
Médium faz um passe em alguns espíritas
que assistem a sessão em que Carlos Bcceli psicografa - Isadora
Brant/Folhapress
Nas celebrações
dos 150 anos da morte —ou desencarne, como creem os adeptos
do espiritismo— do escritor francês Allan Kardec, considerado
o pai da doutrina espírita, expoentes da crença afastam
o médium João de Deus de suas fileiras, falam de acirramentos
dos conflitos interpessoais da atualidade e reforçam a sinergia
da filosofia com os avanços científicos.
Kardec, cujo nome de batismo é
Hippolyte Léon Denizard Rivail, foi o responsável
pela publicação do pentateuco espírita (conjunto
de cinco obras literárias), pilar da filosofia que nasceu
a partir da investigação científica de fenômenos
chamados "mesas girantes", motivo de inquietação
na Europa no século 19.
"Ele pensou ter encontrado
nas manifestações das 'mesas girantes' evidências
robustas da imortalidade alma, através da identidade dos
espíritos comunicantes", afirma Dora Incontri, jornalista,
doutora em educação pela USP e considerada uma das
maiores especialistas em Kardec do país.
Ainda no primeiro semestre deste ano estão previstas a estreia
de um documentário e de um filme a respeito do chamado codificador
da doutrina espírita.
Dora, com Karim Soumaïla, assina
o roteiro de "Em Busca de Kardec", o documentário.
"A filosofia que ele estabeleceu, que é o espiritismo,
que ele não queria que fosse uma religião, foi construída
em diálogo com espíritos", afirma.
Já o filme dramatizado é
baseado na biografia escrita pelo jornalista Marcel Souto Maior,
que mostra a trajetória do professor Rivail até transformar-se
no "pai do espiritismo".
Segundo Souto Maior, a obra de Kardec
é estudada e colocada em prática hoje em cerca de
15 mil centros espíritas pelo país, tendo como máxima
a frase cunhada como a essência da doutrina: "Fora da
caridade não há salvação".
"Ela [a obra] sustenta uma
rede de solidariedade cada vez mais integrada e ativa. É
muito atual e cada vez mobiliza mais gente em torno das lições
que difundiu", diz ele.
Souto Maior afirma ainda que, em
nenhum país o espiritismo de Kardec ganhou tantos adeptos
quanto no Brasil.
Um dos grandes responsáveis
por isso foi o médium Chico Xavier (1910-2002).
Além de ações
de caridade, o mineiro ganhou fama ao psicografar milhares de cartas
e publicar mais de 400 obras.
Em 2010, segundo o Censo mais recente
do IBGE, 3,8 milhões de pessoas se declararam seguidores
da doutrina no Brasil. É o secto com maior índice
de ensino superior (31,5%) e a maior taxa de alfabetização
(98,6%).
Nesse total, porém, não
estão outras correntes reencarnacionistas existentes no Brasil,
como o candomblé e a umbanda, das quais os kardecistas buscam
se diferenciar.
Tampouco estão incluídos
aqueles que veem a doutrina como filosofia e não religião,
ou que a seguem em paralelo com religiões como a católica.
Os espíritas também
vêm, desde o final de 2018, empregando esforços para
explicar que o médium João de Deus, 77, preso em Goiânia
(GO) sob a suspeita de abuso sexual e outros crimes, não
pode ser considerado um espírita.
"O próprio médium
já se declarou não espírita. É preciso
separar a pessoa da doutrina. Mesmo que ele fosse espírita,
dentro da nossas imperfeições, podemos cometer erros,
mas os ensinamentos apontam para seguir corretamente", diz
Geraldo Campetti, vice-presidente da FEB (Federação
Espírita do Brasil).
Ele diz que "segundo Kardec,
uma coisa é ser médium, um instrumento entre o plano
espiritual e o material, outra é o uso que se faz da mediunidade,
que pode servir tanto ao bem quanto ao mal. Pode-se trabalhar pelo
próximo ou por interesses particulares".
Detalhe da casa de Chico Xavier, que se transformou
em museu e recebe caravanas religiosas - Isadora Brant/Folhapress
"É claro que é
lamentável tudo o que aconteceu, é um alerta para
que fiquemos cada vez mais vigilantes. O médium não
é um espírito perfeito, pelo contrário, é
um espírito bem endividado."
