Independente
da crença, todos vamos morrer. Esse é um evento tão
comum quanto o fato de nascer, crescer, ter filhos... Porém,
tal assunto causa espanto, e a morte passa a ser vista como uma desgraça;
mas morrer é um evento natural e, acima de tudo, necessário:
morrer é tão importante quanto nascer.
A morte nos causa tanto medo e angústia
que é mais cômodo não entrar em contato com ela.
O objetivo deste artigo é apresentar a ideia de morte como
necessidade para a vida, um elemento que não é antagônico.
É comum percebermos que os indivíduos procuram, ao máximo,
afastarem-se da morte, principalmente nas sociedades ocidentais, pois
o que mais é valorizado em tais sociedades é a superficialidade
e o narcisismo. É necessário, também, analisar
a morte enquanto direito de morrer, bem como a sua beleza e seu potencial
singularizador numa sociedade de massa.

A SOCIEDADE ATUAL ESTIMULA
A CULTURA DO NARCISISMO, EXISTE UMA ESPÉCIE DE CRENÇA,
QUASE QUE INABALÁVEL EM NOSSA SUPOSTA IMORTALIDADE
O MEDO DA MORTE
De acordo com a interpretação de Sigmund Freud (1856-1939),
na Mitologia grega, a morte aparece como elemento contrário
à integração. Essa força, chamada morte,
representada por Tanatos, alimentaria os desejos destrutivos. Mas,
quando operando ao lado da vida, geraria o equilíbrio. O medo
da morte está em contextos antigos, como na perspectiva mítica
bíblica, segundo Norbert Elias (1897-1990): “No paraíso,
Adão e Eva eram imortais. Deus os condenou a morrer porque
Adão, o homem, violou o mandamento do pai divino. O sentimento
de que a morte é uma punição (...) desempenhou
papel considerável no medo humano da morte por um longo tempo”.¹
A limitada duração de nossa existência nos força
a viver para encarar a morte como um fato, habituando-nos a ela. Afinal,
ela é um problema genuinamente humano, que leva os indivíduos
a se protegerem da aniquilação.
Contudo, o problema não é a morte em si, mas como nos
deparamos com ela, a maneira como a conhecemos: a consciência
sobre a morte foi diminuindo com o passar dos séculos. Isso
se deve, também, ao fato de que houve um aumento na expectativa
de vida dos indivíduos, o que mostra um aumento de segurança,
consequentemente um desvio da reflexão sobre a finitude humana.
“O espetáculo da morte não é mais corriqueiro.
Ficou mais fácil esquecer a morte no curso normal da vida”.²
Isso não significa que não ocorra tal evento, mas, que
o mesmo não recebe a atenção que lhe é
própria, especialmente numa sociedade narcísica, como
a contemporânea.
A MORTE NA CULTURA DO NARCISISMO
A sociedade atual estimula a cultura do narcisismo, de tal maneira
que existe uma espécie de crença, quase que inabalável,
em nossa suposta imortalidade. Daí surge a necessidade de permanecer,
em que morrer representa um desastre. As exigências do sucesso
provocam enormes desgastes, levando as pessoas a se sentirem obrigadas
a atingir objetivos idealizados e a ter que ultrapassar a todo custo
suas limitações, indo além do que podem. Consequentemente,
isso gera uma supervalorização da vida, de tal maneira
que, surge a ilusão da beleza eterna e da jovialidade, próprios
da sociedade atual.
Hipnos é a personificação
do sono enquanto seu irmão gêmeo Tanatos, o da morte.
Ambos habitavam o território de Hades, no mundo subterrâneo
Christopher Lasch (1932-1994) é considerado um grande crítico
do modelo de vida próprio das sociedades industriais. E é
na sua obra, A cultura do narcisismo, que demonstra sua crítica
à nossa sociedade. Nessa obra, ele argumenta que existe, de
certa maneira, um desinteresse pelo mundo exterior, exceto à
medida que ele serve como fonte de gratificação. Temos,
então, uma busca de autoidentidade, em uma espécie de
narcisismo. Para Lasch, o narcisista representa a dimensão
psicológica dessa dependência. Não obstante, em
suas ocasionais ilusões de onipotência, o narcisista
depende de outros para validar sua autoestima. Ele não consegue
viver sem uma plateia. Essa análise nos indica que vivemos
em tempos nos quais nossa individualidade depende da aprovação
dos outros, nosso mundo interior não tem tanto prestígio:
“Porque o temor de amadurecer e de ficar velho persegue nossa
sociedade; porque as relações pessoais se tornaram tão
instáveis e precárias; e porque a vida interior não
mais oferece qualquer refúgio para os perigos que nos envolvem”.³
Para o autor, o que caracteriza tal comportamento seria a superficialidade
emocional, uma pseudoautopercepção, assim como o horror
à velhice e à morte, restando uma preocupação
com a sobrevivência de si.
