Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a importância
de História da loucura no conjunto da obra de Foucault?
Cesar Candiotto -
Essa pergunta poderia ser respondida de diversas formas. Uma delas,
talvez a mais fecunda, é a constatação de que
História da loucura constitui o início de uma estratégia
metodológica – nomeada mais tarde como arqueologia –
que rompe com a concepção de verdade como sua adequação
a um referente essencial ou natural. A loucura não é
um referente já dado na natureza ou no pensamento suscetível
de uma verdade universal. Entre as ciências do homem, região
a ser privilegiada por Foucault em sua investigação,
não existem verdades universalmente válidas. Os objetos
dos quais tratam estas “ciências” são singulares
e raros, apresentados como acontecimentos irrepetíveis na ordem
do saber. Embora ciências como a psiquiatria, a psicologia,
a sociologia, procurem naturalizar seus objetos para apreendê-los
mediante uma racionalidade específica, trata-se sempre de uma
ilusão tranquilizadora. A arqueologia procura estudar qual
a “experiência fundamental” (História da
loucura), “episteme” (As palavras e as coisas) ou “discurso”
(A ordem do discurso) de uma época que permite legitimar práticas
discursivas e não discursivas como verdadeiras e outras, como
falsas. Busca examinar a condição histórica de
possibilidade a partir da qual algo é constituído como
um objeto apreensível ao saber e coerente num sistema de relações.
Ao afirmar que a emergência
de um objeto somente é apreensível ao saber a partir
do quadro formal ou da condição histórica de
possibilidade na qual ele está situado, Foucault mostra que
a história da loucura era irredutível à história
de um conceito. Jamais se trataria de fazer a história das
diferentes interpretações a respeito de um mesmo conceito.
Cada época percebe a loucura como um objeto diferente para
o saber: os renascentistas a apreendem como possessão demoníaca
mediante o quadro de uma experiência cósmica; os clássicos
a entendem como desrazão a partir do quadro de uma experiência
ontológica; os modernos a objetivam como doença mental
a partir do quadro de uma experiência antropológica.
O fato de que cada experiência corresponda a um objeto novo,
implica que também o quadro formal ou a condição
histórica de possibilidade muda de uma época para outra.
Sistemas de racionalidade
Essa estratégia metodológica
posta em prática em História da loucura pode ser pensada
como o início de uma “trajetória” que exercerá
enorme influência em livros como Nascimento da clínica,
As palavras e as coisas, Vigiar e punir, História da sexualidade.
Todos esses livros são “histórias”, muito
distantes da mera história das ideias pensada nos limites do
progresso ininterrupto da razão. Trata-se de demarcar o nascimento,
desenvolvimento e desaparecimento de objetos relativamente a racionalidades
diferentes. Com isso Foucault desautoriza pensar numa história
progressiva da razão e, consequentemente, que estamos sempre
a discorrer a respeito da mesma razão. Cada época tem
seus sistemas de racionalidade que apreendem objetos singulares como
coerentes ou incoerentes. Em consequência, não podemos
avaliar o passado a partir do presente, julgar a prática clássica
de aprisionamento do louco pelo seu internamento asilar moderno.
Em razão disso é que
Foucault irá deduzir que a psiquiatria não é
a única a discorrer sobre a verdade da loucura. Igualmente
a psicologia positivista não pode conhecer a doença
mental, prescindindo de sua história. Quanto à arqueologia,
jamais tenta traçar o caminho dos erros do passado rumo às
verdades do presente, da noite das trevas à claridade do saber
médico; antes, ela procura escavar os diferentes subsolos para
saber como cada época percebe e enuncia a loucura, de modo
a permanecer o mais próximo possível daquilo que um
acontecimento tem de raro, de estranho e de irredutível, sem
jamais desqualificá-lo por um saber ulterior considerado “mais”
verdadeiro e objetivo.
IHU On-Line - Como essa obra continua
a impactar no pensamento filosófico, 50 anos após seu
lançamento?
Cesar Candiotto –
A história da loucura continua a impactar o pensamento filosófico
porque este geralmente estuda objetos universais mediante sua demonstração
teórica ou pelas suas diferentes interpretações.
