Considerar que o exercício da atividade científica é
coisa dissociada da vida religiosa já se transformou num lugar-comum.
Difícil imaginar um padre num laboratório ou num observatório
astronômico realizando experiências tal e qual qualquer
outro homem de ciência. No mais das vezes, quando tomamos contato
com um desses religiosos, e reconhecemos sua condição,
não deixamos de nos surpreender. Mesmo que uma reflexão
mais detida deixe claro que não há incompatibilidade
entre ser padre e ser cientista, para a imensa maioria de nós,
não é imediato acomodar-se à idéia de
que uma mesma pessoa possa estar na condição de padre
e de cientista. Afinal, um padre preocupa-se com problemas de ordem
moral, com a salvação das almas, com as tensões
da vida quotidiana; e o cientista busca conhecer o mundo natural.
Atividades diferentes, e apenas isso, quando reunidas numa só
pessoa costumam gerar estranhamento.
Mas quando se trata de ciência e de religião
o estranhamento liga-se a problemas que vêm de longa data. Acostumamo-nos
a pensar que a ciência moderna de Darwin, de Newton, de Galileu
e de Copérnico constituiu-se em frontal combate com as estruturas
eclesiásticas, com os religiosos, e isso basta para aprofundar
essa sensação de estranhamento quando nos deparamos
com um padre astrônomo ou biólogo. E, de certo modo,
isso não é de todo equivocado. Porém, esse conflito
entre ciência e religião certamente não teve e
não tem duração indefinida no tempo, nem mesmo
uma extensão que abarque toda a pauta científica. Trata-se,
sobretudo, de contrastes pontuais e característicos da época
contemporânea, de meados do século XVIII até os
nossos dias – data, portanto, de uns duzentos e cinqüenta
ou de trezentos anos. Antes disso, a coisa era muito diferente.
Se tomarmos o período final da Idade Média
e os primeiros duzentos anos da Idade Moderna – grosso modo
os anos 1400-1700 – e se tomarmos apenas os astrônomos
e os matemáticos, constataremos facilmente que boa parte dos
praticantes dessas disciplinas eram religiosos. Para citar apenas
alguns nomes relativamente conhecidos e importantes, Nicolau Copérnico
– autor da principal teoria heliocêntrica do século
XVI – e Cristóvão Clavius – autor da reforma
do calendário de 1582 – eram religiosos e não
constituíam caso excepcional. No século XVII, a mais
conhecida e difundida carta da Lua, com a denominação
dos acidentes selenográficos (vales e montanhas do satélite)
foi autoria dos jesuítas de Bolonha que atribuíram nomes
de matemáticos da Companhia de Jesus a diversas crateras e
“mares”. Certamente uma homenagem merecida, tendo em vista
a quantidade de seus confrades dedicados à investigação
dos céus.
Entre as ordens religiosas da época moderna,
aquelas onde mais encontramos destacados estudiosos da astronomia
são os jesuítas e os oratorianos. Os primeiros com acentuado
empenho na disciplina entre os séculos XVI e XVIII, os segundos
a partir do final do século XVII. Para esses homens, o estudo
dos céus era bem mais do que uma forma de ocupar o tempo ocioso
entre uma oração e um outro serviço religioso
que suas obrigações sacerdotais lhes impunha.
A poderosa Companhia de Jesus, desde sua fundação
em 1541, adotou como um de seus princípios de ação
a disputa intelectual contra os protestantes e contra os “desvios”
religiosos. Com isso, os jesuítas se deram a pesada tarefa
da missionação, da formação cultural e
da educação daquela parcela da juventude com possibilidades
de enfrentar os debates mais intensos. Os padres da Companhia aprofundavam
seus estudos filosóficos com o explícito intuito de
consolidar seus conhecimentos a fim de estarem capacitados, o melhor
possível, para o enfrentamento com os filósofos e com
os teólogos que buscavam inovações radicais,
e indesejadas, na filosofia e na teologia do tempo. É claro
que esse objetivo associava-se diretamente aos intentos comuns aos
estudiosos da filosofia – a busca da verdade, a interpretação
consistente da sociedade em que viviam etc.
No que diz respeito aos trabalhos astronômicos,
diversos jesuítas esmeraram-se no estudo dos movimentos planetários
e das melhores hipóteses para interpretá-los. Formaram
diversas gerações de matemáticos nas suas escolas
e contribuíram sensivelmente para a organização
da disciplina. No conjunto das atividades da Ordem, os trabalhos em
matemática também contribuíram para o esforço
de implantação do cristianismo no Oriente. Na passagem
do século XVI ao XVII, depois dos trabalhos do jesuíta
missionário Matteo Ricci, numerosos matemáticos foram
enviados para a China a fim de atuar no Observatório astronômico
que os membros da Companhia de Jesus construíram em Pequim.