Na verdade, a preocupação com que o outro possa sobreviver
consiste apenas no “eu” que precisa ser reconhecido e
ter sua existência garantida. Ora, não que não
seja importante a preocupação consigo, mas o que se
analisa é a demasiada busca de autopreservação
em detrimento do que ocorre fora do próprio círculo.
Nesse sentido, o que temos é um projeto de transformação
da sociedade que visa ao particular, uma busca de razões políticas
que não se encontram em valores universais, mas interesses
que satisfaçam o prazer do indivíduo.

NA OBRA de Markus Zusak (1975) intitulada A menina que roubava
livros, romance narrado durante a Segunda Guerra Mundial, a morte
é vista como companheira. Em meio a tanto sofrimento, a morte
é personalizada como uma amiga para aliviar o peso da desgraça.
Ela se encarrega de carregar no colo as almas quentes, na frieza e
no desespero da guerra
A preocupação da sociedade atual está desvinculada
do passado e do futuro, foca apenas no aqui e no agora. Temos, então,
indivíduos com medo de se perderem, que se agarram na busca
frenética de uma identidade que os satisfaça e lhes
permita ser percebido, e morrer é não mais ser percebido,
daí o desespero. Tais seres humanos não se percebem
parte da História e sua insegurança não se restringe
apenas a questões econômicas, etc., mas também
ao medo de não conseguir ser plenamente: “... a ética
da autopreservação e da sobrevivência psíquica
está, então, radicada não meramente nas condições
objetivas da guerra econômica, nas taxas elevadas de crimes
e no caos social, mas na experiência subjetiva do vazio e do
isolamento”.4 Assim, a consciência de Narciso é
o espelho, tão externa a ele, tão transparente e líquida.
Os gregos conseguiram, no passado, mostrar a imagem que se destacaria
no homem dos tempos pós-modernos, que se perde na contemplação
do objeto, procurando ali o próprio sujeito, dessa forma, perde-se
na procura de si mesmo. O que chamamos aqui de Ética da sobrevivência.
Para Lach, “as pessoas deixam de sonhar com a superação
de dificuldades, mas simplesmente passam a sobreviver com elas”. 5
O mito grego de Narciso serviu como base de diversas
teorias no decorrer da História. O narcisismo é símbolo
da vaidade, do individualismo e da insensibilidade
A ideia do Narciso é uma maneira
de aprofundar o olhar no resultado das recentes mudanças no
âmbito da sociedade. Dessa maneira, o modo de vida atual é
um auxílio para fazer surgir novos “filhos narcisistas”;
outro fator impulsionante é a mídia, que, por meio do
bombardeamento de propagandas que incentivam a sobrevivência,
realiza tudo isso, potencializando os sonhos narcisistas, sendo eles
os sonhos de fama, sonhos de glória, voltando cada vez mais
o olhar para o alto, para as estrelas, para um mundo livre da maldição
da contingência, fugindo cada vez mais da realidade, finita
e mortal.
Negação
da morte
Somos uma sociedade que a todo o momento
nega a morte, evita pensar no fracasso de nossa existência.
Mas as obras literárias nos defrontam com nossa tentativa
de negação e do fracasso desse projeto existencial.
Temos como exemplo a obra ficcional Dr. Frankenstein, que
é uma grande metáfora para uma reflexão sobre
a condição do homem no mundo e a inconveniência
da consciência para a nossa existência. Cabe lembrar
que os homens existem e possuem a consciência de existir,
por isso percebem o real significado da palavra “solidão”.
Quando existimos, somos invadidos por sentimentos até então
desconhecidos, como medo, tristeza, solidão e desespero.
Somos lançados ao mundo após a nossa criação,
sem desculpas, sem muletas. Então, juramos nos vingar do
nosso criador e de todos ao seu redor. Quando uma pessoa toma consciência
de si mesma, surgem perguntas que não possuem respostas.
