21/09/2008
por Juliana Rocha Barroso
As sementes da Justiça
Restaurativa já estavam lançadas. Alguns magistrados desenvolviam
projetos localmente, fora criado, em 13 de agosto de 2004, o Núcleo
de Estudos em Justiça Restaurativa na Associação
dos Juízes dos Estado do Rio Grande do Sul (Ajuris), espaço
que passou a reunir pessoas e promover leituras e reflexões sobre
o tema. Mas o grande impulso às iniciativas aconteceu quando,
em 25 de maio de 2005, o Ministério da Justiça (MJ), através
da Secretaria de Reforma do Judiciário (SRJ), firmou um acordo
de cooperação técnica internacional com o Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), denominado
"Projeto BRA/05/009 – Promovendo Práticas Restaurativas
no Sistema de Justiça Brasileiro".
O 11º Período de Sessões da Comissão
de Prevenção do Crime e Justiça Penal, promovido
pelas Nações Unidas, de 16 a 25 de abril de 2002, na Áustria,
teve como tema principal a Reforma do Sistema da Justiça Penal.
Como resultado foi publicada uma declaração, em que foi
decidido a todos os países-membros o estabelecimento de diretrizes
e critérios de aplicação de programas de justiça
restaurativa pelos respectivos governos. “Nesse sentido, o PNUD,
como parte do sistema Nações Unidas, apoiou a SRJ na adaptação
do modelo de justiça restaurativa ao contexto brasileiro, no
escopo das ações de ampliação do acesso
à Justiça”, declarou o órgão.
Com o orçamento de noventa mil dólares,
foram apoiados três projetos-piloto no Brasil: na Vara da Infância
e da Juventude da Comarca de São Caetano do Sul (SP); na 3ª
Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre (RS), com competência
para executar as medidas sócio-educativas; e no Juizado Especial
Criminal do Núcleo Bandeirantes, em Brasília (DF).
Implementados com base nos princípios da JR,
cada projeto fez uso de práticas restaurativas distintas. Nos
dois primeiros, a JR foi aplicada em parceria com a Secretaria de Estado
da Educação (SEE), em casos envolvendo crianças
e adolescentes. O procedimento adotado foi o círculo restaurativo.
A capacitação dos facilitadores foi realizada pela organização
Comunicação Não-Violenta (CNV-Brasil) e das lideranças
educacionais, pelo Centro de Criação de Imagem Popular
(CECIP). Em Brasília, a JR foi aplicada a crimes de menor potencial
ofensivo praticados por adultos. A Escola da Magistratura do DF realizou
a capacitação em conhecimentos teóricos e práticos
no procedimento de mediação vítima-ofensor, aplicada
pelo juiz André Felipe Gomma de Azevedo.
Além dos pilotos, outra parte da execução
do projeto teve cunho teórico e se deu com a publicação
de Justiça Restaurativa – Coletânea de artigos, primeiro
livro em português com uma compilação de idéias
e reflexões sobre justiça restaurativa de autores nacionais
e internacionais. Outras duas publicações relacionadas
saíram na seqüência: Acesso à Justiça
por Sistemas Alternativos de Administração de Conflitos
(SRJ/MJ – 2005) e Novas direções na Governança
da Justiça e da Segurança (SRJ/MJ – 2006). SRJ e
PNUD também realizaram, em junho de 2005, a Conferência
Internacional Acesso à Justiça por Meio de Alternativas
de Resolução de Conflitos.
Para promover capacitação, pesquisas e
avaliação, o Projeto BRA/05/009 passou por uma revisão
em dezembro de 2005, incluindo como agências implementadoras a
Ajuris, a Escola da Magistratura do DF e o Instituto Latino-Americano
das Nações Unidas para a Prevenção do Delito
e Tratamento do Delinqüente (Ilanud). A Ajuris realizou uma pesquisa
de documentação e avaliação sobre a implementação
das práticas de JR no âmbito da execução
de medidas socioeducativas na cidade de Porto Alegre e o Ilanud realizou
a avaliação dos três projetos-pilotos. Com a assinatura
do "Projeto BRA/05/036 – Fortalecimento da Justiça
Brasileira" foi realizada a capacitação, a supervisão
e a avaliação dos operadores de práticas restaurativas
nos três projetos (confira matéria sobre avaliações
dos pilotos de JR).
De 2003 a 2005, Renato Campos Pinto de Vitto licenciou-se
da Procuradoria do Estado de São Paulo para assessorar os, então,
ministro da justiça Márcio Thomaz Bastos, e o secretário
da SRJ, Sérgio Renault. Um dos responsáveis pela criação
da Defensoria Pública de São Paulo, atualmente ele é
coordenador geral de administração do órgão
e presidente da Comissão de Justiça e Segurança
do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Renato
de Vitto conta que a discussão sobre justiça restaurativa
surgiu por intermédio do Instituto de Direito Comparado e Internacional
de Brasília (IDCB), presidido na época por Renato Sócrates
Gomes Pinto (confira entrevista). “Na época, eles trouxeram
uma pesquisadora inglesa e outra neozelandesa, junto com o ministro
da justiça da Nova Zelândia para fazer um debate no Tribunal
de Justiça do Distrito Federal e eu fui representando a Secretaria.
Foi quando eu comecei a ter contato com o tema e vi que ele convergia
para muitos das idéias de inovação que motivavam
a SRJ.”
De Vitto começou a contatar pessoas da Nova Zelândia,
país que institucionalizou a JR ao sistema de justiça
em 1989, e fez parte de uma delegação convidada por aquele
governo para conhecer seus programas estatais e privados de JR. Envolvido
na formulação do projeto BRA/05/009, ele conta que o objetivo
era desenvolver ações para difundir o conhecimento sobre
esse modelo. “Eu era o responsável por este projeto na
SRJ. Era tudo muito novo, algo que estava literalmente em construção,
até o conceito adequado à realidade brasileira. Mas estávamos
com muita responsabilidade e moderação para não
vender ilusão. A gente tinha a idéia de que agregava um
instrumento que poderia ter uma utilidade social grande, mas sempre
considerando que era uma experiência importada de países
que tem um sistema jurídico bastante diferente do nosso e que
aquilo não seria a panacéia para os problemas do direito
criminal e da situação carcerária no país.
