Graziela Wolfart entrevista
Leonildo Silveira Campos
A partir da assim chamada "nova classe média",
Leonildo Silveira Campos identifica o surgimento de um tipo de religiosidade
nômade, de uma espiritualidade sem igreja, que mantenha com
mais força o interesse e a experiência individual
“A ascensão ou o descenso social trazem
significativos resultados para a prática religiosa dos membros
de uma determinada sociedade. Em outras palavras, a passagem de
uma classe social para outra ou até mesmo de um estrato de
classe para outro, assim como a mobilidade geográfica, afetam
a forma como as pessoas formulam e se relacionam com os seus deuses”.
A análise é do professor Leonildo Silveira
Campos, em entrevista concedida por e-mail à IHU
On-Line. Ele argumenta que “o carismatismo e o neopentecostalismo
se mostram como uma força propulsora de uma mobilidade social
ascendente para milhões de brasileiros”. Possivelmente,
continua, “esse cenário indique um crescimento ainda
maior do neopentecostalismo e uma pressão para que os grupos
pentecostais tradicionais, como Assembleia de Deus e Congregação
Cristã no Brasil, assim como os protestantes tradicionais,
também se neopentecostalizem caso queiram sobreviver”.
Leonildo Silveira Campos é graduado em Filosofia
pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mogi das
Cruzes, e em Teologia pela Igreja Presbiteriana Independente do
Brasil. Seu mestrado e doutorado foram realizados na Universidade
Metodista de São Paulo – Umesp, com a tese Teatro,
templo e mercado: uma análise da organização,
rituais, marketing e eficácia comunicativa de um empreendimento
neopentecostal – a Igreja Universal do Reino de Deus
(Petrópolis: Vozes, 1997). Atualmente, é professor
da Umesp e da Faculdade de Teologia da Igreja Presbiteriana Independente
do Brasil.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Com a ascensão econômica
de uma parcela da população brasileira, a chamada “““nova
classe média”””, que cenário religioso
o senhor percebe que começa a aparecer?
Leonildo Silveira Campos – A
relação entre prática religiosa, cosmovisão
religiosa e classe social, é um pressuposto aceito com naturalidade
pelos cientistas sociais desde Karl Marx , Max Weber até Pierre
Bourdieu . A ascensão ou o descenso social trazem significativos
resultados para a prática religiosa dos membros de uma determinada
sociedade. Em outras palavras, a passagem de uma classe social para
outra ou até mesmo de um estrato de classe para outro, assim
como a mobilidade geográfica, afetam a forma como as pessoas
formulam e se relacionam com os seus deuses.
IHU On-Line – Com a melhora
econômica, a ““nova classe média””
tende a evoluir culturalmente também. Em que sentido isso pode
gerar consequências para as religiões pentecostais e
neopentecostais?
Leonildo Silveira Campos – O
pentecostalismo surgiu nos Estados Unidos (início do século
XX) como uma religião de imigrantes pobres, de negros pobres
vindos do sul racista, e dos bolsões marcados pela pobreza
urbana de Chicago, Los Angeles e Nova York. Assim também a
mensagem pentecostal chegou ao Brasil em 1910 e 1911. A mensagem pregada
pelo ítalo-americano Louis Francescon, entre a colônia
italiana dos estados de São Paulo e Paraná foi bem recebida
pelos operários dos bairros do Brás, Mooca, Ipiranga
e outros, assim como entre lavradores do norte velho do Paraná.