Como sugerimos na questão anterior, Foucault jamais parte de
um objeto já dado, seja na ordem da natureza, seja no plano
do pensamento. Antes, ele está preocupado com seu nascimento
como algo apreensível por um saber ou por uma ciência.
Os objetos investigados em sua arqueologia - e mais tarde, na arqueogenealogia
- são aqueles pertencentes ao terreno frágil e movediço
das chamadas ciências humanas, mas também aqueles que
fazem interface com a filosofia.
Provavelmente o conceito mais problematizado
na investigação de Foucault tenha sido o de sujeito.
O sujeito da filosofia – o “eu” do Ego cogito -
é aquele que permanece inalterado, transparente a si mesmo,
constituinte de sentido, em que pese as transformações
históricas nas quais ele está situado. Esse sujeito
é o sujeito racional; aquele que para se autocompreender como
Mesmo exclui o Outro, ou tenta reduzi-lo o máximo possível;
ou ainda o sujeito de liberdade, que para se afirmar como legislador
universal exclui aqueles que perderam a capacidade de deliberar e
decidir. Ora, em História da loucura Foucault vai justamente
mostrar que não é o sujeito racional ou o sujeito de
liberdade que define e dá coerência à contingência
da história. Quando nos referimos ao sujeito, estamos sempre
diante de um conceito constituído na trama de discursos e práticas
historicamente delimitados. Significa que não é o sujeito
racional e livre aquele capaz de definir e interpretar a loucura.
Somente na experiência, formada por discursos e práticas
de cada época, é que se pode mostrar a constituição
do sujeito louco.
Loucura como objeto de saber
A grande novidade da arqueologia da
loucura é se afastar da ideia de que ela é um objeto
trans-histórico do qual se trataria somente de interpretá-lo.
O arqueólogo não parte da verdade dos objetos já
pensados e feitos, mas do ponto em que algo se torna problemático
e nasce como objeto para o pensamento. A loucura é problematizada
num determinado momento a partir da partilha entre o verdadeiro e
o falso, sendo transformada em objeto para o pensamento. Daí
é que se entende a afirmação de Foucault de que
a loucura somente existe em uma sociedade.
Mais tarde Foucault volta ao tema:
“Fizeram-me dizer que a loucura não existia, enquanto
que o problema era absolutamente inverso: tratava-se de saber como
a loucura, sob as diferentes definições que pudemos
lhe dar num momento dado, pôde ser integrada num campo institucional
que a constituía como doença mental, adquirindo um determinado
lugar ao lado de outras doenças” (FOUCAULT, M. “L’éthique
du souci de soi comme pratique de la liberté”. In: Dits
et écrits. Paris: Gallimard, 1994, v. IV, p. 726).
Foucault nega a naturalidade da loucura
como objeto do saber, não sua constituição histórica
e cultural na condição de algo a ser pensado e problematizado.
Tal precisão difere da perspectiva fenomenológica a
respeito da loucura. “Provavelmente, podemos dizer que a loucura
‘não existe’, mas isso não quer dizer que
ela seja nada. Tratava-se, em suma, de fazer o inverso daquilo que
a fenomenologia nos havia ensinado a dizer e a pensar; a fenomenologia
que, grosso modo, dizia: a loucura existe, o que não significa
que seja algo” (FOUCAULT, M. Sécurité, territoire,
population. Paris: Gallimard, p. 122, 2004).
IHU On-Line - Em que sentido a História da
loucura questiona o conceito de doença? É possível
falar num outro ponto de vista para essa concepção a
partir do corpus teórico dessa obra?
Cesar Candiotto - Foucault questiona
a loucura como doença mental quando mostra que esta não
é a natureza da loucura, mas somente uma de suas objetivações
históricas. Objetivação essa possível
no espaço da modernidade, quando a experiência antropológica
é a condição histórica de possibilidade
a partir da qual a loucura passa a ser apreendida.
