Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual o lugar do espiritismo dentro
do campo religioso brasileiro hoje?
Marcelo Camurça
- Segundo as estatísticas do último Censo de 2000, o
espiritismo figura como a terceira religião brasileira (e o
quarto agrupamento em termos de crença) atrás dos católicos
com 73,8%, dos evangélicos com 15,45% e dos “sem religião”
com 7,3%. Situando-se bem mais abaixo desta faixa mais representativa
das adesões religiosas, ele conta com 2,3 milhões de
adeptos, representando 1,4% da população. No entanto,
sua influência e seu prestígio no universo de crenças
e práticas religiosas dos brasileiros ultrapassam de longe
sua presença numérica. O imaginário espírita-mediúnico
da comunicação e a influência (benéfica
ou maléfica) dos espíritos dos mortos por sobre a vida
cotidiana, a crença na reencarnação e na relação
determinante entre um “plano espiritual” e a vida e o
destino das pessoas está disseminada na população
brasileira, inclusive nos adeptos das religiões majoritárias
(em alguns casos em conflito com suas doutrinas) ou em indivíduos
que não pertencem a um credo, se dizendo “espiritualistas”.
A frequência de indivíduos aos centros espíritas,
em busca de aconselhamento e tratamento espiritual, ultrapassa em
muito o número daqueles que declaram formalmente professar
a doutrina espírita.
IHU On-Line
- Como o espiritismo se situa dentro da perspectiva de religião
e modernidade?
Marcelo Camurça
- O espiritismo surge no século XIX em meio a correntes, como
os esoterismos e a Teosofia, que buscavam conciliar religiosidade
e cientificismo. Visava coletar provas científicas e racionais
para a vida além da morte física. Sua cosmologia e sua
teodiceia - o sentido da vida, do ser e do sofrimento - estão
marcadas pelo evolucionismo científico, o darwinismo, e por
“leis deterministas” como a da ação-reação,
pelas quais o espírito imperfeito evoluiria para condições
morais superiores. É interessante notar como a revelação
espírita (segundo a doutrina, a 3ª, depois da mosaica
e da crística) é manifestada por um método científico
e indutivo. Kardec, o codificador da doutrina (um pedagogo de formação),
prepara um questionário de mil e dezoito perguntas aplicadas
aos “espíritos” por intermédio de diversos
médiuns e através de testes de acerto-erro, de provas
e contraprovas, chegando-se às respostas verdadeiras e sábias
dos espíritos superiores que vão compor o pilar da doutrina,
o Livro dos Espíritos. O imaginário espírita
promove um “encantamento do mundo” onde seres espirituais
e planos espirituais convivem e envolvem a dinâmica terrena,
para em seguida operar um “desencantamento” ou “desobrenaturalização”
desta realidade espiritual, ordenando-a a partir das “leis”
e padrões ético-morais, onde um “espírito”
é um indivíduo “encarnado” ou “desencarnado”
que vive sua existência ora no plano material, ora no plano
espiritual em direção ao seu aperfeiçoamento.
Por isso, concordo com Anthony D’Andrea quando classifica o
espiritismo como um “reencantamento racionalizado”. O
espiritismo traz também outra característica da modernidade,
que é a iniciativa do sujeito, o chamado individualismo moderno,
pois através da noção de livre arbítrio
o indivíduo encarnado no seu mundo terreno “de expiação
e provas”, apesar do determinismo de sua “programação
espiritual”, pode, através de suas ações,
retardar ou avançar seu “progresso espiritual”.
Enfim, onde outras religiões veem fatalidade e mistério,
o espiritismo modernamente busca, na sua ontologia, nexos causais,
ética e merecimento.
IHU On-Line
- Qual a diferença entre catolicismo e espiritismo quando o
assunto é caridade? O que motiva a ação social
de católicos e de espíritas?
Marcelo Camurça
- A caridade enquanto prática religiosa disseminada
pelo catolicismo desde a Idade Média foi assumida como aspecto
crucial da doutrina espírita com a consigna criada por Kardec:
“fora da caridade não há salvação!”
Numa concepção da caridade enquanto desprendimento,
doação de si para o outro desvalido, penso haver uma
afinidade entre catolicismo e espiritismo, assim como uma distinção
em relação à ideia protestante da crítica
às “boas obras”, e da necessidade da “justificação
pela fé” e do seguimento do “reto caminho”
como uma via de salvação mais individualizante. Ainda
nesta questão da doação ou autoaperfeiçoamento,
no caso do espiritismo, penso haver uma conciliação
entre a instância individual de autoaprimoramento e uma relação
de doação para com os necessitados, pois, ao praticar
a caridade (material ou moral), o espírita, mais que ajudando
o outro, está somando bônus para seu próprio processo
evolutivo.