Já a mensagem pentecostal trazida pelos suecos (com passagem
pelos EUA) penetrou através de Belém, no estado do Pará,
entre os pobres da região, seguindo depois pelo nordeste, até
chegar ao Sudeste brasileiro. Esse pentecostalismo, hoje tido como
“clássico” para diferenciar do neopentecostalismo,
oferecia a uma nova classe social que surgia no Brasil, o operariado,
uma mensagem que enfatizava o conforto espiritual diante das agruras
da vida urbana, uma forma dos que abandonaram o campo a operacionalizar
os desafios de uma nova forma de vida. A experiência mística
(batismo com o Espírito Santo) e a participação
entusiasta e emocional deles nos cultos faziam com que essas pessoas
decidissem por levar uma vida disciplinada, muito regrada. Isso os
tornava trabalhadores domésticos, nas fazendas e nas fábricas,
os preferidos dos patrões. Eles esperavam pelo céu,
e se contentavam com uma religião intimista. Enfatizavam a
vida econômica regrada a partir da separação de
10% dos ganhos para a Igreja. Assim eles tinham agora que reorganizar
os gastos, antes destinados a bebida, cigarro, diversão, etc.
Assim, com o passar do tempo, muitos
deles que antes esbanjavam todo o seu recurso passaram a economizar,
aplicar na construção da casa própria, no estudo
dos filhos, mais tarde na aquisição de automóveis.
Hoje, os filhos e netos dos primeiros pentecostais brasileiros já
fazem parte das camadas médias da população.
Nessa camada se instalaram de uma forma conservadora das regras de
ganho e de ascensão social. Eles se tornaram conservadores,
deram apoio ao moralismo hipócrita do regime militar e agora
se inscrevem entre os que defendem a discriminação da
homossexualidade, atacam junto com um de seus líderes, o pastor
Silas Malafaia , as políticas que envolvem o casamento de pessoas
do mesmo sexo, a proibição da homofobia. Entre eles
circularam uma enorme quantidade de mensagens via internet que a meu
ver impediu o PT de eleger Dilma no primeiro turno das eleições
de 2010.
A partir da metade dos anos 1950,
começa a aparecer no Brasil pregadores de um novo tipo de pentecostalismo,
mais adaptado às camadas urbanas, enfatizando a cura divina,
a solução de problemas de relacionamento entre pessoas,
grupos sociais e dificuldades na família. Para muitos deles,
desempregados ou em situação de fragilidade social,
a mensagem do milagre como única solução que
vem de Deus, era um sucesso. Nessa esteira novas igrejas pentecostais
se estruturaram, como a Igreja Pentecostal “O Brasil para Cristo”
, Igreja do Evangelho Quadrangular , Igreja Pentecostal “Deus
é Amor” . Essas igrejas, especialmente a “Deus
é Amor”, têm uma mensagem muito adaptada às
pessoas de classes C e D e para os miseráveis que estão
abaixo da linha da miséria. Para esses somente um milagre divino
pode salvar as suas vidas.
Já no final dos anos 1970,
no rastro do televangelismo norte-americano surgem os chamados neopentecostais.
A mensagem deles se volta para as camadas médias da população,
escolhidas como nicho para um marketing e para uma propaganda quase
sempre profissionalmente elaborada. Porém, a classe média
baixa, que em tempos de crise social se prende entre a prosperidade
e a pobreza, com muito medo de perder o emprego ou o crédito
nos bancos e financeiras, aderem à chamada “teologia
da prosperidade” . Quem é filho de Deus tem o direito
a ser rico e próspero. Para se conseguir isso, é necessária
uma aliança com Deus. Com a autoestima recuperada, uma reprogramação
da vida cotidiana, a mudança da mentalidade de um “derrotado”
para um “vencedor”, as possibilidades de se vencer as
vertigens do mundo econômico e social são muito maiores.
O preço é a contribuição em dinheiro para
a igreja, uma oferta racionalmente calculada, conforme o tamanho da
bênção aspirada.
IHU On-Line – Que tipo de
espiritualidade é compatível com uma camada social que
está motivada ao apelo do consumo?