Essa nova objetivação tem início
quando Pinel identifica loucura e alienação. Chamou-se
alienação a queda do louco num estado no qual ele deixa
de ser completamente homem, ao possuir menos razão em relação
aos padrões de normalidade vigentes. A loucura passa a ser
associada a um fato humano encarnado em tipos antropológicos
específicos estigmatizados por um “certo desvio em relação
à norma social” (FOUCAULT, M. Histoire de la folie. Paris:
Gallimard, 1972, p. 117). A ideia de que a loucura corresponde à
alienação de uma verdade de ordem antropológica
marca a transição de sua percepção ontológica
clássica como desrazão para sua percepção
moderna como doença mental.
Foucault nota que a causa da alienação
está relacionada a uma percepção do mundo civilizatório
ao qual é atribuído um caráter doentio, em consequência
de sua perda de contato com a natureza. O mundo é a realidade
móvel, particular e negativa dominada por forças penetrantes,
das quais procede a alienação. No caso da loucura, são
três as forças penetrantes que lhe dão origem:
a sociedade, a religião e a civilização. A não
repressão dos desejos pela sociedade, a não regulação
do espaço e da imaginação pela religião
e a não imposição de limites à sensibilidade
e ao pensamento pela civilização são consideradas
as principais causas da loucura. Ao contrário de Rousseau ,
que pensava ser a alienação somente de caráter
social, Pinel ampliará esse horizonte, ao afirmar que a sociedade
produz também alienação intelectual, psíquica
e moral.
Loucura e liberdade
No final do século XVIII “a
loucura é a natureza perdida, é o sensível desnorteado,
o extravio do desejo, o tempo despojado de suas medidas; é
a imediatez perdida no infinito das mediações. Diante
disso, a natureza, pelo contrário, é a loucura abolida,
o feliz retorno da existência à sua mais próxima
verdade” (FOUCAULT, M. Histoire de la folie, op. cit., p. 393)
O homem perde sua verdade pela alteração de suas faculdades
quando deixa de seguir sua natureza e torna-se influenciável
por aquelas mediações que continuamente o alienam de
si mesmo, em direção de seu exterior. Por essa razão
é que ele deverá ser isolado de tais mediações
para enfrentar a si próprio num espaço de reclusão
total a fim de que aí reencontre sua natureza perdida. Retirar
o louco do mundo e aprisioná-lo no asilo equivale a deslocá-lo
do espaço da desordem para o espaço da ordem.
Na época moderna, caracterizada
pela experiência antropológica da loucura (fim do século
XVIII e século XIX), ela deixa de ter como padrão normativo
fundamental a razão e a ordem. O novo padrão normativo
em relação ao qual ela é desqualificada e sequestrada
é a liberdade, entendida como atributo antropológico
fundamental do cidadão soberano no contexto do novo estado
burguês. A loucura será entendida doravante pela perda
parcial ou total da liberdade psicológica, faculdade humana
que capacita ao indivíduo pensar, deliberar, decidir e agir
com responsabilidade moral e imputabilidade jurídica.
Se a liberdade está inscrita na natureza humana e essa última
é racional, o louco não perde sua liberdade ao permanecer
recluso no asilo, senão que já a perdeu antes de nele
ingressar. Se antigamente o confinamento e, portanto, a privação
da liberdade, era somente da ordem das consequências jurídicas,
doravante será da ordem de uma psicologia da loucura. Interna-se
não para privar o indivíduo da liberdade, mas para sancionar
sua abolição já detectável em nível
psicológico. A perda da liberdade deixa de ser vista como consequência
de uma prática política de exclusão e higiene
social, para se tornar a essência da loucura. Depreende-se que
o mundo fechado do asilo, local da privação de liberdade,
é o lugar mais adequado para aquele que já a perdeu.
Determinismo da loucura
O que Foucault questiona é a psiquiatria positivista
do início do século XIX ter transformado a privação
da liberdade do louco, por ocasião da reforma social do internamento,
em natureza da loucura, em doença, objeto de tratamento psiquiátrico.
A coerção do louco paradoxalmente passou a se constituir
em um determinismo da loucura: “aquilo que era reforma social
do internamento torna-se fidelidade às verdades profundas da
loucura; e a maneira pela qual se aliena o louco deixa-se esquecer
para reaparecer como natureza da alienação” (FOUCAULT,
M. Histoire de la folie, op. cit., p. 458). Se a loucura pôde
ser concebida como alienação, é porque ela já
estava internada na e pela estrutura do internamento.
