porque fizeram e fazem parte da visão do ser e do
mundo que se cristalizou através dos milênios em nossa
mente imperecível. Não raro estão estratificadas
na mente do ser e, se não superadas, podem manter- se infiltradas,
e nesse caso, os novos pensamentos mantém os vícios
fixados sob a capa de renovação. Romper com essas
estruturas é indispensável para qualquer renovação
positiva e real. É, para recorrer a uma figura evangélica,
colocar vinho novo em odres velhos.
Sem a renovação dos esquemas mentais, patinaremos
nas pretensões renovadoras, caindo na repetição
de concepções sedimentadas nos milênios de nossa
vivência de Espíritos imortais. A relação
não desfeita com credos e religiões permanecerá
criando quadros de auto conflito a projetando interpretações
subjacente.”
O texto anterior revela os reais motivos
para a criação de uma nova doutrina. A motivação
reside não propriamente na discordância do autor com
respeito aos princípios básicos do Espiritismo, mas
sim na maneira pela qual seus adeptos, ou pelo menos alguns deles,
o compreendem. Concordamos que de uma maneira geral o Espiritismo
ainda é pouco compreendido na sua essência. No entanto,
somos absolutamente contrários aos argumentos apresentados
como justificativas. Há na verdade uma inversão da causa
pelo efeito. É justamente o Espiritismo bem compreendido que
levará à mudança dos “esquemas mentais”,
termo genérico adotado pelo autor, mas cujo significado é
muito claro para nós, e não o contrário. A idéia
de que devemos libertar-nos de tais esquemas para daí então
seguir com a marcha proposta para o Espiritismo é uma utopia,
algo apenas imaginativo, uma vez que é nos ensinamentos descortinados
pelos Espíritos que encontraremos as novas vasilhas para vinho,
aproveitando-se da bela figura citada. Funde-se hoje uma doutrina
nos moldes propostos e veremos que daqui a outros tantos anos vozes
se levantarão contra as diferenças de opiniões.
Essa é a questão central: sempre houve e sempre haverá
diferenças entre os adeptos do Espiritismo, pelo menos enquanto
habitarmos um planeta tal qual o conhecemos. E fazemos questão
de ressaltar que isso não é uma idéia nossa.
Esse fato já era de conhecimento de Allan Kardec:
“Dizer-se alguém espírita,
mesmo espírita convicto, não indica, pois, de modo
algum, a medida da crença, pois essa palavra exprime muito,
com relação a uns, e muito pouco, relativamente a
outros. Uma assembléia para a qual se convocassem todos os
que se dizem espíritas apresentaria um amálgama de
opiniões divergentes, que não poderiam assimilar-se
reciprocamente, e nada de sério chegaria a realizar, sem
falar dos interessados a suscitarem no seu seio as discussões
a que ela abrisse ensejo.” - Obras Póstumas,
Constituição do Espiritismo, item VIII:
Programa das Crenças. (5)
Tal é a força da Doutrina
Espírita em promover mudanças que hoje somos capazes
de atender ao chamamento à discussão de idéias
promovido pelo companheiro Jaci Regis sem qualquer prejuízo
às relações fraternas que devem existir entre
os espíritas. Fique aqui registrado que acreditamos que todos
são livres para criarem quantas doutrinas e sistemas bem entenderem,
e jamais partirão de nós acusações de
separatistas ou desertores. Com esse artigo pretendemos apenas reforçar
nossa posição concordante com os amigos de Santos: alguns
adeptos do Espiritismo parecem ter estacionado nas convenções
religiosas, o que por si só não vemos nada de errado,
pois também esses são imbuídos do livre-arbítrio,
tanto como nós. A questão é: abandonaríamos
a Doutrina por esse motivo? Não nos parece razoável
tal atitude.
De nossa parte, desejamos marchar na divulgação da Doutrina,
procurando ao longo do caminho companheiros com os quais tenhamos
homogeneidade de idéias, condição primeira para
o bom andamento dos trabalhos. Quantos aos ensinos dos Espíritos
registrados por Kardec, temos por meta sua compreensão incessante,
o que naturalmente poderá acarretar o desenvolvimento dos mesmos,
quando assim o julgarmos necessário. Que outros concordem ou
discordem, todos são livres para emitirem opiniões.
Em resumo: compreendemos os motivos dos espíritas de Santos,
em especial o amigo Jaci Regis, porém discordamos das soluções
apresentadas, apenas sob a questão da forma, que fique bem
esclarecido, pois no fundo reconhecemos nesses companheiros adeptos
compromissados com a propagação da Doutrina Espírita.
Nota - O “Jornal Abertura”
é um periódico mensal do ICKS - Instituto Cultural Kardecista
de Santos.
Endereço: Av. Francisco Glicério, 261, Gonzaga, Santos-SP.
CEP 11065-401.
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(1) http://aeradoespirito.sites.uol.com.br/A_ERA_DO_ESPIRITO_-_Portal/Textos_Importantes
/O_que_e_o_Espiritismo/O_que_e_o_espiritismo.html
(2) O Livro dos Espíritos. q. 24 - O espírito é
sinônimo de inteligência? - A inteligência é
um atributo essencial do espírito. Todavia, como ambos se confundem
num princípio comum, para vós são a mesma coisa.
(3) O Livro dos Espíritos. q. 121 - Por que certos Espíritos
seguiram o caminho do bem e outros o do mal? - Não têm
eles o livre arbítrio? Deus não os criou maus, criou-os
simples e ignorantes, isto é, com aptidão tanto para
o bem quanto para o mal. Aqueles que são maus, assim se tornaram
por sua vontade.
O Livro dos Espíritos. q. 124 - Uma vez que há Espíritos
que, desde o princípio, seguem o caminho do bem absoluto e
outros o do mal absoluto, deve haver, sem dúvida, degraus entre
esses dois extremos? - Sim, certamente, e é a grande maioria
dos Espíritos.
(4) http://aeradoespirito.sites.uol.com.br/A_ERA_DO_ESPIRITO_-_Portal/Revista_Espirita/Textos/DA_PERPETUI_DO_ESPIR.htm
(5) http://aeradoespirito.sites.uol.com.br/A_ERA_DO_ESPIRITO_-_Portal/Revista_Espirita/Textos/CONSTIT_TRANS_DO_ESPIR.htm