__________________________________________
Os pais preferem lidar com um filho revoltado
a imaginar que ele tenha uma vida servil
________________________________________
VOLTEI AO presídio
feminino do Butantã, em São Paulo, para ser jurado de
um concurso de miss atrás das grades, com três premiações:
Miss Cultura, Miss Simpatia e Miss Beleza.
No concurso de beleza, a administração decidiu que seriam
premiadas cinco mulheres, sem hierarquia. Foi uma ótima ideia.
A eleição de uma miss sempre deixa a impressão
de que exista um único cânone de beleza. De fato, as cinco
mulheres premiadas eram bonitas de maneiras muito diferentes. Mas, sobre
a diversidade da beleza, escreverei outro dia.
No concurso de Miss Simpatia, o júri só podia se deixar
contaminar pela torcida da plateia. Afinal, simpatia é também
saber conquistar amizades, muitas amizades.
Mas vamos ao concurso de Miss Cultura. Cada uma das sete finalistas
produziu uma redação sobre um dos temas que tinham sido
propostos pelos organizadores. Nós, do júri, recebemos
as redações, lemos, ponderamos e, no dia do concurso,
escutamos as candidatas lendo seu texto e, eventualmente, respondendo
às nossas perguntas.
Os próprios temas levaram as mulheres a falar de seus planos
de futuro, do uso que elas fizeram ou fariam do tempo de detenção,
do arrependimento, da saudade etc. Com isso, era quase inevitável
que as considerações das concorrentes fossem sempre muito
próximas ao que a sociedade espera que um detento pense e declare.
Mas, cuidado, não há crítica alguma nessa minha
observação, até porque nada do que as candidatas
escreveram soava fingido.
Então qual é o meu problema? Eu preferiria que as candidatas
se mostrassem revoltadas e agressivas? Claro que não. No entanto,
ao ler as redações, eu me preocupava, paradoxalmente,
com a rebeldia das autoras, como se ela fosse uma qualidade que não
poderia se perder, que, mesmo numa penitenciária, deveria ser
preservada. Que loucura é essa?
Pois bem, é uma loucura absolutamente banal, uma loucura própria
de nossa cultura. Se não fosse por ela, aliás, a tarefa
dos pais e dos educadores seria imensamente mais fácil. Explico.
Todos queremos que filhos ou alunos respeitem nossa autoridade. Agora,
todos também consideramos que nossa tarefa de pais ou educadores
só será cumprida quando filhos e alunos pensarem por conta
própria, ou seja, quando eles sejam capazes de desconsiderar
nossos conselhos e desobedecer a nossas ordens.
Seria cômodo se, como nas sociedades tradicionais, a gente dispusesse
de ritos de passagem sancionando a entrada na idade adulta: aos 15 anos
e um dia, saia sozinho pela savana, armado de uma lança, e só
volte tendo matado seu primeiro leão. A partir de então,
você será autônomo.
Infelizmente, para nós, o tempo de se tornar adulto se estende
sem limites definidos: não sabemos quando ele acaba e, mais problemático
ainda, não sabemos quando começa. Consequência:
pais e educadores podem sofrer, exasperados pela rebeldia de moleques
e meninas incontroláveis e, ao mesmo tempo, deliciar-se ao relatar
as travessuras de filhos e alunos. Qualquer terapeuta já atendeu
pais "desesperados" com a insubordinação dos
filhos, mas que, de repente, abrem um sorriso extasiado na hora de contar
"o horror" que é sua vida com esses descendentes que
os desrespeitam.
Eis o problema que torna educar quase impossível, em nossa cultura:
a autonomia, para nós, é um valor tão importante
que ela precisa ser confirmada pela desobediência. Com isso, qualquer
pai prefere, no fundo, lidar com um filho revoltado a imaginar que o
filho possa ter uma vida servil e, portanto, medíocre.
Os santos mais respeitados são os que foram grandes pecadores
e descrentes (Agostinho, Francisco, o próprio Paulo etc.). No
imaginário cristão, aliás, uma conversão
tem mais valor do que a fé de quem sempre acreditou. A parábola
do pastor que deixa o rebanho para procurar a ovelha perdida sugere
que, assim como a gente, talvez Deus prefira os rebeldes.
Uma anedota. Em maio de 1969, no átrio da Universidade de Genebra,
junto com amigos anarquistas, eu distribuía panfletos criticando
a iminente visita do papa à cidade.
Um professor, passando por nós, perguntou-me: "Será
que o senhor tem uma autorização para distribuir esses
panfletos?". Respondi imediatamente: "Senhor, tenho muito
mais do que uma autorização, tenho uma proibição
formal".
Fato coerente com o que acabo de argumentar, ele achou engraçada
minha impertinência e deixou que continuássemos.
Fonte:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0605201026.htm
topo