Foucault vê na alienação da psiquiatria
positiva um novo mito: o internamento clássico criou um estado
de alienação, que existia somente a partir de fora,
para aqueles que internavam e viam no louco um animal, um estranho.
Quanto a Pinel e Tuke, interiorizaram esta alienação,
instalaram-na no internamento, delimitaram-na como distância
do louco em relação a si próprio. Os lendários
pais da psiquiatria naturalizaram o que era somente um conceito, entenderam
por liberação de uma verdade o que não passava
de reconstituição de uma moral, transformaram em cura
espontânea da loucura aquilo que somente era constitutivo de
uma realidade artificialmente elaborada (FOUCAULT, M. Histoire de
la folie, op. cit., p. 501). A psiquiatria reconheceu como sua origem
uma evidência que, paradoxalmente, não passava de um
mito.
Camisas de força químicas
Pinel, no seu Tratado médico-filosófico
sobre a alienação mental ou mania, foi quem, pela primeira
vez, definiu as categorias da doença mental que perdurariam
por um século. A principal delas, a que melhor expressava a
essência da loucura, era a mania, uma espécie de fúria
e delírio agudo. Após a adoção da lei
de 1838, a discussão em torno da natureza da loucura mudou.
Essa lei facultava a criação de hospitais psiquiátricos
em todo o território francês e definia a condição
do homem louco a partir da proteção do ideal da família
e do comércio, segundo a sociedade burguesa. A natureza da
loucura agora estava centrada na noção de monomania,
criada em 1810, por Étienne Esquirol , discípulo de
Pinel e um dos fundadores do asilo. Monomania era a ideia fixa e obsessiva
que se apossava da mente saudável. Na verdade constituía
a tradução, em termos patológicos, de um anseio
compreensível de uma sociedade pós-revolucionária
saída do regicídio na sequência da qual cada um
passou a se considerar rei, imperador - imperador do crime, rei da
fortuna etc. (ROUDINESCO, E. Filósofos da tormenta. Rio de
Janeiro, Zahar, 2007, p. 137). Seria preciso ainda citar Jean-Martin
Charcot , que integrou a histeria como uma espécie de semiloucura,
uma doença de fim de século, que iria tomar o corpo
das mulheres e confundir a identidade dos homens. Essas categorias
da doença mental iriam perdurar até os anos 1960, quando
os remédios tranquilizantes substituiriam as antigas camisas
de força pelas novas camisas de força químicas.
A rigor, Foucault não negou a definição
da loucura como doença mental, somente mostrou que essa definição
é unicamente moderna, indissociável de um novo sequestro
da loucura por parte da razão (psiquiátrica). Foucault
não quis fazer a história sobre a loucura, mas a história
do poder da razão que progressivamente a silenciou, seja como
“erro”, como “desrazão” ou como “doença”.
Com isso, o que ele questiona é a gênese “pura”
e a maneira “objetiva” de tratar a loucura, reivindicadas
pela psiquiatria.
IHU On-Line - A expressão “ortopedia
moral” pode nos ajudar a compreender a institucionalização
da loucura? Por quê?
Cesar Candiotto - A expressão “ortopedia
moral” foi empregada por Foucault alguns anos mais tarde em
Vigiar e punir para caracterizar os mecanismos da normalização
disciplinar na sociedade ocidental, no decorrer dos séculos
XVII e XVIII. Neste livro, ele mostrou que os imperativos morais da
sociedade burguesa eram indissociáveis de tecnologias de poder
cuja finalidade mais significativa era a constituição
do indivíduo normal mediante o controle sutil da distribuição
dos seus corpos segundo as variáveis do espaço e tempo.
Tratava-se de criar um campo de visibilidades suscetível de
objetivar seus gestos e ações corporais para torná-los
cada vez mais úteis e, indiretamente, ele mesmo se subjetivasse
como vontade dócil e obediente.
Mas esse processo de ortopedia moral, também
incluía a higienização social segundo a qual
os indivíduos irredutíveis à norma disciplinar,
porque desviantes, perigosos ou inaptos, deveriam ser segregados e
submetidos a mecanismos que misturavam correção e vigilância.
