08/10/2008
Como a ciência justifica as manifestações
de contato com espíritos e por que algumas pessoas desenvolvem
o dom
por Suzane Frutuoso
fotos Murillo Constantino
O espiritismo é seguido por 30 milhões
de pessoas no mundo. O Brasil é a maior nação espírita
do planeta. São 20 milhões de adeptos e simpatizantes,
segundo a Federação Espírita Brasileira –
no último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) 2,3 milhões declararam seguir os preceitos do francês
Allan Kardec, o fundador da doutrina. A mediunidade, popularizada pelas
psicografias de Chico Xavier, em Uberaba (MG), ganhou visibilidade nos
últimos anos na mesma proporção em que cresceu
o espiritismo. Mas nada se compara ao poder da mídia atual, que
permite debater os ensinamentos da religião por meio de livros,
programas de tevê e rádio. Os romances com temática
espiritualista de Zíbia Gasparetto, por exemplo, são presença
constante nas listas de mais vendidos.
Embora não haja estatísticas de quantos entre os praticantes
são médiuns, o que se observa é uma quantidade
maior de pessoas que afirmam possuir o dom. O interesse pela religião
fundamentada por Kardec (por isso também chamada de kardecismo)
é confirmado pelo recorde de público do filme Bezerra
de Menezes – o diário de um espírito, do cineasta
Glauber Filho: 250 mil espectadores, desde o lançamento nos cinemas,
em 29 de agosto. Um número alto para uma produção
nacional. O longa, com o ator Carlos Vereza (também praticante
do espiritismo) no papel-título, conta a história do cearense
que ficou conhecido como “médico dos pobres”, se
tornou ícone da doutrina e orienta médiuns em centenas
de centros a se dedicar ao bem e à caridade.
PSICOGRAFIA
Instrumento por meio dos livros
A psicóloga Marilusa Vasconcelos, 65 anos, de São Paulo,
é conhecida no espiritismo pela sua vasta literatura psicografada.
Em 40 anos de dedicação à mediunidade, publicou
61 livros. Seu orientador é o espírito do poeta Tomás
Antonio Gonzaga, que participou da Inconfidência Mineira. A dedicação
à psicografia levou Marilusa a fundar em 1985 a Editora Espírita
Radhu, sigla para renúncia, abnegação, desprendimento
e humildade, a base dos ensinamentos na doutrina. Ela reúne outros
dons, como ouvir, falar e enxergar espíritos e ser instrumento
deles na pintura mediúnica. “Os vários tipos surgiram
desde a infância”, conta Marilusa, que nasceu numa família
espírita. “O controle da mediunidade é indispensável.
O médium não é joguete do espírito. Eles
interagem, num acordo mútuo de tarefa.”
Os espíritas dizem que todas as pessoas têm algum grau
de mediunidade. Qualquer um seria capaz de emitir pensamentos em forma
de ondas eletromagnéticas que chegariam a outros planos. O que
torna algumas pessoas especiais, segundo os praticantes, a ponto de
se transformarem em canais de comunicação com os mortos,
é uma missão – designada antes mesmo de nascerem,
determinada por ações em vidas anteriores e que tem na
caridade o objetivo final. “É uma tarefa em favor da evolução
de si mesmo e da ajuda ao próximo”, diz Julia Nesu, diretora
do departamento de doutrina da União das Sociedades Espíritas
do Estado de São Paulo. Fenômenos relacionados a pessoas
que falavam com mortos e envolvendo objetos que se mexiam são
relatados desde o século XVII, tanto na Europa quanto nas Américas,
mas hoje cientistas tentam compreender o fenômeno. Algumas linhas
de pesquisa mostram que o cérebro dos médiuns é
diferente dos demais.
São cinco os meios de expressão
da mediunidade.
A psicografia, que consagrou Chico Xavier, é a mais conhecida.