É importante registrar que a astronomia praticada por esses
missionários não era a simples repetição
de teorias antigas e reavivadas. Os jesuítas matemáticos
da China traduziram trechos da obra de Galileu para o chinês
e faziam seus cálculos segundo as teorias de Tycho Brahe.
De um modo geral, pode-se dizer que a Companhia adotou
quase que unanimemente o sistema do mundo proposto por Tycho. Tratava-se
de um modelo astronômico confortável para os cálculos
e para as observações. Ele mantinha a Terra no centro
do mundo e fazia girar ao seu redor apenas a Lua, o Sol e as estrelas
fixas. Os demais planetas girariam por si mesmos ao redor do Sol sem
a necessidade de esferas cristalinas que os carregassem. Este sistema
foi também adotado pela maior parte dos astrônomos do
século XVII.
Não se tratou, para a Companhia de Jesus, de
estudar a astronomia com a intenção de impedir seu desenvolvimento;
ao contrário, esses religiosos participaram intensamente das
principais transformações que a disciplina passou entre
os séculos XVI e XVII. Em Lisboa, o Colégio de Santo
Antão oferecia um famoso curso de astronomia destinado à
formação de pilotos e de cosmógrafos. Ali lecionaram
mestres de matemática de diversas partes do mundo, discutindo
a atualidade da disciplina e procurando difundir os novos conhecimentos
astronômicos.
Mesmo nas regiões mais afastadas dos grandes
centros de reflexão, os jesuítas buscaram estudar os
céus e registrar suas observações. Em Salvador,
por exemplo, a capital da América Portuguesa, eles se esforçaram
por manter uma biblioteca atualizada em obras de matemática
e alguns de seus membros praticaram a astronomia escrevendo livros
e discutindo os resultados de suas observações com astrônomos
do Velho Mundo. O mais antigo destes estudiosos foi o padre Valentin
Stansel (1621-1705) que fez publicar na Europa suas observações
de cometas. Um desses textos, relativo ao cometa de 1669, foi publicado
no periódico científico da Royal Society de Londres,
o Philosophical trasactions e acabou servindo a Isaac Newton, que
o cita na parte final de seu famoso tratado Princípios matemáticos
da filosofia natural. Além de seus textos sobre estes fenômenos
episódicos, Stansel publicou em 1685 um diálogo latino
bastante interessante: Uranófilo, o peregrino celeste em que
combina habilmente a exposição de seus conhecimentos
astronômicos e a ficção. O padre Valentin não
discute velhas e obsoletas teorias dos céus; ele não
defende Ptolomeu e o geocentrismo. Suas proposições
acompanham aproximadamente o sistema de Tycho e procuram incorporar
as mais recentes descobertas da astronomia. Note-se que esse padre
veio ao Brasil como missionário e matemático já
formado, com mais de quarenta anos de idade.
Por outro lado, pouco antes da expulsão dos
jesuítas, o padre José Monteiro da Rocha observou a
primeira passagem prevista do cometa de Halley em 1759. Naquela época
o astrônomo contava cerca de 25 anos e, ao contrário
do anterior, sempre estudara no Colégio dos Jesuítas
de Salvador. Na ocasião, José Monteiro escreveu um livro,
o Sistema físico-matemático dos cometas em que defende
as teorias de Isaac Newton sobre os movimentos dos corpos celestes.
Trata-se de obra de caráter newtoniano!
Certamente não se trata aqui de sustentar que
os padres jesuítas fazem parte daqueles astrônomos que
mais contribuíram para o desenvolvimento da ciência.
Mas, atualmente, já é bastante reconhecido que eles
se esforçaram na pesquisa e no ensino científico. Tratava-se,
para a Companhia, de um problema vinculado não somente ao interesse
de fundo religioso em “conhecer a obra de Deus”; mas sobretudo
de um problema prático ligado à política missionária
do Oriente e de um problema dependente de sua opção
primitiva pela excelência do trabalho intelectual.
Com isso, constatamos que a prática científica
não se apresenta como algo estranho aos religiosos, nem mesmo
em época de profundas transformações na ciência.
E registre-se que tomamos como exemplo apenas católicos. Se
incluirmos nesta análise religiosos protestantes, os exemplos
se alongarão por bem mais do que faz sentido no presente texto.
Então, resta responder qual a origem do estranhamento ao se
ter notícia de um padre atuando num laboratório? A resposta
se encontra mais em nós que nos religiosos; pois nos acostumamos
a imaginar uma incompatibilidade que nem sempre, e nem em todos os
temas, tem razão de ser. Tomamos a parte pelo todo...