Mas era uma experiência que valia a pena o investimento”,
conta.
Ele explica que a escolha dos três projetos-piloto
se deu com base na investigação de pessoas que já
eram comprometidas com o tema e já desenvolviam ações
nesse sentido. Renato de Vitto lembra que a emenda da Reforma do Judiciário
criou uma Escola Nacional de Magistratura para juízes que seria
gerida pela JR. “Quando a gente está tratando de um projeto
piloto você está trabalhando com um universo bem restrito.
Nosso grande desafio seria trabalhar isso numa escala grande. E o nosso
problema é que muito pouca gente qualificada para capacitar.
Então a idéia de envolver uma Escola Nacional, vinculada
ao Tribunal Superior, seria criar um nicho de reprodução
daqueles conceitos, um kit com ferramentas básicas para que cada
juiz pudesse se aprofundar, buscar uma capacitação e,
quem sabe, implementar um projeto com a sua cara”.
O defensor não acredita a JR como solução
para os problemas carcerários. “Tenho muita reserva quanto
a isso. É que às vezes eles se valem da idéia que
a mediação pode acabar com o problema da lentidão
do processo judicial. E, normalmente, são aqueles casos que envolvem
os pobres. Todo cidadão tem direito a acessar a justiça
formal, tal qual conhecemos, mas o interessante é você
criar alternativas para que as partes não dependam única
e exclusivamente dela. É criar o que alguns teóricos chamam
de sistema multiportas, que pode atender melhor determinadas situações.”
Mas Renato de Vitto acha que nem toda espécie de criminalidade
é passível de ser submetida à JR, como a criminalidade
organizada ou os próprios crimes de colarinho branco. “Vejo
como muito eficaz e eficiente na resolução de conflitos
interpessoais, que é boa parte da criminalidade, eu arriscaria
dizer até que, em termos quantitativos, é a maior parte
do que se verifica.”
De Vitto afirma ser cético quanto à possibilidade
de impor JR como modelo. Ele também fala sobre o custo de um
sistema restaurativo. “Tenho muitas dúvidas quanto ao custo
operacional. Falar que essa é mais barata do que a tradicional
não é verdade. A estrutura de pessoal e material que gira
em torno do programa de justiça restaurativa na Nova Zelândia
é muito grande. Se a gente considerar que lá eles têm
4 a 5 milhões de habitante e aqui temos quase 200 milhões.
Do ponto de vista operacional há dificuldades, mas acho que há
espaço para esse novo paradigma. Uma coisa que tenho certeza
é que, se bem empregado, o modelo agrega um grande potencial
de satisfação das partes. O grande potencial da justiça
restaurativa está em justamente nisso. É menos traumático.
O revolucionário da JR está exatamente no dar um xeque
a essa concepção retributivista, punitiva, vingativa que
a justiça criminal traz, falando: existe alternativa para isso.”
Hoje o coordenador da JR na SRJ, Marcelo Vieira de Campos,
também assessor especial do atual secretário, Rogério
Favreto, garante que a missão do órgão é
aprimorar políticas voltadas à pacificação
de conflitos, propondo mecanismos sem deixar de lado as normas legais
vigentes. Ele destaca, contudo, que dentro do ordenamento jurídico
nacional não há como tratar de um crime sem a presença
de alguns Poderes. “O Judiciário é um deles, já
que a JR trata de uma situação pós-infração.
Alguns países possuem instrumentos normativos que a regulamentam,
de modo que habilita dentro do contesto legal daquela localidade a atribuição
de outros órgãos para promover a JR.”
Hoje a SRJ dialoga com vários setores a possibilidade
de replicação em outros Estados. “Nesse ano a SRJ
realizou um ciclo de debates sobre a JR trazendo como palestrante o
professor estadunidense Howard Zehr (confira entrevista), um dos pioneiros
na JR no mundo”.
O secretário Rogério Favreto diz que a
proposta é tratar a justiça restaurativa como uma política
pública permanente. “Estamos tendo cuidado, junto com os
parceiros, na ampliação deste debate e na replicação
destas experiências. A partir das conferências deste ano,
vamos fazer uma publicação para a orientação
das pessoas interessadas. O Ministério da Justiça daria
o aporte tanto da publicação desse material, como também
em viabilizar alguma assistência técnica e orientação
para aqueles que queiram se envolver na ampliação da proposta
de justiça restaurativa.”
Hoje, a SRJ apenas acompanha o desempenho dos projetos-piloto.
“Em São Caetano, por exemplo, eles acabaram buscando outras
parcerias estaduais. Não existe a necessidade de repassar recursos
porque o objetivo inicial foi a estruturação e a implantação
e nossa parceria já deu conta disso”, afirma o secretário.
E fala sobre o apoio da secretaria a novas demandas, especialmente com
aporte teórico. “Não há impedimento em apoiar
outros projetos, mas achamos que neste momento o fundamental é
um investimento grande no sentido de viabilizar essa rede, de reunir,
de fazer esse debate. Queremos canalizar nossos investimentos nessa
orientação porque é um tema mais complexo e que
tem resistência, é um tema novo, que rompe com alguns paradigmas.
Não é fixar uma linha doutrinária, é, sim,
dar suporte prático e teórico de como alguém pode
se assessorar para implantar esse sistema. No Ministério da Justiça
já sinalizei aos setores para que, depois, a gente possa também
levar, por exemplo, ao Conselho Nacional de Justiça para que,
como um órgão que pensa as políticas e diretrizes,
possa avaliar e fazer recomendações à Justiça
no sentido da utilização desses métodos”,
conclui Favreto.
Outros projetos estão em atividade ou desenvolvimento
pelo País. Em alguns casos elas não se intitulam como
justiça restaurativa, mas têm em sua base de fundamentos
os mesmos princípios. Sem a pretensão de abarcar todas
as iniciativas, esta série apresenta algumas. Confira: Joinville
(SC), Belo Horizonte (MG), Recife (PE), Vila Céu do Mapiá
(AM) e Campinas e Diadema (SP).