Em História da loucura Foucault não utiliza a expressão
“ortopedia moral”, mas ela poderia ser retrospectivamente
identificada nesse livro a partir de dois níveis indissociáveis:
o primeiro concerne à distribuição do espaço
asilar, o segundo diz respeito à relação nele
estabelecida entre médico e paciente.
Ortopedia moral e espaço asilar
A miríade (real ou virtual) de visibilidades
à qual o louco está submetido na nova estrutura arquitetural
do asilo caracteriza uma forma de ortopedia moral. Importante é
que o louco se sinta vigiado, que o espaço no qual ele transita
seja similar a um olho anônimo, a uma maquinaria que vigia e
corrige. Uma das teses de Foucault sobre a psiquiatria nascente é
sua relação embrionária com esse espaço
asilar. Psiquiatria e prática asilar não alcançam
a loucura porque se limitam a dobrar o louco à ortopedia moral,
como também ocorreu nos hospícios brasileiros a partir
de meados do século XIX: “Tanto sua estrutura [hospício
e psiquiatria] quanto seu funcionamento realizam o projeto psiquiátrico
nascente: isola o louco da sociedade; organiza o espaço interno
e a distribuição dos indivíduos preservando uma
convivência regular e ordenada; vigia o alienado em todos os
momentos e em todos os lugares, através de uma ‘pirâmide
de olhares’ composta de médicos, enfermeiros, funcionários
e serventes; distribui o tempo dos internos submetendo-os à
realidade do trabalho como principal norma terapêutica”
(MACHADO, Roberto. A constituição da psiquiatria no
Brasil. Conceito, n.1, Lisboa: novembro 2005, p. 60-61). Portanto,
a terapêutica aqui é sinônimo de ortopedia moral,
de correção dos desvios, algo muito similar ao que ocorria
em outras práticas sociais de instituições semiabertas
ou fechadas dos séculos XVIII e XIX.
Ortopedia moral e relação médico/paciente
Na perspectiva de Foucault, o novo gesto da reclusão
do louco no asilo não se deu em função de uma
humanização da loucura e sim de um novo sequestro da
loucura, por meio da relação entre médico e paciente.
Inicialmente, a terapia está fundamentada na autoridade do
médico, e não no conhecimento real da doença;
ela procede da interiorização da ordem e da razão
do médico pelo louco diante de sua vontade irracional e sua
paixão desenfreada. Antes de tudo, o médico tem uma
função moral: impelir com suas exigências racionais
a que o doente reprima suas paixões e seus desejos. Ele não
conhece a loucura, apenas a domina; aquilo que para a psiquiatria
é objetividade para Foucault nada mais é do que outra
forma de ortopedia moral, objetivo da nova separação
social. “A personagem do psiquiatra [...] devia agir não
a partir de uma definição objetiva da doença
ou de um certo diagnóstico classificador, mas apoiando-se nesses
prestígios onde se ocultam os segredos da Família, da
Autoridade, da Punição e do Amor. É jogando com
esses prestígios e assumindo a máscara do Pai e do Justiceiro
que o médico, prescindindo da sua competência médica,
transforma-se no operador quase mágico da cura e assume a figura
de um taumaturgo. Basta que ele olhe e fale para que as faltas secretas
apareçam, para que as presunções insensatas se
esfumem e a loucura finalmente se ordene pela razão. Sua presença
e sua fala são dotadas desse poder de desalienação
que de repente descobre a falta e restaura a ordem da moral”
(FOUCAULT, M. Histoire de la folie, op. cit., p. 526). Nesse segundo
caso, não se trata de um médico que cura uma doença,
mas de um taumaturgo que pretende alcançar uma ortopedia moral
do comportamento.
IHU On-Line - Em que medida a psiquiatria reflete
os mecanismos coercitivos sociais através da forma como trata
a loucura?
Cesar Candiotto - A partir da Revolução
Francesa, por um lado a loucura se libera de sua associação
à miséria e às contravenções morais;
por outro, ela sofre uma nova reclusão pela moral social. Se
o pobre saudável é liberto do aprisionamento e passa
a ser absorvido na indústria incipiente, se o contraventor
moral, político ou religioso é solto como resultado
da crítica revolucionária ao poder tirânico, o
insensato, porém, permanece preso. Agora, porém, não
mais no hospital geral, mas na geografia do asilo.