Não existe diferença se você vive em uma casa
cheia de pessoas ou em alguma geleira do Ártico, a sensação
é sempre a mesma. Mas, ao matarmos nosso criador, passamos
a reformular essas questões. Na obra de Mary Shelley, o monstro
encontra por acaso dois livros, Os sofrimentos do jovem werther
e o Paraíso perdido: “Mal posso descrever-lhe,
Frankenstein, o efeito de tais livros. Apresentavam-me uma infinidade
de novas imagens e sentimentos que, por vezes, me elevavam ao êxtase,
porém, com mais frequência, me lançavam na mais
profunda depressão” (passagens retiradas do romance
Dr. Frankenstein). No primeiro, ele encontrou uma luz sobre as suas
próprias reflexões. Os sofrimentos do jovem Werther
é um grande clássico da Literatura e pode ser
considerado como um dos precursores do Romantismo alemão.
O jovem Werther é dominado por uma paixão profunda,
tempestuosa, que o levará a um destino trágico. O
protagonista comete suicídio motivado por um amor platônico.
É importante ressaltar que o século XIX é marcado
pela supervalorização das paixões e dos sentimentos.
A vida é compreendida como sendo de dor e sofrimento eterno,
e somente a Arte, seja literária, arquitetônica, poética,
ou a própria Música, é capaz de causar uma
catarse, libertando o ser humano do sofrimento, mesmo que seja por
alguns momentos. Já no outro livro, a criatura vê na
figura de Satã um retrato pintado de si próprio. Na
metáfora bíblica, Satã é aquele que
quer possuir o conhecimento absoluto e, assim, luta contra Deus,
sendo expulso do paraíso. Mais tarde seduz o homem, levando-o
a comer da árvore da Ciência e do conhecimento, condenando-o
por ter adquirido consciência e capacidade de reflexão.
Sendo assim, a saga humana é uma odisseia de um peregrino
que tenta retornar ao paraíso perdido, ao eterno presente,
à inconsciência de sua finitude, e tenta em vão,
através da Ciência, encontrar um meio para esse feliz
retorno: “Insensível criador! Dotara-me de um cérebro
e um coração, de percepções e paixões,
e me deixara ao léu, alvo do escárnio e da perseguição
da humanidade”.
O PODER INDIVIDUALIZADOR DA MORTE NUMA SOCIEDADE
DE MASSA
Ao analisarmos a morte na Antiguidade greco-romana, percebemos sua
função e lugar, e lá o direito de morrer é
reconhecido. Tal direito é que permitia aos enfermos desesperançados
findar a própria vida. Havia uma relação próxima
entre a vida e a morte.
Em nossa sociedade, a velhice, inevitavelmente, é caracterizada
com atributos negativos
Ao refletirmos sobre a palavra “paganismo” encontramos
sua derivação na palavra pagus, que significava
o pedaço de terra onde se plantava. Na Antiguidade greco-romana,
cada pagus possuía algo de sagrado, um espírito
que estava governando o espaço de terra. Tal espírito
era concebido como sendo de um ancestral da família que ali
estava sepultado. Assim, o enterro dos indivíduos amados tornava
a terra sagrada, o húmus era devolvido para o local de onde
retornara. O corpo morto, sagrado, tornava à terra sagrada.
Nesse sentido, no paganismo, havia uma supervalorização
da morte.
Entretanto, com o surgimento do Cristianismo, a morte passa a ser
substituída pela vida. No paganismo havia o direito de morrer,
já com a religião cristã surge a sacralidade
da vida, pois a vida é concebida como um dom de Deus e, por
isso, deve ser preservada. Essa visão cristã ganha ênfase
com a Modernidade, de tal maneira que a vida deve ser privilegiada
em detrimento da morte. Com o advento da Modernidade, sob a guisa
do pensamento do filósofo René Descartes (1596-1650)
e de Francis Bacon (1561-1626), o ser humano vive um momento no qual
se percebe capaz de realizar uma dominação de tudo aquilo
que está ao seu redor, controlando os fenômenos da natureza.
O mundo é visto “nu”, sem Deus, e o ser humano,
nessa perspectiva, não vê mais o universo circundante
como dominado por forças impessoais.
“Significa
principalmente, portanto, que não há forças misteriosas
incalculáveis, mas que podemos, em princípio, dominar
todas as coisas pelo cálculo. Isto significa que o mundo foi
desencantado. Já não precisamos recorrer aos meios mágicos
para dominar ou implorar aos espíritos, como fazia o selvagem,
para quem esses poderes misteriosos existiam. Os meios técnicos
e os cálculos realizam o serviço.”6
Assim, o véu de mistério que cobria a realidade é
retirado. Pois, segundo Max Weber (1864-1920), o saber científico
avança sem confiar em qualquer valor misterioso, transcendente,
uma vez que tudo pode ser dominado pelo cálculo e, assim, a
Ciência liberta a humanidade de qualquer elemento religioso.