Fonte:
Senac - Setor 3
Serviço :
Secretaria
de Reforma do Judiciário (SRJ)
Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)
Centro
de Criação de Imagem Popular (CECIP)
Fundação
para o Desenvolvimento da Educação (FDE)
Instituto
de Direito Comparado e Internacional de Brasília (IDCB)
_____________________________________________
Iniciativa em Brasília optou pela mediação
como procedimento restaurativo
O envolvimento do maranhense Asiel Henrique
de Sousa, Juiz de Direito do Juizado Especial Criminal do Núcleo
Bandeirantes, em Brasília (DF), com os procedimentos restaurativos
teve início no ano de 2005, quando participou de seminários
e de conferências sobre o tema.
Ele explica que um processo restaurativo é aquele
em que o sistema de justiça devolve às partes uma parcela
do poder que originalmente tinham de resolver o problema. “O que
a JR traz de novidade é um norte teórico e metodológico
para a prática da Justiça criminal, que de algum modo
já era feita na prática, desde 1995, pela Lei dos Juizados
Especiais Criminais (Lei 9009/1995). O que se constata é que
essa proposta teórica e esses métodos têm uma aplicação
potencial em um âmbito muito maior do que o previsto nesta. É
o caso do Estatuto da Criança e Adolescente, cujo procedimento
criminal prevê a exclusão do processo nos casos de remissão.”
Sousa é o coordenador do Projeto Justiça
Restaurativa, um dos três pilotos apoiados pela Secretaria de
Reforma do Judiciário (SRJ), do Ministério da Justiça,
e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), dentro do escopo do Projeto BRA/05/009 – Promovendo Práticas
Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro. Como parceiros
executivos do projeto estão o Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e Territórios (TJDFT), o Ministério Público
do Distrito Federal e Territórios e a Defensoria Pública
do Distrito Federal.
Ali, a JR foi aplicada a crimes de menor potencial ofensivo
praticados por adultos. O juiz diz que esse aspecto estabelece uma diferença
metodológica importante em comparação com os outros
dois pilotos. “No que diz respeito aos crimes da juventude, há
uma rede de proteção e de apoio já estabelecida
e consolidada, o que não ocorre com relação à
criminalidade e conflitualidade em geral.”
Em função disso, entre os procedimentos
restaurativos propostos pela Resolução 2002/12, da Organização
das Nações Unidas (ONU), o piloto de Brasília escolheu
a mediação vítima-ofensor. Ele aponta como diferença
fundamental entre ela e o círculo. “Os problemas que envolvem
a infância ou outros segmentos, como algumas minorias, talvez
exijam a participação mais efetiva de redes nativas. Optamos
pela mediação, com o diferencial de que, nesse processo,
há também espaço para a participação
comunitária, mas a comunidade primária. Ou seja, aquelas
pessoas com quem os envolvidos diretos têm uma relação
significativa. E a presença dessas pessoas não desnatura
a mediação vítima-ofensor.”
O juiz acredita que um sistema de justiça restaurativa
que faria bem ao Brasil se apresentaria como subsidiário ao modelo
retributivo (baseado na punição). “Portanto, não
há de ser universal, ou seja, não deve ser aplicado a
todos os casos nem em todas as circunstâncias.”
Sousa acredita que a JR pode ser vista como alternativa
ao encarceramento, em alguns casos de crimes de médio potencial
ofensivo, em que seja possível o aprisionamento. “Além
disso, pode ser vista também como instrumento de pacificação
das relações sociais afetadas pelo crime, aí considerados
os envolvidos no evento, primários e secundários.”
Em relação à justiça de
adultos, trabalhada no projeto-piloto de JR em Brasília, ele
diz que a proposta da JR desafia a ampliação do espaço
de consenso para crimes de médio potencial ofensivo e abre espaço
para a participação social na solução dos
conflitos-crime assim como abriu para as infrações da
juventude.
A supervisão do trabalho está a cargo
de uma servidora do Tribunal de Justiça (TJ), que se reporta
ao juiz e ao promotor, quando necessário. “Inicialmente
trabalhamos com voluntários que foram capacitados para o programa.
O modelo demanda algum aperfeiçoamento, alguma medida que vincule
mais fortemente o voluntário”, conta.
No início, havia 18 facilitadores voluntários. Hoje, são
quatro servidores do TJ dedicados exclusivamente ao projeto. A comunicação
e troca de experiências acontecem em reuniões periódicas
entre os facilitadores.
De 2005 a 2008, foram concluídos 91 processos,
dos 101 encaminhados ao projeto. “Sempre ocorrem pré-encontros,
ou reuniões preparatórias. Às vezes, mais de um
para cada parte em conflito. Do ponto de vista qualitativo, podemos
constatar uma melhor percepção de justiça na resolução
dos problemas e as pessoas se apropriando mais dos seus direitos e deveres.”
Para ele, a questão de tornar JR componente de
política pública parece missão acima das propostas
dos projetos-piloto. O juiz não acredita ser possível
nem recomendável a concepção de programas de justiça
restaurativa autônomos em relação ao sistema de
justiça. “Ao menos no que diz respeito aos fatos tipificados
na lei penal. A instituição da justiça pública
está muito ligada às instituições e ao inconsciente
coletivo, de modo que não será para tão breve qualquer
medida nesse sentido”, justifica.
Capacitação
Professor da Universidade de Brasília (UnB),
o ex-procurador federal e advogado, André Felipe Gomma de Azevedo
deu um treinamento para juízes no TJR e, em função
disso, se encantou com a profissão. Há seis anos, prestou
concurso para a Magistratura na Bahia e passou. Estudioso do campo de
mediação penal, Gomma foi responsável pela capacitação
inicial dos mediadores do piloto de Brasília.
Em 1998, formou um grupo de pesquisa em mediação
na UnB para desenvolver instrumentos pedagógicos passíveis
utilizados por outros tribunais, órgãos e quaisquer entidades
que desejem desenvolver projetos. “Meu contato com justiça
restaurativa foi por intermédio com um dos processos restaurativos.”
Gomma aponta que a JR pode e deve ter o envolvimento
com a comunidade. “A grande questão nossa no Brasil é
que nós temos muitas dificuldades de definir quais são
os representantes das comunidades”, revela.