Nela, o médium escreve mensagens e histórias que recebe
de espíritos. Estaria sob o controle deles o que as mãos
transcrevem. A vidência permite enxergar os mortos que não
conseguiram se desvencilhar da Terra ao não aceitarem a morte
ou que aparecem para enviar recados a entes queridos. Na psicofonia,
o sensitivo é capaz de ouvir e reproduzir o que os espíritos
dizem e pedem. A psicopictografia, ou pintura mediúnica, permite
ao médium ser instrumento de artistas desencarnados (termo usado
pela doutrina para designar mortos). A mediunidade da cura é
responsável pelas chamadas cirurgias espirituais. Não
é incomum um mesmo indivíduo reunir mais de um tipo de
dom.

VIDÊNCIA
Ver e auxiliar aqueles que estão em outro plano
Aos cinco anos, o chefe de faturamento hospitalar Ivanildo Protázio,
de São Paulo, 49 anos, pegava no sono com o carinho nos cabelos
que uma senhora lhe fazia todas as noites. Descobriu tempos depois que
era a avó, morta anos antes. Aos 19 anos, os espíritos
já se materializavam para ele. “Nunca tive medo. Sempre
me pareceu natural.” A mãe, que trabalhava na Federação
Espírita, o encaminhou para as aulas em que aprenderia a lidar
com o dom. Hoje, Protázio é professor de educação
mediúnica. Essa é uma parte da sua missão. A outra
é orientar os espíritos que lhe pedem auxílio para
entender o que aconteceu com eles. A oração é o
remédio. “Os espíritos superiores me ensinaram a
importância da caridade para nossa própria evolução.”
A reportagem de ISTOÉ presenciou uma manifestação
mediúnica em Indaiatuba, interior de São Paulo. O tom
de voz baixo e os gestos delicados de Solange Giro, 46 anos, sugeriam
que ela carrega certa timidez ao expor a própria vida numa conversa
com um estranho. Cerca de duas horas depois, porém, é
difícil acreditar no que os olhos vêem. Diante de uma tela
em branco, sobre uma mesa improvisada com dezenas de tubos de tinta,
a mulher começa a pintar um quadro na seqüência de
outro. O tempo gasto em cada um não passa de nove minutos. As
obras são coloridas e harmoniosas. “Nunca fiz aula de artes.
Mal conseguia ajudar meus filhos com os desenhos da escola”, diz,
minutos antes da apresentação. A discreta Solange dá
lugar a uma pessoa que fala alto, canta e encara os interlocutores nos
olhos, com ar desafiador. A assinatura nas telas não leva seu
nome, mas de artistas famosos – e já mortos –, como
Monet, Mondrian e Tarsila do Amaral. Seria uma interpretação
digna de uma atriz? Talvez. O que difere o momento de uma encenação
é subjetivo e dá margem a dezenas de explicações
– convincentes ou não. Talvez seja possível encontrar
respostas no que a artista diz a cada uma das pessoas da platéia
presenteadas com um dos dez quadros produzidos na noite. Enquanto entregava
a obra, ela desferia características e situações
de vida de cada um absolutamente desconhecidas dela. O mentor que a
guia é o médico holandês Ernst, que viveu no século
XVII. A sensitiva garante que era ele, não ela, quem estava presente
na pintura dos quadros.
Nem sempre é fácil aceitar a
mediunidade, que pode causar medo quando começa a se manifestar.
“Ainda hoje não gosto quando vejo o possível desencarne
de alguém. Nestas horas, preferia não saber”, conta
a psicóloga Marilusa Moreira Vasconcelos, 65 anos, de São
Paulo, que psicografa. O médium de cura Wagner Fiengo, analista
fiscal paulistano, 37 anos, chegou a se afastar da doutrina. “Aos
13 anos não entendia por que presenciava aquilo.” Para
manter a sanidade e o equilíbrio, as pessoas que possuem dons
e querem fazer parte da religião espírita precisam se
dedicar à educação mediúnica. O curso leva
cinco anos. Inclui os ensinamentos que Allan Kardec compilou no Livro
dos espíritos – a obra que deu base ao entendimento da
doutrina – e no Livro dos médiuns – que explica quais
são os tipos de mediunidade, como eles se manifestam e os cuidados
a serem tomados. Entre eles, o combate a falhas de comportamento, como
vaidade, orgulho e egoísmo. O espiritismo prega que as imperfeições
da personalidade atraem espíritos com a mesma vibração.