IHU On-Line
- O que fundamenta o espiritismo como uma religião cristã?
Marcelo Camurça
- Essa é uma boa pergunta, que permite dirimir uma falsa ideia
propalada por um certo “senso comum douto” que afasta
o espiritismo de uma matriz cristã, apesar dele, à sua
maneira, é certo, se reivindicar como tal, tendo inclusive
entre suas obras doutrinárias um “Evangelho segundo o
Espiritismo”. Esta confusão, penso, deve-se ao fato do
espiritismo enquanto “religião mediúnica”
ser associado àquelas de matriz africana, ou por ter a ideia
da reencarnação de origem hindu-budista entre suas crenças
centrais, ou ainda pela acusação vinda da Igreja Católica
no século XIX de que a “comunicação com
os mortos” era prática de quiromancia, logo contrária
à doutrina cristã. No entanto, no que tange à
questão ético-moral, a doutrina espírita se baseia
totalmente no Evangelho, e seus adeptos possuem uma “cultura
do Evangelho” semelhante a dos protestantes, citando passagens
e trechos deste nos seus estudos, aconselhamentos espirituais, assim
como tomando-os como orientação para sua vida. Para
o espiritismo, Jesus Cristo é um “espírito superior”,
o “governador” do planeta Terra, responsável pela
evolução dos seres que por essa instância passam
em direção a outros mundos espirituais mais evoluídos,
e muitos dos seus “milagres” teriam uma explicação
científica na chave dos padrões energéticos,
vibratórios e mediúnicos. Por isso, seguindo a linha
de Wulfhorst e Dahmman e seu conceito de “movimentos neorreligiosos”
como de “caráter reinterpretativo, inovador, completivo
e atualizante da religião clássica”, classifico
o espiritismo como um “Neocristianismo” pela sua capacidade
de ressignificar um “veterocristianismo” (católico,
ortodoxo, protestante), introduzindo nele conteúdos do léxico
cientificista e evolucionista (energias, padrões vibratórios;
a “alma” como “perispírito” etc.).
É sobre a religião cristã pré-existente
que o espiritismo vai empreender sua reinterpretação,
compreendendo-se como uma revelação que esclarece o
cerne da mensagem do Cristo, o que o estágio anterior não
era capaz de fazer. Através desse movimento reinterpretrativo,
a história sagrada e as figuras santas do catolicismo, como
São Luís, Santo Agostinho, etc., ou, no caso do Brasil,
o padre Manuel da Nóbrega, são reapropriados pelo espiritismo
como “espíritos mentores” que se manifestam do
plano espiritual revelando a cosmologia evolucionista da doutrina
espírita.
IHU On-Line
- Como entender o dilema entre carma e terapia dentro do espiritismo?
Marcelo Camurça
- Esta questão foi desenvolvida de uma forma mais completa
por mim num artigo que intitulei "Entre o cármico e o
terapêutico: dilema intrínseco ao Espiritismo",
onde aponto, dentro das concepções espíritas,
uma tensão entre o lugar da doença como questão
inexoravelmente moral subordinada à lei de causa-efeito (popularmente
conhecida como carma), mas também o papel ativo de uma terapia
objetiva no diagnóstico, tratamento e possível cura.
Penso que isto se deriva do perfil espírita da “cientifização
do espiritual”, calcado em uma articulação bem
engendrada entre “progresso moral” (dimensão filosófico-religiosa)
e a realidade das “energias, fluidos e faixas vibratórias”
(dimensão científica). Ou seja, a dimensão subjetiva,
moral e psicológica do indivíduo está intrinsecamente
ligada a faixas energéticas e vibratórias. Por isso,
em caso de doença, o espiritismo atua nesta questão
tanto por passes, tratamentos e operações espirituais,
intervindo no fluido espiritual para reequilibrar as energias deste
indivíduo, quanto pelo ensinamento moral e o “atendimento
fraterno”, conscientizando este indivíduo que sua doença
está ligada a sua evolução espiritual resultado
de atos praticados em “encarnações” anteriores.