Gomma conta que a linha teórica que orientou
o processo de capacitação foi a do professor Mark Umbreit,
diretor-fundador do Centro para a Justiça Restaurativa e Pacificação,
e do Instituto Nacional de Formação em Justiça
Restaurativa, ambos da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos.
“Acho que o manual dele é de mais fácil aplicação.
Como parte do pacote do treinamento, fizeram exercícios simulados,
casos reais que nós transformamos para saber o que aconteceria
se estivessem naquele contexto.”
O juiz explica a diferença entre os termos facilitador
e mediador. “Facilitador foi o utilizado pela resolução
da ONU para definir o compositor na JR. Dentro do processo restaurativo
existem as espécies de procedimento. Ao chamar de facilitador
ou mediador a gente está se referindo à mesma pessoa,
mas na primeira é uma referência ao gênero, o processo,
e na segunda à espécie, o procedimento chamado mediação.”
Para ele, no Brasil, a grande dificuldade é universalizar
os programas. “Se eu fosse vítima de uma lesão corporal
de trânsito hoje, não teria assegurada a possibilidade
de passar por um procedimento restaurativo. Tenho isso como um programa
universal, que dá acesso a um processo muito interessante, mas
na prática existe exclusivamente para uma parcela muito pequena
da população. É como se a gente tivesse um remédio
ou um tratamento, mas que estivesse disponível a 0,5% da população.”
Ele aponta como grande desafio para isso é o
envolvimento do voluntário qualificado no Poder Judiciário.
Também defende que a JR não seja tratada como uma alternativa,
mas como um complemento. “Alguns tribunais fora do Brasil contam
com trabalhos voluntários de professores de universidades e assim
por diante. No Brasil, existe a intenção da sociedade
de ajudar o poder judiciário, mas ele tem questões administrativas
que dificultam o envolvimento desses profissionais qualificados. É
muito difícil para um administrador alterar práticas gerenciais
tão consolidadas, como a não utilização
de voluntários externos. À exceção dos Juizados
Especiais, que usam a alunos como voluntários em muitos Estados,
cujos resultados estão sendo bastante questionados.”
Também participou da implementação
e execução do projeto-piloto a psicóloga, especialista
em teoria psicanalítica, Adriana Barbosa Sócrates. A professora
é membro-fundadora e integrante do conselho científico
e consultivo do Instituto Brasileiro de Justiça Restaurativa
(IBJR). Ela conta que seu envolvimento com a JR iniciou-se pelo contato
com a Professora Gabrielle Maxwel, que esteve em Brasília para
apresentar o modelo de JR da Nova Zelândia, em 2004.
Como consultora do PNUD no projeto de Brasília,
Adriana presenciou etapas fundamentais da execução da
prática restaurativa. “Com a experiência, pretendo
escrever um livro A Justiça restaurativa na prática no
Brasil: diretrizes e fundamentos, no qual quero expor os procedimentos
utilizados compilados.”
A psicóloga foi convidada pelos juízes Asiel Sousa e Ben-Hur
para compor a equipe e coordenar a implementação e execução
do projeto, após a avaliação da proposta de capacitação
que ela havia submetido à SRJ. “A capacitação
ocorreu de forma continuada, ou seja, os facilitadores foram selecionados
e tiveram 60 horas de curso sobre a ferramenta proposta pelo professor
André Goma. No decorrer da execução eram realizadas
supervisões temáticas e teóricas de acordo com
as necessidades da prática dos facilitadores.” Ela aponta,
ainda, os critérios utilizados na seleção dos facilitadores:
disponibilidade psíquica, emocional, temporal, conhecimento sobre
o tema ou similar.
Caso real
Antônio* convidou alguns amigos para a festa da
virada de 2004 para 2005, em sua casa, em Brasília. Não
gostou quando alguns rapazes começaram a fumar maconha. “Acho
que foi falta de respeito”, diz o jovem, hoje, com 22 anos.
Outro mal-entendido foi provocado quando um deles conversou com a namorada
do outro. Houve discussão e agressão física. Durante
a briga, alguns objetos sumiram: óculos, corrente de prata e
celular.
O rapaz agredido foi levado ao Instituto Médico
Legal (IML) com ferimentos no rosto. Estavam envolvidos, de um lado,
Antônio e Samuel*, do outro, dois irmãos e um amigo deles,
desconhecido do dono da casa. “Eu fui direto brigando, também
errei neste ponto. Todo mundo querendo entrar, só não
teve mais briga porque o pessoal separou”, recorda Antônio.
No dia seguinte, ele e Samuel foram ameaçados
de morte pelos irmãos e registraram ocorrência na delegacia.
Antônio diz que Samuel se envolveu na briga. “Creio que
ele não bateu em ninguém, mas falaram que sim, mas acho
que ele entrou só para separar.”
Hoje com 23 anos, Samuel conta que ele já estava
embriagado quando separaram a confusão e o rapaz que agrediu
veio em sua direção para brigar novamente com o dono da
casa, que estava sendo acalmado por outras pessoas. “Nesse momento,
achei que ele ia me agredir e reagi antes, me precipitando.”
No dia seguinte, ele ficou em casa, depois de registrar
a ocorrência na delegacia. “Fiquei trancado durante três
ou quatro meses, pois temia algo acontecer comigo”, revela.
Em função dos Boletins de Ocorrência
(BO) registrados pelas duas partes, o delegado elaborou Termo Circunstanciado
(prática dos crimes de ameaça e lesão corporal)
e encaminhou ao Juizado Especial Criminal do Núcleo Bandeirantes
no 19/04/2005.
No dia 1º de agosto daquele mesmo ano, em uma audiência
preliminar, juiz e Ministério Público, em comum acordo,
sugeriram que o processo seguisse para o projeto de justiça restaurativa.
“Um técnico, acho que se chama Leonardo, propôs esse
projeto na audiência, explicou tudo na frente do juiz. Eles disseram
que se a gente quisesse poderíamos entrar num acordo para tentar
acabar com isso sem mais confusão”, recorda Antônio.
Informados sobre a possibilidade, eles optaram, voluntariamente,
por esta forma de justiça. O processo ficou suspenso e, caso
não houvesse um acordo restaurativo, seria devolvido à
justiça tradicional. “Achei que seria uma ótima
oportunidade de resolver a situação sem que precisasse
de um futuro julgamento”, diz Samuel.