Na visão dos espíritas,
o clima prevalente de atrito entre as pessoas tem relação
com o que chamam de "momento de transição",
que é marcado por questionamentos de valores.
Campetti avalia que "estamos
vendo pessoas perturbadas querendo conturbar" e pessoas embarcando
em processos de precipitação de opinião, de
tomada de atitude intempestiva e que acabam favorecendo a polarização
e tencionando as relações.
"O espiritismo leva a mensagem
de paz e de esperança, e somos convocados a agir. É
um momento decisivo, crucial, com o recrudescimento dos enfrentamentos,
e não há como ficar parado", diz.
"Precisamos dar apoio para
que as pessoas entendam o que é essencial na vida. A doutrina
se prepara para um momento de regeneração, para dar
uma base às pessoas para trabalharem por seu restabelecimento
moral."
Para o jornalista André Trigueiro,
um dos palestrantes a respeito do espiritismo mais conhecidos do
país, "para os espíritas, estaríamos deixando
a categoria de 'mundo de provas e expiações' —onde
a dor e o sofrimento ainda predominam— para 'mundo de regeneração'
--onde a evolução ética e moral determinariam
vivências menos dolorosas que as atuais".
"O agravamento das tensões,
no nível em que experimentamos hoje, costuma marcar de forma
aguda esses períodos de transição. A doutrina
espírita previu esse momento conturbado, e assinalou a importância
de seus seguidores se pautarem sempre pelas lições
morais do evangelho, especialmente a prática da caridade",
afirma.
Os avanços científicos
em torno das manipulações genéticas, do sequenciamento
do DNA e também as novidades tecnológicas parecem
não levar desconforto aos espíritas, mas, sim, entusiasmo,
uma vez que a doutrina afirma se ancorar no respeito à ciência.
"O espírita, ao se considerar
cientista, tem de ser amigo do avanço da ciência. Outra
visão seria sociologicamente tentar entender se os espíritas
são amigos da ciência, mas aí não seria
uma postura filosófica", diz o professor da USP Alysson
Mascaro.
"Isso é postulado por
Kardec: 'A ciência acima de tudo'. É um postulado,
inclusive, do iluminismo do século 18, aplicado nessa leitura
de Kardec no século 19."
Trigueiro diz que "Kardec utilizou
a metodologia científica para eliminar o risco de fraudes
e mistificações".
"A atualidade do espiritismo
se manifesta pela lógica de seus postulados [de Kardec] que
revelam as leis que regem a vida e o universo. É o que se
convencionou chamar de fé raciocinada", afirma.
"Assim, os princípios
básicos da doutrina permanecem perenes na linha do tempo."
Quem foi Allan Kardec
Nascimento
Em 3 de outubro de 1804, em Lyon, na França, como Hippolyte
Léon Denizard Rivail, em família católica
Pseudônimo
A adoção do pseudônimo não é consensual,
mas uma corrente defende que foi como um marco de um novo período
em sua vida intelectual, a partir do espiritismo
Estudos
Estudou até a adolescência na escola de Pestalozzi,
no Castelo de Yverdon, na Suíça, o que o influenciou
a adotar o livre pensamento baseado na razão
Ele foi professor e tradutor, com profundo conhecimento
da língua alemã, e amante dos estudos filosóficos
Como pedagogo, trabalhou pela democratização
do ensino público e publicou livros acadêmicos que
proporcionaram a ele fama entre os estudiosos da época
Espiritualidade
Por volta de 1855, começou a se interessar e participar das
“mesas girantes”, como eram conhecidos os fenômenos
de movimentação de objetos (mesas, em geral) recorrentes
na Europa daquela época
Aprofundou-se no estudo do fenômeno ao perceber
inteligência nas repostas obtidas pelas batidas das mesas
e, depois, por psicografias de médiuns
Produção
Publicou cinco livros a partir de 1857, iniciando com “O Livro
dos Espíritos”
Morte
Em 31 de março de 1869
Seu corpo foi enterrado em um mausoléu,
em Paris, onde está a inscrição: “Nascer,
morrer, renascer ainda e progredir sem cessar, tal é a lei”
Fonte: Federação
Espírita do Brasil, e os pesquisadores Dora Incontri e Marcel
Souto Maior