A contradição
Mas o problema é encontrarmos
uma contradição (e não articulação)
entre estas duas instâncias. E aí vem a pergunta: até
que ponto o recurso às curas mediúnicas não comprometeria
as responsabilidades ou obrigações no cumprimento das
dívidas cármicas? Ou seja, se o carma foi programado
espiritualmente, qual a finalidade da cura? Isto pode ser ilustrado
por uma anedota que ouvi no meio espírita, que dizia que o
polêmico médium Arigó disse a Chico Xavier que
o seu espírito mentor, o Dr. Fritz, poderia curá-lo
de sua doença no olho, ao que Chico respondeu que esta era
uma doença cármica, a qual, necessariamente, reapareceria
em outro lugar, e que ele já estava acostumado com ela e não
ia querer uma doença nova. Acho que neste dilema explica-se
a clivagem que sempre dividiu o movimento espírita entre aqueles
chamados “científicos”, que atuariam em experimentos
paracientíficos do inefável, buscando alargar a ciência
materialista para uma ciência espiritual, no caso uma “medicina
da alma” e aqueles chamados “religiosos”, que, através
de uma hermenêutica do Evangelho e da codificação
kardequiana, explicariam o infortúnio dos indivíduos
e os exortariam à conduta moral elevada e à prática
do bem como instrumento de evolução espiritual.
IHU On-Line -
Quais as principais reflexões que podemos fazer ao contrapor
os conceitos de ressurreição católica e reencarnação
espírita?
Marcelo Camurça
- Considero que as concepções da ressurreição
católica e da reencarnação espírita estão
balizadas pelas noções de Graça - a primeira
- e Evolução - a segunda. Neste sentido, a configuração
católica se expressa no que chamo de “religião
de salvação”, regida pelo primado da “graça”
e “misericórdia divina” como esferas constitutivas
do processo de “salvação” do homem. A configuração
espírita, por sua vez, se expressa no que denomino de “religião
de aperfeiçoamento”, onde prevalece a iniciativa do ser
em sucessiva evolução e autoaprendizado na direção
da plena realização no “amor de Deus”. Embora
ambas as configurações contemplem na sua cosmologia
teleológica as dimensões do “amor e da misericórdia”
do Criador na remissão e no resgate de suas criaturas, aliada
à liberdade de escolha entre o bem e o mal, a configuração
da “salvação” enfatiza a iniciativa divina
na redenção da falibilidade dos seres e a do “aperfeiçoamento”
acentua a iniciativa dos seres, balizada pela lei de Deus, no seu
processo de caminho de integração no divino. Portanto,
as duas formas ou instrumentais com que as realidades humanas “agarram”
o sentido último (o modelo da “salvação”
e da “evolução”) diferem entre si enquanto
modalidades, manifestações de se acercar do transcendente,
cada uma com suas argumentações, coerência interna
e questões de plausibilidade. Na modalidade católica
temos um percurso salvífico condensado e na espírita,
dilatado, que, a despeito de suas diferenças profundas no terreno
das coerências e plausibilidades (e seria ingenuidade passar
por cima destas diferenças, que merecem, ao invés disto,
serem tomadas para um plano de diálogo), desembocam na mesma
“realidade última”.
IHU On-Line
- Qual a influência do espiritismo para as religiões
e doutrinas da chamada nova era?
Marcelo Camurça
- Espiritismo e nova era possuem a mesma referência histórica
de origem, marcados pela onda do “novo espiritualismo”
do fim do século XIX, onde proliferaram também a Teosofia,
os ocultismos e a Rosa Cruz. Enquanto religiosidades com grande penetração
nas camadas letradas da população, a nova era recebe
do espiritismo a postura de racionalizar a magia, assim como o caráter
individualista moderno da noção de livre arbítrio,
que na nova era é exponenciado ao milésimo grau de autonomia,
onde não existe nenhuma amarra para a criatividade individual.
Como demonstra seu lema: no blame, no shame! No espiritismo as restrições
ético-morais da doutrina codificada impõem limites às
demandas por sucesso e fruição que são vinculadas,
na nova era, às possibilidades ilimitadas do poder da mente
e não, como na doutrina espírita, ao grau de merecimento
subordinado às exigências de evolução moral.
Na medida em que se expande, o espiritismo sofre um processo de fragmentação,
liberando dos seus efetivos grupos sincrético-esotéricos,
grupos paracientíficos, etc. Na verdade, cresce numa franja
do espiritismo um número de simpatizantes de práticas
new age: uso de cristais, tarô, reiki, etc., o que levou Anthony
D’Andrea a ver um processo de “novaerização”
do espiritismo ou de “pós-espiritismo”. A mediunidade
é reinterpretada como channeling (canalização),
comunicação com o plano espiritual, mas também
com universos intergalácticos, o carma é atenuado como
influência tendencial, a razão é substituída
pela intuição. Para determinadas camadas dos extratos
médios brasileiros, o espiritismo não responde mais
às suas demandas existenciais, onde o “interior”
do indivíduo se transforma no locus supremo da verdade, alcançado
pela meditação, técnicas de introspecção,
bebidas sagradas, etc. A forte aderência do espiritismo à
sua doutrina codificada implica numa falta de flexibilidade quanto
às demandas diversificadas por novidades espirituais/existenciais
destes grupos.