Depois de vários pré-encontros, privados
e conjuntos, foi realizado, no dia 9/11/2005, o encontro restaurativo,
de que participaram também os familiares dos envolvidos. Nele,
foi elaborado pelas partes o Termo de Acordo Restaurativo, em que todos
pediram desculpas reciprocamente e Antônio e Samuel assumiram
a responsabilidade de restituir aos outros o valor referente aos objetos
desaparecidos. O prazo para isto teve data marcada.
“Achei algo extraordinário, pois pude acreditar
que existe outro jeito de se resolver um conflito sem precisar de uma
pena. Me senti totalmente ouvido e aliviado, pois antes mesmo de um
encontro das duas partes, percebi mudanças em todos nós
envolvidos. Depois de uma primeira pré-mediação
cheguei a fazer as pazes com o irmão do rapaz que eu agredi”,
diz Samuel, revelando que, caso necessite, buscará este procedimento
novamente.
No acordo, todos também se comprometeram a realizar
uma campanha para arrecadação de alimentos, brinquedos
e roupas para um abrigo de crianças carentes nas comunidades
onde residem. “Esta sugestão foi dada pelos próprios
familiares e foi prontamente aceita pelos jovens, com intuito de ampliar
a visão de suas realidades e conectarem-se com as necessidades
básicas das crianças, privadas de convivência familiar”,
conta a psicóloga Helena Maria Costa, que atuou como mediadora
no caso, junto de Leonardo Amorim e da supervisora de JR, Simone Republicano.
Helena, que está no Projeto de Justiça
Restaurativa do Núcleo Bandeirantes desde 2005, conta que o acordo
foi cumprido e anexado ao processo um termo de quitação
da dívida, bem como o termo de quitação do compromisso
com o abrigo. “Também foi realizada visita domiciliar e
verificou-se que os rapazes cumpriram o acordo de boa convivência.”
O Juiz homologou o acordo e determinou, em 17/7/2008,
que o processo fosse arquivado. “Ao final do encontro, todos se
cumprimentaram. Houve abraços e choros. Este caso foi considerado
restaurado pelas partes e seus familiares”, afirma Helena.
Ela explica que, em muitos casos, verifica-se que os
envolvidos são vítimas e ofensores ao mesmo tempo. “Inicialmente,
quando se registra uma Ocorrência Policial, o delegado distingue
os papéis das partes. No Fórum, o MP pode seguir com o
mesmo entendimento ou não.”
Samuel revela, avaliando o que aconteceu, que se enxerga
mais como ofensor. “O fato de ter sido ameaçado foi por
causa da agressão que cometi.” Já Antônio,
diz que quando aconteceu a briga, se sentia ofensor e, ao mesmo tempo,
vítima. “Porque a ameaça foi mais séria.
Eles foram pessoalmente, correram atrás de mim”, diz. Hoje
ele vê a situação de forma diferente. “No
encontro me senti mais como agressor. Não que eu seja o motivador,
mas poderia ter evitado, ter agido de outra maneira. Eu ajudei bastante
isso a acontecer. Com certeza, aquele processo me ajudou a repensar
como foi e que poderia ter acontecido de outra maneira.”
Samuel e Antônio aprovaram o projeto de JR. “Creio
que todos puderam falar tudo que queriam. Eu estava aberto para ouvir
e falei tudo também. Me senti aliviado, essa foi a sensação.
Poder resolver tudo numa boa e, até hoje, não aconteceu
mais nada”, afirma Antônio. E ele deixa a mensagem: “Não
custa tentar, tentem que não vão se arrepender.”
* nomes fictícios para resguardar a identidade
dos envolvidos
Serviço:
Grupo
de Pesquisas e Trabalho em Resolução Apropriada de Disputas,
da UnB
Assista aos vídeos:
A
Oficina: uma mediação (forense) exemplificada (ano 2004)
O
Reencontro de Helena: uma mediação vitima-ofensor exemplificada
(ano 2006)
Fonte:
Senac - Setor 3
_________________________
Projeto-piloto de Porto Alegre propõe
nova forma de olhar para as medidas sócio-educativas
por Alexandre Saconi
Nascido em 2005 como piloto do projeto
Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça
Brasileiro, o Justiça para o Século 21 mudou a forma
de olhar a justiça voltada para crianças e adolescentes
em Porto Alegre. Seu maior diferencial está no público
alvo com que trabalha: jovens que estão cumprindo medidas sócio-educativas
na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE,
responsável pelo cumprimento das medidas em regime fechado) e
na Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC,
responsável pela execução das medidas de meio aberto).
Os atendimentos do projeto buscam despertar a consciência de todos
os envolvidos para as conseqüências e proporções
de seus atos.
Em Porto Alegre (POA), as práticas restaurativas
são testadas desde 2002 e, a partir de 2005, são realizadas
de forma sistemática junto à 3ª Vara do Juizado da
Infância e da Juventude. Atualmente, conta com o apoio da UNESCO/Criança
Esperança, do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), da Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da república (SEDH), Secretaria de Reforma
do Judiciário (SRJ), da Associação dos Juízes
do Rio Grande do Sul (AJURIS), das Secretarias Estadual e Municipal
de Educação, Secretaria Municipal de Direitos Humanos
e Segurança Urbana, além de outras instituições
que defendam os mesmos objetivos do projeto.
Justiça na prática
Mas como funciona esse projeto? Partindo do princípio
da valorização do diálogo entre as pessoas, criam-se
oportunidades para que as pessoas envolvidas em um conflito, como ofensor,
vítima, familiares e a comunidade possam ter suas necessidades
próprias reconhecidas. Essa valorização favorece
a construção do combate à violência e da
consciência para lidar com as conseqüências deste tipo
de ato. Para isto, a ferramenta escolhida foi a de círculos restaurativos,
inspirada no modelo criado pelo professor Howard Zehr, e desenvolvidos
na Central de Práticas Restaurativas do 3º Juizado Regional
da Infância e da Juventude (CPR-JIJ).
Os círculos funcionam da seguinte forma: uma
vez detectado o conflito e observada a possibilidade deste ser encaminhado
a um círculo restaurativo, os funcionários da CPR designam
um profissional próprio para coordenar o círculo do caso.
