Estreia amanhã, Brasil afora,
"Quincas Berro d'Água", de Sérgio Machado, inspirado
num dos romances mais bonitos (e mais lidos) de Jorge Amado, "A
Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água".
O filme é uma daquelas raríssimas obras que nos fazem
rir e sorrir da vida, do mundo e de nós mesmos, enquanto, justamente,
pensamos seriamente na vida, no mundo e em nós mesmos.
Esse milagre deve ser efeito do roteiro (do próprio Machado)
e da atuação de um conjunto de atores que todos mereceriam
ser mencionados, a começar por Paulo José, que é
Quincas, vivo e morto (e não pense que encarnar um morto seja
tarefa fácil).
Agora, nesse grupo extraordinário, quem rouba a cena é
Mariana Ximenes, no papel de Vanda, a filha que Quincas abandonou quando
deixou sua vida de funcionário "respeitável"
e caiu na farra. Quase sem palavras, com delicadas e progressivas mudanças
de seu olhar, Ximenes nos conta, de maneira inesquecível, o despertar
nela dos genes paternos.
Enfim, meu jeito de agradecer à equipe que nos oferece esse filme
foi anotar algumas reflexões que ele suscitou em mim.
1) Quase sempre, quando sonhamos em mudar de vida radicalmente, enxergamos
esse ato como a conquista de uma alforria: seremos livres - dos pais
ou, então, da mulher ou do marido que nos aprisionam. De fato,
às vezes, os outros nos controlam e nos impedem de viver, mas
não é frequente.
Em geral, nós os acusamos pela mesmice de nossa vida ("se
nos livrássemos desses tiranos, poderíamos viver plenamente"),
mas a tirania que nos oprime é a de nossa inércia e de
nossa covardia.
2) Às vezes, num casal, as exigências triviais do parceiro
são intoleráveis por parecerem absolutamente insignificantes:
tire os pés da mesa, não espalhe o jornal pelo chão
da sala nem a roupa pelo chão do quarto. Indignação:
a morte nos espreita, e eis que alguém se preocupa com as migalhas
que podem cair no sofá.
Como teria dito Sêneca, nós nascemos para coisas grandes
demais para continuarmos escravos dessas picuinhas, não é?
Problema: uma vez chutado o pau da barraca, quem garante que a "grandeza"
para a qual nascemos não se resuma em comer livremente amendoins
na cama?
3) Quincas tem razão: só teme a morte quem não
se permitiu viver, ou seja, quem viveu plenamente não tem medo
de morrer.
Mas o que é uma vida plena? Será que é a vida de
Quincas? A bebida e os amores? A fuga das responsabilidades domésticas?
Talvez o valor da farra de Quincas esteja, sobretudo, na liberdade de
viver sem se importar com o julgamento dos outros, com a boa reputação.
Para aproveitar a vida, antes de mais nada, não se preocupe com
o olhar reprovador dos demais.
4) Reli a ode 1.11 de Horácio, onde está o famoso "carpe
diem" (colha o dia). Horácio sugere que não apostemos
nossas fichas no futuro, mas nos preocupemos com o agora, com o hoje.
Tudo bem, mas será que viver como se não houvesse amanhã
significa necessariamente perder-se (ou encontrar-se) nos prazeres imediatos
da carne? Não é nada óbvio. Um cristão poderia
concordar com Horácio, entendendo o "carpe diem" assim:
é preciso estar em paz com Deus hoje, agora, não amanhã.
5) Então, o que é viver plenamente: gozar, rezar, meditar,
cultivar-se?
Talvez seja possível responder sem tomar partido.
Eis uma anedota da qual Quincas teria gostado. O rei da Itália,
Vittorio Emanuele 2º, passeava a cavalo pelo campo de seu Piemonte
nativo.
Chegou à fazendola de um camponês, que fez grande festa
e o convidou à mesa.
Vittorio Emanuele elogiou o vinho do camponês, o qual comentou:
"Isto não é nada. Sua Majestade deveria experimentar
o de três anos atrás". O rei replicou: "E esse
vinho de três anos atrás acabou?". "Não
acabou, Majestade", respondeu o homem, "mas a gente guarda
o que sobrou para as grandes ocasiões".
Pois é, quando Mefisto comprou a alma de Fausto, ele impôs
a seguinte condição: Fausto viveria até o dia em
que, diante da beleza do que ele estaria vivenciando, fosse levado a
pedir que o átimo parasse. Quando isso acontecesse, ele morreria,
seu tempo acabaria.
Há várias interpretações dessa passagem
do "Fausto", de Goethe (1, 699-706); uma delas é que
Fausto só poderia morrer uma vez que ele descobrisse o segredo
da vida. E esse segredo é que, para viver plenamente, é
preciso reconhecer que, com ou sem o rei sentado à mesa, com
farra ou sem farra, na alegria ou na tristeza, cada momento presente
é sempre uma grande ocasião.
Fonte:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2005201021.htm
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