A transferência do hospital geral para o asilo,
do aprisionamento para o internamento, inscreveu o louco em um domínio
médico que o livrou das cadeias que pesavam sobre seu corpo,
mas não da cadeia moral que o encerrava junto aos demais habitantes
do antigo hospital geral. Na perspectiva de Foucault, o novo gesto
da reclusão do louco no asilo não se deu em função
de uma humanização da loucura e sim de seu novo sequestro
pela razão social, a partir do argumento da defesa da sociedade.
Historicamente, antes de tratar do louco como doente,
o médico foi solicitado ao hospital para proteger a própria
sociedade dele. Mesmo depois de tratá-lo como doente mental,
essa rede de proteção social continuou a existir na
forma de aprisionamento moral, já que o louco era tido como
um indivíduo virtualmente perigoso.
Muitos traços do mundo correcionário
do hospital geral estarão presentes na nova estrutura do asilo.
Neste permanece uma confusão entre castigo e remédio,
entre o gesto que pune e o gesto que cura (FOUCAULT, M. Histoire de
la folie, op. cit., p.100). Os primeiros asilos do século XIX
têm entre suas atividades a aplicação de remédios
morais (p. 101), penitência, julgamento perpétuo (FOUCAULT,
M. Histoire de la folie, op. cit., p. 519), uso regrado da humilhação
e ducha fria.
Perda psicológica da liberdade
Foucault irá salientar que
foi a partir dessa relação moral que a psiquiatria constituiu-se
como ciência humana. No fundo, o distanciamento científico
do objeto loucura foi precedido da distância física da
sociedade em relação aos loucos, dela proscritos ao
modo como o foram os leprosos na Idade Média.
Importante é ser ressaltado
que a psiquiatria não representa o término dos mecanismos
de controle social, mas é secretamente permeada pelos mesmos.
Esses mecanismos de controle eram exercidos pelas famílias
ou pela comunidade. No Antigo Regime, essa instância social-familiar,
representante do “bom senso”, demandava que a lei declarasse
o louco como incapaz da gestão de seus bens, do cuidado dos
seus filhos, irresponsáveis pelos seus atos. (FOUCAULT, M.
Histoire de la folie, op. cit., p. 466-467). Desse controle social
é que surge a penalidade, não como resposta a uma infração,
mas como meio de correção dos indivíduos ao nível
de seu comportamento, de suas atitudes, do perigo que eles representam
ao nível de suas virtualidades (FOUCAULT, M. “La vérité
et les formes juridiques”. Dits et écrits. Paris: Gallimard,
v.II, p. 603). Já no Estado burguês, é o cidadão
livre o primeiro juiz da loucura. Isso porque a liberdade é
“a verdade imediata de toda natureza humana” e “a
medida de toda legislação” (HF, 465). Se, como
já dissemos, a natureza da loucura é a perda psicológica
da liberdade, a coerção que o cidadão soberano
exerce sobre o louco é tão justificável quanto
aquela que o psiquiatra exercerá sobre o doente mental. No
entanto, independentemente da posição de Foucault, seria
muito redutível pensar o estágio atual da psiquiatria
como mera reprodutora das coerções sociais pelo modo
como trata a loucura.
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar
alguns aspectos não questionados?
Cesar Candiotto - Somente gostaria
de comentar que este ano, por ocasião dos 50 anos de História
da loucura, diversos eventos e dossiês procuram refletir sobre
o livro. Na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, entre 24 e 27 de outubro, ocorre o VII Colóquio Internacional
Michel Foucault, organizado por Salma Tannus Muchail e Márcio
Alves da Fonseca, sobre o tema: O Mesmo e o Outro. 50 anos de História
da Loucura (1961-2011). Mais informações podem ser obtidas
no sítio: http://ipfone.com.br/wp/?p=1. Já a prestigiada
revista de filosofia italiana, Aut Aut, publicará no segundo
semestre de 2011 um dossiê, intitulado Folie et Déraison,
organizada por Mauro Bertani. São algumas iniciativas importantes
de reflexão sobre a primeira grande obra de Foucault, meio
século depois de sua publicação.