Leonildo Silveira Campos – Nesse
neopentecostalismo, os males da vida são encarados como presença
dos demônios e do próprio diabo, os quais precisam ser
exorcizados. Soluções sincreticamente misturadas com
as da umbanda, candomblé, catolicismo popular e algumas pitadas
de protestantismo são buscadas pelos candidatos à ascensão
social, a qual estava sendo barrada por alguma manifestação
demoníaca. As pessoas que frequentam tais centros religiosos
têm boas chances de organizar a vida de acordo com novas regras,
agora as que são ditadas pela sociedade de consumo. Não
se trata mais de buscar as bênçãos no céu
do pós-morte. O paraíso é aqui mesmo na terra
(influência da pós-modernidade?) e é compatível
com a busca da riqueza, com a realização de projetos
individuais (mesmo que sejam considerados egoístas), com o
culto do corpo belo, saudável, do hedonismo e do prazer. Nada
mais de uma religião pentecostal ou protestante tradicional
centrada numa ascese que prega o sofrimento corporal como forma de
entrada no paraíso.
IHU On-Line – Como a Igreja
Católica deve conduzir sua postura e seu discurso se pretende
ampliar sua base de atuação nesse novo segmento social
e econômico do país?
Leonildo Silveira Campos – A
Igreja Católica cede, desde os anos 1980, aos encantos desse
novo pentecostalismo. A renovação carismática
católica oferece práticas e visões de mundo muito
semelhantes as que têm sido pregadas pelos neopentecostais.
Os programas televisivos, a mercantilização de produtos
simbólicos, as promessas de cura, de solução
mágica para problemas complicados, a eliminação
do mal-estar provocado pelos trancos de uma ascensão ou de
um descenso social é amenizado. “Deus está presente.
Viva Jesus!” proclama a Legião da Boa Vontade de igual
modo, desde os anos 1950.
IHU On-Line – Quais os segmentos
religiosos brasileiros que deverão sofrer mais mudanças
a partir do surgimento da ““nova classe média””?
Leonildo Silveira Campos – Nessa mudança
de cenário religioso, há um fator que poucos pesquisadores
da religião têm dado conta. Há milhares de empregos
que têm sido criados para o atendimento das demandas geradas
pela passagem de milhões de pessoas de uma para outra classe
social. Esses novos intermediários culturais são pastores,
padres, missionários, apóstolos, videntes, e outros
que se especializam em fazer da satisfação das carências
sociais e econômicas o seu ganha-pão. Uma pesquisa feita
por Marcelo Neri (da Fundação Getúlio Vargas,
do Rio de Janeiro) sobre a Economia das religiões: mudanças
recentes (2007) enfatizou que a percepção de acesso
aos bens públicos, as mudanças de escolaridade, o capital
empregado na obtenção de bens simbólicos, fez
com que um grupo maior de pessoas, antes nas camadas mais baixas da
sociedade, subisse na pirâmide social e passasse a ter acesso
ao consumir mais. Assim, o carismatismo e o neopentecostalismo se
mostram como uma força propulsora de uma mobilidade social
ascendente para milhões de brasileiros. Possivelmente, esse
cenário indique um crescimento ainda maior do neopentecostalismo
e uma pressão para que os grupos pentecostais tradicionais,
como Assembleia de Deus e Congregação Cristã
no Brasil, assim como os protestantes tradicionais, também
se neopentecostalizem caso queiram sobreviver. Em um determinado ponto
de sua pesquisa, Neri registra que “enquanto o protestantismo
tradicional liberou o cidadão comum da culpa de acumulação
de capital privado, as novas seitas pentecostais liberaram a acumulação
privada de capital através da igreja”.
IHU On-Line – Como definiria a vivência
religiosa dessa camada social que, hoje, é chamada de ““nova
classe média””?
Leonildo Silveira Campos – É interessante
observar que os integrantes da possível nova classe social
não mais se sentem à vontade com a religião tradicional,
cristalizada em dogmas, ritos e instituições clássicas.
Muitos deles preferem o dinamismo das novas comunidades religiosas,
mesmo que sejam comunidades aninhadas dentro de velhas instituições
sociais como a Igreja Católica (Canção Nova ,
etc.). Outros preferem uma religiosidade individual, voltada apenas
para a intimidade, sem preocupação social ou sem sentir
a necessidade de se associar a outros para a prática da religiosidade.
Vai surgindo, nesse caso, um tipo de religiosidade nômade, de
uma espiritualidade sem igreja, que mantenha com mais força
o interesse e experiência individual.