Tema cresce no Brasil com a ampliação dos
estudos e pesquisas no ambiente acadêmico.
Na prática clínica, a abordagem sobre religião
ainda gera constrangimento na relação entre profissionais
de saúde e pacientes. Resistência provocada pelo
despreparo e por aspectos históricos tende a diminuir com
as evidências científicas que comprovam a melhoria
da qualidade assistencial
Por Lucimar Brasil (Gente de Conteúdo
Comunicação)
29/05/2019

Foto: Maurício Mazzei
A humanização das relações no cuidado
à saúde, que leva a atendimentos cada vez mais individualizados,
respeitando desejos e valores das pessoas, acende os holofotes
sobre o impacto da espiritualidade na busca por mais qualidade
de vida. Milhares de estudos realizados em diversas partes do
mundo, sendo dezenas deles na Universidade Federal de Juiz de
Fora, mostram que os níveis de envolvimento religioso e
espiritual interferem significativamente na saúde e, portanto,
tendem a ocupar mais espaço no diálogo entre profissionais
da área e pacientes, embora o assunto ainda cause constrangimento.
“Atualmente, 84% da humanidade têm uma filiação
religiosa, ou seja, estão ligados a uma religião
específica. Entre os 16% que não têm religião,
a maioria possui algum tipo de crença, seja em Deus, seja
em um poder superior”, explica o fundador e coordenador
do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde
(Nupes), da Faculdade de Medicina da UFJF, o psiquiatra Alexander
Moreira-Almeida. “Como profissionais, nossa função
é conhecer tudo que impacta a saúde das pessoas,
como suas condições socioeconômicas, familiares
e religiosas. Não é nosso papel impor uma religião
ou não-religião, mas conhecer o nosso paciente para
entender o que pode ser usado de útil em sua plena recuperação,
na promoção de sua saúde. Isto pode ter origem
em suas crenças, como buscar apoio em grupos de sua religião,melhorar
sua inserção social, valorizar o próprio
corpo, a própria vida”, acrescenta Alexander.

O médico psiquiatra Alexander Moreira-Almeida
(Foto: Maurício Mazzei)
Apesar de não haver uma só cultura na história
da humanidade, em qualquer época ou era, em que a espiritualidade
não estivesse presente, o assunto ainda pode ser considerado
novidade no meio acadêmico brasileiro. Isto explica de certo
modo porque poucos são os profissionais da saúde,
como médicos e psicólogos, por exemplo, que fazem
esta abordagem em seus consultórios. Boa parte não
se sente preparada ou suficientemente informada. Nos Estados Unidos,
84% das faculdades de medicina, por exemplo, já incluíram
a disciplina Saúde e Espiritualidade em seus currículos,
enquanto no Brasil este movimento está apenas começando.
“Costumo brincar que o grande tabu no ambiente acadêmico
é religião.Todo mundo fica desconcertado quando
se toca no assunto. Do mesmo jeito que se aborda hoje com naturalidade
a sexualidade, que já foi tabu no passado, é preciso
abordar a espiritualidade, sempre com foco centrado no paciente,
ou seja, no que importa para ele”, observa o coordenador
do Nupes. Parte deste estranhamento, segundo Alexander, se deve
à tese da secularização, acolhida fortemente
na academia sob o incentivo de pensadores como Karl Marx, Sigmund
Freud e Auguste Comte, em que a espiritualidade seria superada
pela razão, como se houvesse uma necessária oposição
entre elas. O que acabou não se comprovando na prática.
Considerado como um dos quatro cientistas brasileiros mais influentes
no mundo, o cardiologista Alvaro Avezum, diretor da Divisão
de Pesquisa do Instituto Dante Pazzanes e de Cardiologia, em São
Paulo, acredita que, comparativamente há dez anos, já
se discute com muito mais abertura o tema saúde e espiritualidade
no Brasil. Ao participar de congresso sobre o assunto em Juiz
de Fora, ele listou, junto a um grupo de estudantes, a existência
de 45 Ligas Acadêmicas, considerando o universo de cerca
de 300 escolas médicas. “Em um curto espaço
de tempo a relação saúde e espiritualidade
tem se disseminado para o bem maior que é a melhoria da
qualidade assistencial”, observou o pesquisador.