Na Antiguidade Clássica, a vida
e a morte estavam intimamente ligadas, essa relação
só foi modificada a partir da Idade Moderna
Weber chega a dizer que o desencantamento do mundo é uma característica
de nossos tempos, no qual as ideias religiosas se retiraram da vida
pública. E esse é um ponto importante, sendo que Weber
não diz que o intelectualismo elimina a religião, embora
possa corroer a imagem que ela fornece à realidade. Se, por
um lado, o ponto de partida da história da humanidade é
um mundo povoado de sagrado, de mistérios que são respeitados,
mas não explicados, o ponto de chegada é uma humanidade
moderna que afirma ter a capacidade de explicar com a Ciência,
acima de tudo com a razão, a compreensão do mundo que
está a sua volta. A realidade é encaixada no intelecto
humano (ou ao menos é isso que se tenta), e todo o resto é
deixado de lado. O ser humano se desenvolveu, progrediu, mas desencantou
o mundo.
A partir da Modernidade, percebe-se o início do abandono da
morte, que ganha ênfase na Contemporaneidade. Agora, o ser humano
cada vez mais se torna incapaz de olhar a morte. Para ampliar esse
argumento, pensemos no conceito de divertissement do filósofo
Blaise Pascal (1623-1662). Esse conceito não significa apenas
distração, ou divertimento. Mas, dado que o ser humano
não tem condições de enfrentar a sua mortalidade,
escapando de encarar a morte, lança-se no entretenimento de
maneira a não pensar na sua finitude, porque o ser humano é
constituído de uma miséria ontológica que o insere
em uma consciência trágica sobre a própria vida.
Para boa parte dos seres humanos, é extremamente difícil
encarar essa realidade miserável, então preferem desviar
toda a sua atenção desses questionamentos e, para fazê-lo,
procuram, então, o divertimento. Segundo François Muriac
(1885-1970), comentador de Pascal, “o homem, por mais cheio
de tristeza que se encontre, se, por ventura, entrar num divertimento,
será feliz durante esse tempo; e o homem mais feliz, se não
estiver se divertindo e se entretendo com alguma paixão ou
com alguma distração que impeça de se espalhar
o tédio, ficará logo triste e infeliz. Sem divertimento
não há alegria, com divertimento não há
tristeza. E o que forma a felicidade das pessoas de grande condição
é que têm uma porção de gente para diverti-las,
e o poder de se manterem nesse estado”.
7
Segundo o historiador francês Philippe Áries (1914-1984),
o ser humano ocidental afastou e expulsou a morte de seu cotidiano.
A morte passa a ser reprimida e proibida dos nossos dias, pois ela
é percebida como algo extraordinário; sob tal perspectiva,
a morte não é normal e deve ser evitada. Ao analisar
o contexto contemporâneo, não é difícil
constatar que a morte está presente em nosso dia a dia, nos
noticiários, nos filmes, etc. E aí se coloca a questão:
por que algo tão natural nos causa tanto espanto? De um lado,
o fenômeno da morte é banalizado, escondido, mas, por
outro lado, é um desconcertante mistério, não
é comparável a outro fato, é único e desmedido.
A partir do século XX, a morte
deixa de ser “familiar”, “doméstica”
e passa a ser um “tabu”,
algo de que o homem Pós-moderno tenta fugir a todo custo
Entretanto, há aqueles que preferem se esconder na multidão
como se fosse possível fugir da finitude. Essa fuga ocorre
em meio a uma espécie de degradação cultural
gerada pelo nivelamento simplista das qualidades humanas. Pesa sobre
nós a “ditadura da massificação”,
na qual a existência individual se dilui na coletividade. Obviamente
que a interpretação de igualdade a todos não
teve sua eficácia para a vida em sociedade, uma vez que não
há como tratar os indivíduos de forma igualitária
em um mundo constituído por diferenças, seja no âmbito
psicológico, social, filosófico, etc. Um dos principais
filósofos a discutir esse problema é Ortega y Gasset
(1883-1955), criador do conceito de homem-massa. Para ele, “de
repente a multidão tornou-se visível, instalou- se nos
lugares preferenciais da sociedade. Antes, se existia, passava despercebida.