“O pensamento é tudo. Aqueles que pensam positivo atrairão
o que é semelhante. O mesmo acontece com o pensamento negativo
e os vícios. Quem gosta de beber, por exemplo, chama a companhia
de espíritos alcoólatras”, afirma o professor de
educação mediúnica Ivanildo Protázio, 49
anos, de São Paulo, que tem o dom da vidência.
PSICOFONIA
Falar o que os espíritos querem dizer
A intuição do servidor público Geraldo Campetti,
42 anos, de Brasília, começou na infância. Ele tinha
percepções inexplicáveis, das quais mais ninguém
se dava conta. Era como se absorvesse sentimentos que não eram
seus. Apenas identificava que existia algo além do que seus olhos
enxergavam. Até que as sensações começaram
a tomar forma. Campetti passou a ouvir súplicas de ajuda. De
espíritos, inconformados com a morte. Aos 29 anos, não
se assustou. De família kardecista, conhecia a mediunidade. “Mas
sabia que precisava estudar para manter o equilíbrio”,
diz. Hoje diretor da Federação Espírita Brasileira,
afirma ter controle sobre o dom de ouvir e transmitir recados dos mortos.
Eventualmente, um espírito pede uma mensagem à pessoa
com quem ele conversa. “Isso é espontâneo, não
da minha vontade.”
Imaginar que convivemos no cotidiano com pessoas que estão mortas
vai além da compreensão sobre a vida – pelo menos
para quem não acredita em reencarnação. Mas até
na ciência já existem aqueles que conseguem casar racionalidade
com dons espirituais. Esses especialistas afirmam que a mediunidade
é um fenômeno natural, não sobrenatural. E que o
mérito de Allan Kardec foi explicar de maneira didática
o que sempre esteve presente – e registrado – desde a criação
do mundo em todas as religiões. O que seria, dizem os defensores
da doutrina, a anunciação do Anjo Gabriel a Maria, mãe
de Jesus, se não um espírito se comunicando com uma sensitiva?
Apesar desse contato constante, os mortos, ou desencarnados,
como preferem os espíritas, não aparecem em “carne
e osso”. A ligação com o mundo dos vivos seria possível
graças ao perispírito, explica Geraldo Campetti, diretor
da Federação Espírita Brasileira.
“Ele é o intermediário entre o
corpo e o espírito. A polpa da fruta que fica entre a casca
e o caroço.”
O perispírito seria formado por substâncias
químicas ainda desconhecidas pelos pesquisadores terrenos, garantem
os adeptos do espiritismo.
“É a condensação do que
Kardec batizou como fluido cósmico universal”, afirma
o neurocirurgião Nubor Orlando Facure, diretor do Instituto
do Cérebro de Campinas.
Nas quatro décadas em que estuda a manifestação
da mediunidade no cérebro, Facure mapeou áreas cerebrais
que seriam ativadas pelo fluido.
CURA
Cirurgias sem dor nem sangue
O primeiro espírito a se materializar para o analista fiscal
Wagner Fiengo, 37 anos, de São Paulo, foi de um primo. Ele tinha
dez anos, teve medo e se afastou. Mas, na juventude, um tio, seguidor
da doutrina, avisou que era hora de ele se preparar para a missão
que lhe fora reservada. Por meio da psicografia, seu guia espiritual,
o médico Ângelo, informou que teriam um compromisso: curar
pessoas. Ele não foi adiante. Uma pancreatite surgiu sem que
os médicos diagnosticassem os motivos. Há quatro anos,
seu guia explicou que as doenças eram ajustes a erros que Fiengo
havia cometido numa vida passada. A missão era a forma de equilibrar
a saúde e a alma. Em 2004, iniciou as cirurgias espirituais.
Ele diz que não é uma substituição ao tratamento
convencional. “É um auxílio na cura de fatores emocionais
e físicos.”
