É sempre bom ter um amigo nas fileiras da oposição.
Imagine que seu filho ou sua filha sumissem no abraço asfixiante
de uma polícia política dos anos 1970. Você pergunta
para o Exército, para a Aeronáutica, para a Marinha
e até para a polícia. Ninguém sabe de nada. É
nessa altura que o amigo fascista ou TFP (Tradição,
Família e Propriedade) se revelará útil, se não
indispensável. Ele saberá para quem perguntar.
Claro, não é facil ter
um amigo verdadeiro na oposição — ou pelo menos,
numa oposição tão extrema. Como é possível
amar alguém radicalmente diferente?
Isso não implica que seja impossível.
Montaigne, no ensaio sobre a amizade ("Ensaios”, 1-28),
resumiu o enigma de maneira linda e decisiva: podemos pensar e agir
de maneira muito diferente e mesmo oposta, podemos até odiar
no outro esse oponente insuportável que se obstina a pensar
“besteiras”, mas, em certos casos, misteriosamente, não
por isso deixaremos de ser amigos: "Na amizade da qual falo,
nossos espíritos se misturam e confundem a ponto de apagar-se
e de nem sequer saber reencontrar a costura que os juntou. Se me obrigassem
a dizer por que eu o amava, sinto que só poderia me expressar
respondendo: Porque era ele, e porque era eu".
Claro, não é impossível
respeitar seus opositores. Ao contrário, se você não
tiver amigo algum entre os que pensam diferente de você, é
porque você se alimenta só dos seus ódios e nunca
dos seus amores.
A posição oposta (alimentar-se
só de amor, e nunca de ódio) não é necessariamente
mais simpática. Imagine um mundo em que você decida quem
são seus opositores ou seus aliados a partir da simpatia inefável
que eles lhe inspiram. Brilhante Ustra? Sim, ele gostava de torturar
pessoas, mas, por razões que nem eu sei dizer, ele era meu
querido do peito. E por aí vai.
Seria um universo espantosamente “brasileiro”,
um pesadelo engendrado pela visão diagnóstica de Sérgio
Buarque de Holanda: o que regula a nossa vida social seriam simpatias
espontâneas que organizariam o mundo entre afetos e desafetos.
Essas reflexões todas talvez
sejam de alguma ajuda para os leitores que veem com apreensão
se aproximar a data das grandes festas de empresa e de família.
Fora o desastre sanitário que nos ameaça, podemos prever
(prevenir?) a convivência forçada com ao menos uma fonte
dolorosa de discórdia e mal-estar. Aquele tio que só
aparece uma vez por ano para defender teses bolsonaristas extremas,
aquela tia que, da última vez, quis trazer o grupo de refugiados
bolivianos que ocupa o prédio ao lado do dela: as festas de
fim de ano serão para muitos uma provação.
Somos capazes dos melhores sentimentos
(até de sentimentos amorosos, dizem alguns) em relação
a outros que pensam de outra maneira do que a gente ou que pertecem
a clãs, grupos, etnias, partidos, torcidas diferentes.
Não sei se isso é um
bem, ou se, ao contrário, isso não condena a viver num
caldeirão no qual, por tradição culinária
nacional, camarões, carne, frango e porco têm todos o
mesmo gosto. Isso para não falar do queijo. Mas não
é dificil enxergar uma vantagem na possibilidade de diferenças
acentuadas conviverem —diferenças que, em outros países,
deixariam a palavra às facas.
Há hoje, aliás, uma
mudança do nosso próprio panorama interno: convive-se
muito menos com as diferenças. Somos cada vez menos tolerantes.
É necessario que La Boétie seja muito amigo nosso para
que a gente aceite as posições políticas dele
que realmente não casam com as nossas.
Agora, qual é o ponto médio
certeiro? Como se calcula o lugar onde é possivel dialogar
e mesmo discutir sem se odiar?
São perguntas antigas, vivíssimas
nos anos 1980, quando se debatia quais eram os limites da “ação
comunicativa” proposta pela sociólogo alemão Jürgen
Habermas. No começo dos 1990, quem deveria resolver a guerra
da Bósnia, as bombas da Otan ou a comunicação
habermasiana?
De qualquer forma, toda situação
em que a vontade de dialogar pareça menor do que a vontade
raivosa de enfrentamento constitui um pequeno ou grande triunfo da
estupidez narcisista. O modelo é o seguinte: não me
interessa debater para saber se é melhor usar máscara
ou não, não me interessa debater para saber se é
bom para a maioria que uma vacina seja obrigatória. Nada disso
me interessa, porque a única coisa que importa é que
eu tenha razão.
Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três
Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?',
com Maria Homem (Papirus)