Esse coordenador irá estudar o caso e realizar todas as etapas
do processo restaurativo, começando pelo pré-círculo,
quando entrará em contato com todas as partes envolvidas no ato
infracional (o jovem, a família, vítima, comunidade, etc)
e proporá que todos participem do círculo. Este processo
é voluntário e não se realizará se alguma
das partes não concordar em participar.
Para o jovem, o coordenador explica a importância
do círculo e esta discussão pode, inclusive, mudar sua
forma de conceber o próprio ato. Algumas vezes, o jovem tenta
usar técnicas de neutralização, que tendem a revitimizar
a pessoa que já foi vítima uma vez do ato infracional.
Em um caso de roubo, por exemplo, seria a argumentação
de que o fez porque a vítima é rica, e que isso ameniza
sua culpa em todo o processo. Os coordenadores trabalham para explicar
que isso pode causar um mal-estar na vítima, tornando o diálogo
mais complicado. A família dele é convidada, por ser parte
importante do seu processo de recuperação. Porém,
a vítima pode não aceitar por medo de ser revitimizada.
O profissional que entra em contato com ela argumenta sobre a importância
de sua participação para uma restauração
do relacionamento entre todos. A comunidade, que pode ser representada
por uma ou mais pessoas que tenham se sentido afetadas direta ou indiretamente
pela atitude do jovem, também é convidada para refletir
sobre o seu papel e responsabilidade no processo.
Quando todos aceitarem participar, o círculo
se realizará na CPR em uma data e horário adequado por
todos. Cada um irá expor seu ponto de vista, suas necessidades,
opiniões, etc. O objetivo é traçar um plano de
ação para compensar os danos causados e promover mudanças
que evitem a repetição do fato em questão. Um documento
registrará a atitude que cada um se comprometeu a tomar. Este
documento será revisitado na última parte deste processo,
que é o pós-círculo, quando o coordenador desta
atividade entrará em contato com todos os participantes do círculo
para acompanhar a execução das metas traçadas anteriormente.
Desde 2007 a CPR vem praticando também os círculos
familiares, que são realizados quando a vítima não
aceita participar do círculo. Aqui, o diálogo ocorre entre
os adolescentes e responsáveis que participam dos encontros,
produzindo uma reflexão e identificação dos temas
que o motivaram a cometer o ato infracional. Com isso, pode-se articular
melhor as relações comunitárias de todos e levantar
as demandas da rede de apoio que precisam ser trabalhadas.
Em seus dois anos de existência, a CPR já
atendeu cerca de 2.583 pessoas em diversos casos. Um acompanhamento
destas atividades é realizado pela Faculdade de Serviço
Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUC-RS). Contribui para o desenvolvimento do projeto, ao promover
o estudo sobre o tema e permitir uma análise profunda dos impactos
do conflito, visando a uma real efetivação da restauração
dos danos causados à sociedade.
Por dentro...
O Dr. Leoberto Brancher, Juiz de Direito da 3ª
Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude de Porto Alegre,
conhece os preceitos da Justiça Restaurativa desde 1999. Entretanto,
só a partir de 2002 pode começar a trabalhar, ainda que
de maneira informal, com esta concepção de Justiça
em sua jurisdição. Segue abaixo um trecho da entrevista
concedida ao portal Setor3:
Setor3: Qual sua concepção sobre o que
é Justiça Restaurativa?
Leoberto Brancher: Em termos práticos, um modelo
prático e pacífico de regulação e harmonização
social, lugar tradicionalmente ocupado pela justiça, e, em último
grau, pela justiça penal. De fato, esse modelo parte da crítica
do sistema penal de justiça, mas isso é apenas a ponta
do iceberg pela qual se expressa, em síntese, a cristalização
de um modelo cultural de relacionamento baseado na violência e
na subjugação. A JR surge como resultado de uma releitura
a respeito das questões vitais à organização
das sociedades humanas. Com isso faz-se emergir uma nova ética
a respeito das posturas que adotamos na afirmação de valores
e normas, tanto como indivíduos quanto como instituições.
Isto termina por revelar o modo mais ou menos autoritário como
exercemos o poder, permitindo depurar os modelos tradicionais vigentes
cuja democratização é indispensável para
a construção da cultura de paz.
Setor3: Qual seu papel no projeto Justiça para
o século 21?
LB: Um papel mensageiro. Sinto-me servindo de elo entre
muitos mundos. O mundo do conhecimento, o mundo da instituição
judiciária e das demais instituições que operam
as políticas públicas, o mundo das pessoas que operam
essas organizações, e o mundo dos usuários. Aprender,
praticar, compartilhar, inspirar é o meu dia-a-dia no projeto.
Setor3: Quais as dificuldades encontradas para emplacar
esta nova concepção de resolução de conflitos
na sociedade?
LB: Como mudança ética e cultural, o processo
de aprendizagem é lento, porque é eminentemente vivencial.
E sem essa radicalidade ética, indissociável de uma mudança
nas perspectivas e atitudes pessoais, não há chance de
sucesso nas práticas restaurativas, embora engajar-se nessa realização
gera um circuito benéfico e retroalimentado, uma espiral positiva,
de transformação das pessoas e das instituições.
Mas se não houver fidelidade aos valores, e se cada um, como
propunha Gandhi, não se transformar no valor que quer ver transformado
no mundo, o melhor da experiência não se revela.
S3: Quais as desvantagens deste modelo de Justiça?
LB: É trabalhoso. Pessoalmente, exige colocar-se
em permanente crise, pois trazemos hábitos invencíveis
relacionados aos jogos de poder, em que, no limite, no descontrole,
podemos regredir aos modelos hereditários representados pela
convicção no emprego da força - que geralmente
acaba se confundindo com o emprego da violência -, como método
de auto-afirmação. Além disso, mentalmente, exige
transpor o pensamento linear e a perspectiva individualista auto-suficiente
para o raciocínio complexo e coletivo. E, por último,
coletivamente, o esforço é também no sentindo de
superar as práticas burocráticas, departamentalizantes,
e, ao mesmo tempo, compreender as dificuldades na demora para novos
procedimentos que exigem tempo para conversar, ouvir e articular muitas
pessoas. Antes usaríamos, bem pragmaticamente, designar alguém
para pensar por todos, dar ordens e, quem sabe, depois avisar os resultados.
