Alguém me pergunta: a partir de que idade
é certo levar uma criança para um velório de caixão
aberto?
Cedo, soube o que era a morte e como era um morto. Ainda pequeno, acompanhei
os enterros de familiares e amigos dos meus pais. E, sobretudo, quando
eu tinha por volta de 11 anos, meu avô se apagou progressivamente
nos meus braços, enquanto o sangue jorrava da garganta dele,
a jatos longos e descontínuos, pelo buraco aberto de sua traqueostomia
- a aorta tinha estourado, alcançada por um tumor.
Minha avó se desesperava gritando
e berrando pelo quarto. Minha mãe tentava acalmar minha avó
e evitar que ela fizesse pior do que se arrancar os cabelos. Meu pai
estava voltando para casa e fez milagres, chegou antes da ambulância,
mas, mesmo assim, tarde demais: para olhar nos olhos de meu avô
enquanto a vida o deixava, só sobrei eu.
Depois, ajudei a lavar e vestir seu
corpo. Escolhi a gravata e os sapatos. Ele foi velado em casa, durante
três dias, para que os parentes tivessem o tempo de chegar do
Centro-Itália. Durante esse tempo, várias vezes, de dia
e de noite, fiquei no quarto dele, para lhe fazer companhia.
Por isso, os mortos são para
mim presenças familiares --e singulares: acho que cada um deles
tem uma expressão própria, como se o caráter de
quem nos deixou fosse reconhecível depois da morte.
Aos 11 anos, eu ainda tinha medo do
escuro - o medo só passou quando me tornei adulto, ou seja, quando
eu tive que proteger alguém que estava com mais medo do que eu.
Mas algo mudou com a morte do meu avô: entre os monstros que povoavam
o escuro, não houve mais mortos e fantasmas - desde então,
se eles compareceram, sempre foi na luz, e foram bem-vindos.
Agora, muitos pais temem que uma experiência
precoce da morte seja impossível ou não seja boa para
as crianças. Às vezes, alguém me pergunta: até
que idade devemos esconder das crianças que alguém morreu?
A partir de que idade seria certo levar uma criança para um velório
de caixão aberto?
Não conheço nada, em psicologia
do desenvolvimento, que nos diga a partir de quando uma criança
entende o que é a morte (claro, a partir dos sete anos - estágio
operatório concreto - qualquer criança vai entender melhor
do que entre os dois e os sete). Também, nos estudos da dinâmica
afetiva do luto, não tem nada (que eu saiba) que nos diga com
certeza a partir de que idade uma criança deve poder encarar
a morte de um próximo. Os pais podem dar um google em "Luto
em Crianças" ou em "Child Bereavement": eles encontrarão
uma série de sites que oferecem conselhos honestos e bem pensados.
Mas vai ser difícil encontrar uma resposta argumentada clínica
e "cientificamente". A leitura de um famoso estudo longitudinal,
o MGH/Harvard Child Bereavement Study, tende a sugerir que as crianças
e os jovens participem das cerimônias fúnebres quando seus
pais morrem - mas, de novo, é só uma sugestão.
A decisão fica com os adultos.
E é justo que seja assim, por uma razão simples: quando
ajudamos as crianças a não enxergar a morte, não
estamos protegendo as crianças - as quais se protegem muito bem
sozinhas e são, em geral, muito mais vigorosas (mentalmente)
do que a gente imagina. Quando agimos dessa forma, repito, não
estamos protegendo as crianças, mas a "Infância",
ou seja, a visão ideal que nós, adultos, temos das crianças;
nessa visão, não há espaço nem para a morte
nem para o pensamento da morte, só há espaço para
uma encenação permanente da felicidade e do brincar, que
é a careta que nós chamamos de infância sorridente.
Mas a morte é aqui apenas um
exemplo. A lista é longa das coisas que gostaríamos de
manter afastadas de nossa visão idealizada da infância
e que, portanto, escondemos das crianças. Isso aqui, só
depois dos 14. Que 14? Só depois dos 16 ou dos 18.
Há os que tentam esconder tudo
das crianças, porque querem "preservá-las".
E há os que acham que nada deveria ser escondido das crianças,
porque tudo é "natural", tudo é "bonito",
nada é vergonhoso.
Os dois grupos são menos opostos
do que parece. Em ambos os casos, os adultos mostram coisas às
crianças ou escondem coisas delas por uma mesma razão:
para preservar sua visão de um mundo encantado e infantil, onde
todos são "felizes" e tudo é "legal".
Esse mundo não é o das crianças; é o mundo
dos sonhos dos adultos.
Enfim, voltarei ao tema por um viés
menos de Quinta-feira Santa: o que mostramos às crianças
ou escondemos delas em matéria de sexo.
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/161730-as-criancas-e-a-morte.shtml
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