Comprovar cientificamente a mediunidade também
é objetivo do psiquiatra Sérgio Felipe Oliveira, professor
de medicina e espiritualidade da Faculdade de Medicina da USP e membro
da Associação Médica-Espírita de São
Paulo. Com exames de tomografia, ele analisou a glândula pineal
(uma parte do cérebro do tamanho de um feijão) de cerca
de mil pessoas. “Os testes mostraram que aqueles com facilidade
para manifestar a psicografia e a psicofonia apresentam uma quantidade
maior do mineral cristal de apatita na pineal”, afirma Oliveira.
Ele também atende, no Instituto de Psiquiatria do Hospital das
Clínicas de São Paulo, casos de pacientes de doenças
como dores crônicas e epilepsia que receberam todos os tipos de
tratamento, não tiveram melhora e relatam experiências
ligadas à mediunidade. “Somamos aos cuidados convencionais,
como o remédio e a psicoterapia, a espiritualidade, que vai desde
criar o hábito de orar até a meditação.
E os resultados têm sido positivos.” Uma pesquisa de especialistas
da USP e da Universidade Federal de Juiz de Fora, publicada em maio
no periódico The Journal of Nervous and Mental Disease, comparou
médiuns brasileiros com pacientes americanos de transtorno de
múltiplas personalidades (caracterizado por alucinações
e comportamento duplo). Eles concluíram que os médiuns
apresentam prevalências inferiores de distúrbios mentais,
do uso de antipsicóticos e melhor interação social.
A maior parte dos cientistas acredita
que a mediunidade nada mais é do que a manifestação
de circuitos cerebrais.
Alguns já seriam explicáveis, como os estados de transe.
Pesquisas da Universidade de Montreal, no Canadá, e da Universidade
da Pensilvânia, nos Estados Unidos, comprovaram que, durante a
oração de freiras e monges católicos, a área
do cérebro relacionada à orientação corporal
é quase toda desativada, o que justificaria a sensação
de desligamento do corpo. Os testes usaram imagens de ressonâncias
magnéticas e tomografias feitas no momento do transe.
A teoria seria aplicável ao transe mediúnico, quando o
médium diz incorporar o espírito e não se lembra
do que aconteceu. Pesquisadores da Universidade de Southampton, na Inglaterra,
estudaram pessoas que estiveram entre a vida e a morte e relataram se
ver fora do próprio corpo durante uma operação
ou entrando em contato com pessoas mortas. Os estudiosos concluíram
se tratar de um fenômeno fisiológico produzido pela privação
de oxigênio no cérebro. Trabalhando sob stress, o órgão
seria também inundado de substâncias alucinógenas.
As imagens criadas pela mente seriam apenas a retomada de percepções
do cotidiano guardadas no inconsciente.
PSICOPICTOGRAFIA
Milhares de quadros pintados
Criada numa família católica, Solange Giro, 46 anos, de
Parapuã, interior de São Paulo, teve o primeiro contato
com o espiritismo aos 20 anos, ao conhecer o marido. Ele, que perdera
uma noiva, buscava o entendimento da morte. Já casada e com dois
filhos, passou a sofrer de depressão. Encontrou alívio
na desobsessão (trabalho que libertaria a pessoa de um espírito
que a domina). A mediunidade dava os primeiros sinais. Logo passou a
ouvir e ver espíritos. O dom da psicografia veio em seguida.
Era um treino para ser iniciada na pintura mediúnica. “Pintei
cinco mil quadros no primeiro ano. Estão guardados. Não
tive autorização para mostrálos”, conta Solange,
que diz nunca ter estudado artes. Nos últimos 13 anos, ela recebeu
aval de seu mentor para vender os quadros. O dinheiro é revertido
para a caridade.
O psiquiatra Sérgio Felipe Oliveira rebate a incredulidade. “Se
uma pessoa está em cirurgia numa sala e consegue descrever em
detalhes o que ocorreu em um ambiente do outro lado da parede, é
possível ser apenas uma sensação?” Essa é
uma pergunta que nenhuma das frentes de pesquisa se arrisca –
ou consegue – a responder com exatidão. Da mesma maneira
que todos os presentes à sessão de pintura em Indaiatuba
saíram atônicos, sem conseguir explicar como alguém
que conheceram numa noite foi capaz de decifrar suas angústias
mais inconfessáveis.
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