Ocupava o fundo do cenário social; agora, antecipou-se às
baterias, tornou-se o personagem principal. Já não há
protagonistas, só coro”. 8
Entretanto, a definição do homem-massa não está
ligada somente a parâmetros sociais, econômicos de maneira
específica, mas pela falta de critérios seletivos, pela
falta de espírito avaliativo e isento de sensibilidade cultural,
medindo sua existência por parâmetros quantitativos da
ganância, aliado à redução do gosto cultural.
Assim, tal indivíduo se contenta com pouco, com a vida simplista,
imediatista e sem grandes ideais. Para esse pensador, “massa
é todo aquele que não atribui a si mesmo um valor –
bom ou mal – por razões especiais, mas, que se sente
como todo “mundo” e, certamente, não se angustia
com isso, sente-se bem por ser idêntico aos demais”.9

PENSAR SOBRE A MORTE CAUSA CONFRONTOS
COM SUA REALIDADE MAIS PROFUNDA, POIS A MORTE TEM POTENCIAL SINGULARIZADOR,
ESPECIALMENTE NUMA SOCIEDADE DE MASSA
A recusa de discussões sobre a morte caminha nessa direção,
pois, ao aproximar-se da morte cada um necessitará se confrontar
consigo, com sua realidade mais profunda, porque a morte tem potencial
singularizador, especialmente numa sociedade de massa, no qual, muitas
vezes, parece que o coletivo se sobrepõe aos aspectos individuais.
Assim, a experiência da morte pode levar o ser humano a se perceber
como único, possibilidade que muitos temem, preferindo a moral
do rebanho. Para o filósofo Martin Heidegger (1889-1976), é
por meio da angústia diante da morte que o indivíduo
se transforma de maneira radical, fazendo surgir sua autenticidade.
Enquanto o indivíduo se angustia, ele se destaca, singulariza-se,
pois só ele pode ser o que ele é diante da morte. Na
morte, sua existência se torna autêntica, e essa aceitação
da aproximação da nadificação implica
olhar de frente o não-ser.
A autenticidade surge a partir da consciência da finitude humana,
observando a morte como possibilidade da impossibilidade na existência.
Dessa maneira, pode-se projetar e edificar uma existência a
partir da superação do não-ser.
A Ciência, na Idade Moderna, surge como
eminentemente ativa
em contraposição à Ciência antiga que era
contemplativa
O medo é direcionado aos entes intramundanos. Já a angústia
não se refere a qualquer realidade imanente. Essa angustia
faz do Dasein um ser de possibilidade, pois é levado a se projetar,
a se construir, abrindo-se para a perspectiva futura, implicando na
noção de finitude. O futuro gera a consciência
da possibilidade da morte, que, por sua vez, leva o indivíduo
a realmente existir. Entretanto, numa sociedade massificada, a fuga
da morte é estrada certa como busca de realização
pessoal, e a morte passa ser sempre a morte do outro: “A interpretação
pública da presença diz: morre-se porque com isso qualquer
outro e o próprio impessoal podem dizer com convicção,
mas eu não; pois esse impessoal é o ninguém”.10
A morte faz parte da vida, carregamos ela conosco. “O fruto
imaturo, por exemplo, encaminha-se para o seu amadurecimento. No amadurecimento,
aquilo que ele ainda não é, de modo algum, se oferece
como algo que se lhe ajunta, no sentido de algo que ainda não
é simplesmente dado. O próprio fruto amadurece. O amadurecimento
e o amadurecer caracterizam-lhe o ser enquanto fruto. Não fosse
o fruto um ente que chegasse por si mesmo ao próprio amadurecimento,
nada que se lhe acrescentasse de fora poderia eliminar-lhe a imaturidade.
O ainda-não da imaturidade não significa uma coisa exterior
à qual, indiferentemente ao fruto, poderia ser simplesmente
dada nele ou com ele. O ainda-não indica o próprio fruto
em seu modo específico de ser.”11
Heidegger, deixa mais claro, ao dizer que “o ainda-não
já está incluído em seu próprio ser, não
como uma determinação arbritária, mas como um
constitutivo. Analogamente, a presença enquanto ela é,
já é seu ainda-não”.12
Para Heidegger a morte plenifica a existência. Tal existência,
que é propriedade humana, implica uma abertura para a morte,
caso contrário, teremos uma existência inautêntica
(uneigentlich), possuindo uma vida superficial, encobrindo
o ser. Esse esquecimento do ser ocorre de maneira mais clara no século
XX; segundo Heidegger, o Dasein é um ser imerso na
sua existência, um ser no mundo (in-der-welt-sein)
e tal estrutura ontológica implica a inseparabilidade do ser
humano e do mundo. Por isso o ser humano não se encontra simplesmente
no mundo, coisificado, como um ente dado. Antes, mora nele, habita
e existe no mundo.