Setor3: E as vantagens?
LB: Em termos pessoais, a aprendizagem. Para todos
os envolvidos, seja quem faz, seja quem estuda, seja quem participa
como usuário, todos crescem. O principal dividendo é restabelecer
as oportunidades de contato conosco mesmos, à medida em que passamos
a redescobrir e a reencontrar com o outro numa dimensão de humanidade
e respeito. A partir da experiência de compartilhamento da dor,
ou seja, numa dimensão essencialmente comunicativa em que estamos
despojados e desprotegidos, possibilitar uma viagem "do eu ao nós",
que remete a uma dimensão de transcendência, de transpessoalidade,
profundamente gratificante. Sem dúvida, uma refinada experiência
espiritual. Em termos profissionais, a gratificação é
também ver luz onde só havia desespero. Em termos institucionais,
a abertura de novas perspectivas de planejamento, dando vida e sentido
a burocracias que, parodiando Darcy Ribeiro, se transformaram em "máquinas
de gastar gente".
Fonte:
Senac - Setor 3
_______________________
Em São Caetano do Sul (SP),
piloto de JR utiliza metodologias diferentes nos ambientes escolar,
forense e comunitário
Juliana Rocha Barroso
O projeto-piloto "Justiça Restaurativa
e Comunitária em São Caetano do Sul: parceria pela cidadania"
tem dinamismo próprio e dialoga com o contexto para aplicar o
procedimento de círculo restaurativo utilizando diferentes metodologias,
adequadas ao ambiente escolar, forense e comunitário.
A iniciativa da Vara da Infância e da Juventude,
sob liderança de Eduardo Rezende Melo, juiz da Vara da Infância
e da Juventude da Comarca de São Caetano do Sul, e equipe, conta
com apoio institucional do Tribunal de Justiça do Estado. O envolvimento
do magistrado com o tema aconteceu quando, em 2000, a Associação
Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores
Públicos, na qual hoje é presidente, realizou o projeto
Pela Justiça na Educação. “Nós pensávamos
a atuação da Justiça por meio do acesso e da qualidade
da educação de crianças e adolescentes e um dos
aspectos envolvia também a resolução de conflitos.
Também foi elaborado um livro referencial, que tem um texto do
professor Pedro Scuro sobre isso. Lendo este texto, resolvi chamá-lo
para nos assessorar”, conta.
Eles tentaram implementar um projeto em 2002 na cidade
de Mairiporã (SP), onde Rezende era juiz. A Diretora de Ensino
da região era a mesma de Jundiaí (SP), onde Scuro desenvolvia
um dos primeiros projetos de JR do País. “Elaboramos um
projeto para cidades da Serra da Cantareira, chamamos de Projeto da
Serra. Encaminhamos para o Ministério da Justiça, mas
na época não houve interesse”, recorda.
A primeira etapa do projeto de São Caetano, em
2005, teve foco nas escolas e nos adolescentes em conflito com a lei.
Intitulado de Justiça e Educação: parceria para
a cidadania, o projeto visava a resolução de conflitos
de modo preventivo nas escolas, evitando seu encaminhamento à
justiça, e daqueles não relacionados à vivência
comunitária escolar, no Fórum, em círculos restaurativos.
Também pretendia fortalecer redes comunitárias, para que
agentes governamentais e não-governamentais, focados a assegurar
os direitos da Infância e da Juventude, pudessem atuar de forma
articulada.
Para isso, foram mobilizadas parcerias do Judiciário
com a Secretaria de Estado da Educação (SEE), o Conselho
Municipal de Direitos da Criança e Adolescente (CMDCA), o Conselho
Tutelar, o Conselho Municipal de Segurança, o Cartório
da Infância e da Juventude, entre outros.
Três escolas voluntárias aderiram ,chamadas
de “pioneiras”. Para facilitar esses encontros restaurativos,
educadores das escolas, pais e mães, alunos, assistentes sociais
e conselheiros tutelares foram capacitados em técnica criada
por Dominic Barter, da Rede Comunicação Não-Violenta
(CNV), com base em experiências estrangeiras. Os facilitadores
de práticas restaurativas, também conhecidos como conciliadores,
passaram a realizar os círculos nas escolas e no fórum,
nos casos em que houvesse vítima e os conflitos não fossem
das escolas participantes do projeto ou em que as pessoas fossem de
comunidades diversas e sem relação contínua de
convivência. Nestes casos, houve a participação
do juiz, do promotor de Justiça e das assistentes sociais do
fórum. Outro espaço, desde o início, foi o Conselho
Tutelar.
Segundo dados do relatório de atividades e resultados
do projeto, o processo formativo atingiu não apenas as pessoas
que iriam operar os círculos nos diferentes espaços, como
também educadores escolares, por meio da abordagem de Facilitação
de Mudanças Educacionais, desenvolvida pelo Centro de Criação
de Imagem Popular (CECIP) e APS International, da Holanda.
A rede de atendimento foi articulada. Nela estavam representantes
do Fórum, do Conselho Tutelar, da Educação, da
Assistência Social, da Saúde e da Segurança (Polícia
Civil e Militar, e Guarda Civil). Em reuniões periódicas
para reflexão, incorporou-se a justiça restaurativa no
fluxo de atendimento. Interessada em conhecer o projeto in-loco, a doutora
Gabrielle Maxwell, da Universidade de Victoria, autoridade em JR na
Nova Zelândia, ministrou voluntariamente curso sobre técnicas
e procedimentos restaurativos. Rezende e a pedagoga Madza Ednir, formadora
em Facilitação de Mudanças Educacionais, visitaram
diversos projetos internacionais, trazendo experiências que contribuíram
para seu aperfeiçoamento.
Em dezembro de 2005, existiam, em São Caetano,
dez pessoas capacitadas para operar círculos restaurativos, dez
lideranças educacionais das três escolas pioneiras e da
Diretoria de Ensino e cinco assistentes sociais e conselheiras tutelares
capacitadas para realização de círculos no fórum
e no conselho.