O cardiologista Álvaro Avezum (Foto:
Maurício Mazzei)
Os principais achados dos estudos sobre
saúde e espiritualidade
- Pessoas que frequentam núcleos religiosos, pelo menos
uma vez por semana, tendem a morrer 30% menos
que os que não frequentam, mesmo controlando para variáveis,
como gravidade da doença, nível socioeconômico,
etc.
- Níveis de depressão tendem a
ser menores e a recuperação tende a ser mais rápida
em pessoas que têm maior envolvimento religioso.
- Estudo com 12 mil universitários do Brasil identificou
que os que participavam de um grupo religioso apresentavam metade
do uso de álcool, tabaco e drogas ilícitas.
- O maior estudo no mundo feito sobre suicídio mostrou
que pessoas que frequentavam grupo religioso uma vez por semana
morreram sete vezes menos por suicídio.
- De modo geral, o maior envolvimento religioso está relacionado
à melhor qualidade de vida e ao bem-estar.
- Quando a espiritualidade é abordada em uma consulta
médica, aumenta em mais de 50% a chance de a pessoa
responder que o atendimento que ela teve foi “muito bom
e ótimo”.
- O uso negativo da religiosidade (enfatizando um comportamento
passivo, por exemplo) está associado a mais depressão
e pior qualidade de vida.
Florescimento, a mais nova meta para a saúde
integral
Ele esteve em Juiz de Fora como convidado especial
da segunda edição do Congresso Internacional sobre
Saúde e Espiritualidade (Conupes), organizado pelo Núcleo
de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde da UFJF. Professor
Titular de Epidemiologia e Estatística da Universidade de
Harvard e um dos principais nomes da estatística no mundo,
Tyler Vanderw e ele está propondo uma nova meta para o alcance
da integralidade em saúde: o florescimento.
Mas o que é florescer? “O florescimento é o
estado de completo bem-estar sob todos os aspectos da vida de uma
pessoa. Sobre o que buscamos como indivíduos e sobre aquilo
que deveríamos buscar como sociedade”, explicou o pesquisador
norte-americano em sua palestra no Conupes. “Na maior parte
do nosso trabalho na medicina e na saúde pública,
trabalhamos com doenças e fatores de risco. Esse trabalho
é importante e necessário, mas precisamos ampliar
a nossa visão para aspectos positivos: florescimento, resiliência”,
acrescentou Tyler.
“Gosto de usar o exemplo da manga para explicar esse conceito”,
observa o coordenador do Nupes, Alexander Moreira-Almeida. “Uma
semente de manga é ótima, mas ela fica melhor ainda
quando vira uma mangueira. Se morrer como semente perde todo aquele
potencial. Às vezes, nós somos assim. O florescimento
tem a ver com o eudaimonia em Aristóteles, que é
desenvolver plenamente nossos potenciais”, diz. O desafio
está em criar métricas confiáveis para relacionar
as variáveis de bem-estar físico, mental, emocional,
espiritual, acrescidas de novidades, como propósito de vida,
significado, caráter e virtudes.
“O professor Tyler está estudando como medir esse
florescimento humano, para as pesquisas começarem a acontecer;
para que médicos, psicólogos e demais profissionais
de saúde possam usar esses critérios e identificar
fatores que fomentam todo o potencial humano”, explica Alexander.
Muitas vezes, inclusive, o nível de saúde física
compete com outros aspectos do florescimento humano. É o
caso, como citou Tyler, de um renomado chef de cozinha que enfrenta
um câncer de língua. A retirada do órgão
resolve o problema, mas coloca fim em sua carreira. “Quais
dimensões da saúde o paciente considera mais importante?
Isso seria essencial para se chegar a uma decisão clínica,
acessível, baseada nos valores do paciente”, ponderou
o pesquisador que questiona: “por que sabemos mais sobre os
determinantes das doenças cardiovasculares do que de significado
e propósito de vida se são também dimensões
desejáveis por toda a humanidade?”.
Há que se considerar ainda que os aspectos do florescimento
afetam diretamente a saúde física. Segundo Tyler,
metanálises mostraram que o propósito reduz a mortalidade
em 17% e a satisfação com a vida em 12%. Já
o isolamento social e a solidão aumentam a mortalidade em
30%. “Tudo o que medimos determina o que a gente discute,
busca e constrói. Por isso, devemos começar a avançar
no florescimento”, concluiu o pesquisador.