NO MOMENTO
que o ser humano passa a ser senhor da natureza, caracterizado pelo
desencantamento do mundo, como diria Max Weber, e acima de tudo
por uma humanidade racionalizada, busca agir sem qualquer resíduo
que venha de concepções misteriosas e incalculáveis
Uma interpretação errada
da morte gera medo porque essa ligação seria desfeita
de maneira paralisante, especialmente numa sociedade em que o convívio
é pautado pelo afastamento do ser, e a noção
de vivência é caracterizada pela ditadura da impessoalidade.
A massificação do convívio dilui o eu, e a morte
é o resgate que ninguém quer perceber, pois a morte
é uma possibilidade de descoberta. Descoberta que petrifica
o ser humano, pois o medo humano não é endereçado
a algo objetivo; o que se teme, na verdade, é o próprio
ser humano. Coisificamo-nos na vida e escondemo-nos nas coisas, esperando
delas uma espécie de redenção, esperando que
os entes façam por nós algo que somente nós podemos
fazer. Massificamos nossos sonhos na esperança de que ao adquirir
objetos nos eternizemos, garantindo um minuto a mais de vida. Enfim,
nós nos diluímos no todo para que a morte não
nos encontre. Mas, oras, nós fomos feitos para a morte!
MORRER, UM TABU
O mundo ocidental levou a compreensão
da morte a um tabu, que deve ser afastado das crianças, levado
para longe das conversas, bem como tudo aquilo que seja traço
característico dos passos que antecedem a morte, como a enfermidade,
a velhice. Então, o medo diante da própria finitude
se transforma em pânico. Por isso os rituais de morte fazem
parte das sociedades, através deles se consegue “digerir”
o impacto realizado pela não existência de alguém.
Nós nos tornamos mais humanos quando percebemos que vamos morrer.
Essa consciência finita da morte repercute na vida. Vivemos
para morrer. Porque a morte vem nos perguntar sobre o sentido da nossa
existência e nos retirar da inércia do silêncio
de não pensarmos nossa própria condição.
A morte não deveria ser vista como uma surpresa, mas como uma
possibilidade sempre presente em nosso cotidiano, uma vez que ela
ocorre dentro do mundo, ela vem ao nosso encontro e nós vamos
ao encontro dela. Todavia, a impessoalidade não irá
retirar essa condição, não falar da morte não
faz você mais imortal, não o deixa menos atingido pela
morte.
Uma reflexão sobre a morte realiza uma pausa na nossa trajetória.
Com isso, vemos a morte como uma necessidade existencial, ela nos
capacita para irmos além do que somos. Quem sabe teríamos
na morte mais humanidade, e não tanto uma espécie de
castigo divino, ela seria amiga, próxima, necessária.
Assim, humanizaríamos a morte, ela seria nossa, nossa necessidade.
A morte é uma proteção que desprotege. Tão
necessária, tão humana, tão nossa.

A sociedade contemporânea está vivenciando
a “cultura de massificação”,
na qual todo o destaque pessoal parece diluído
MATÊUS RAMOS CARDOSO, ESPECIALISTA
EM ÉTICA PELA FACULDADE DO NOROESTE DE MINAS, PÓS-GRADUANDO
EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PELA UNIVERSIDADE CÂNDIDO
MENDES. PROFESSOR DE FILOSOFIA NA ESCOLA TÉCNICA DO VALE
DO ITAJAÍ (SC).
WELLINGTON LIMA AMORIM É DOUTOR EM CIÊNCIAS HUMANAS,
PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO.
1 ELIAS, 2001, p. 17
2 ELIAS, 2001, p. 11
3 LASCH, 1983, p. 37
4 LASCH, 1983, p. 77
5 LASCH, 1983, p. 75
6 WEBER, 1982, p. 165
7 MURIAC, 1975, p. 72
8 ORTEGA Y GASSET, 2002, p. 43
9 ORTEGA Y GASSET, 2002, p. 45
10 HEIDEGGER, 2005, p. 35
11 HEIDEGGER, 2005, p. 24
12 HEIDEGGER, 2005, p. 25
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