Em 2006, o projeto foi ampliado para a comunidade, com
a diversificação de técnicas restaurativas. Além
disso, o sucesso da etapa inicial estimulou a SEE e a Diretoria de Ensino
de São Bernardo do Campo a abrirem a outras escolas e todas as
12 escolas da rede estadual inseriram-se nas atividades. Cerca de cinqüenta
pessoas foram capacitadas utilizando procedimentos da CNV, além
de dez lideranças educacionais.
Além dos círculos sob responsabilidade
das escolas e do fórum, em um segundo piloto, começaram
a acontecer os círculos comunitários com o uso de nova
prática restaurativa. O projeto foi chamado Restaurando justiça
na família e na vizinhança: Justiça Restaurativa
e comunitária no bairro Nova Gerty. “Em relação
à comunidade, pelo último levantamento do Ministério
da Educação, um dos grandes fatores que levam à
evasão escolar é justamente a violência doméstica
e a violência comunitária. Não bastava apenas fortalecer
a rede secundária de atendimento e proteção, para
que ela empoderasse a rede primária (famílias e comunidades
a que pertencem crianças e jovens). Era preciso atuar diretamente”,
justifica o juiz.
Pessoas voluntárias da comunidade foram capacitadas
por Vania Curi Yazbek, docente em práticas de resolução
de conflitos, para facilitar encontros restaurativos no espaço
de uma escola voluntária do bairro, a Escola Estadual Padre Alexandre
Grigoli. Ela utilizou a técnica dos círculos restaurativos
inspirados nas práticas sul-africanas de Justiça Comunitária
(Modelo Zwelethemba), apresentada por especialistas da África
do Sul que participaram de um seminário para os participantes
do projeto, em abril de 2006.
Ao administrar situações de conflito e
de violência, o modelo sul-africano foca a construção
de um plano de ação. “As necessidades individuais
ficam menos presentes, pois o centro do trabalho não é
‘o seu problema’ ou ‘o meu problema’, mas ‘temos
uma situação de violência como problema’.
É uma experiência de democracia deliberativa em âmbito
local, devendo operar dentro de certos limites, colocados por um código
de atuação”, expõe o juiz em relatório
de atividades do projeto.
Os círculos comunitários visavam, inicialmente,
atender a conflitos de vizinhança e domésticos, numa parceria
com a guarda municipal, polícia militar e Programa de Saúde
da Família. “Aos poucos, foi se estendendo e passou a atender
também conflitos que se davam nas ruas, ou entre adolescentes
e jovens e seus familiares, ou entre jovens, ocorridos nas escolas municipais
ou particulares do bairro, não participantes do Projeto Justiça
e Educação.”
No final daquele ano, 50 pessoas operavam círculos
nas 12 escolas, a maioria delas professores, e seis no fórum,
todas com base no modelo CNV. Vinte voluntários operavam círculos
comunitários no bairro de Nova Gerty, utilizando o modelo Zwelethemba.
Dezessete lideranças educacionais, duas supervisoras, uma vice-diretora
e uma professora foram capacitadas para acompanhar e apoiar o processo
nas escolas.
Rezende conta que o objetivo é construir mecanismos
para possibilitar uma participação maior. “No momento,
inclusive, tentamos adquirir equipamentos tecnológicos para que
a vítima possa ficar em espaços separados dos adolescentes
quando ela não quiser ter contato.”
O juiz refletiu com a equipe sobre as ações
desenvolvidas até então, visando novos ajustes e aperfeiçoamentos
e chegou à necessidade de dois grandes movimentos complementares
para que o projeto pudesse contribuir no delineamento de uma política
nacional de implementação da Justiça Restaurativa:
a maior opção de técnicas restaurativas passíveis
de serem utilizadas e a maior complementaridade e articulação
entre as diversas instâncias de resolução de conflitos
(escolar, comunitária, judiciária) e técnicas utilizadas,
com fluxos melhor definidos.
Decidiu-se, então, criar uma denominação
específica para o papel que todo ator social assume quando se
defronta com autores de atos ofensivos, violentos ou com os receptores
desses atos e tem a tarefa de acolhê-los e encaminhá-los.
O nome escolhido foi derivador. Foram considerados derivadores no projeto:
juiz, promotores de justiça, diretores de escola, assistentes
sociais do fórum, guardas e polícia, agentes comunitários
de saúde, conselheiros tutelares, advogados, grupos de suporte
a minorias e de atendimento a drogadição e alcoolismo.
Os facilitadores de justiça/de práticas restaurativas
também eram considerados derivadores quando não atuavam
nos casos, mas encaminhavam situações de conflito para
os círculos. Todos passaram a receber capacitação
específica em derivação.
Em dezembro, a capacitação de facilitadores
de de práticas restaurativas e de lideranças educacionais
foi retomada, graças ao apoio financeiro da SEE de São
Paulo, por meio da Fundação para o Desenvolvimento da
Educação (FDE). O projeto, reestruturado, foi apresentado
com novo nome Justiça Restaurativa e Comunitária em São
Caetano do Sul: parceria pela Cidadania.
Marcos normativos
Além do Código de Processo Penal, da Lei
9099/95, que regulamenta os Juizados Especiais Criminais, e do Estatuto
da Criança e do Adolescente, outros marcos normativos embasaram
o projeto de São Caetano do Sul: a Resolução do
Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (nº
12/2002), a Convenção das Nações Unidas
sobre direitos das crianças, as Regras de Beijing (Regras Mínimas
das Nações Unidas para a Administração da
Justiça da Infância e da Juventude) e Diretrizes de Riad
(Diretrizes das Nações Unidas para a prevenção
da delinqüência).
Nesta última, coloca-se o desafio da participação
juvenil na administração da justiça, como facilitadores
de justiça. Rezende conta que isso aconteceu. “Tivemos
os que foram capacitados sem nunca terem participado de círculos
e os que participaram de círculos e depois foram capacitados.”
Leia abaixo entrevista com um destes jovens.
Depois de três anos de projeto, foram realizados
260 círculos, 231 chegaram a acordos, dos quais 223 foram cumpridos.
Trinta e dois aconteceram no fórum, 160 nas escolas e 51 na comunidade.
O projeto gerou práticas e conhecimentos consolidados em uma
proposta de tecnologia social que está sendo aplicada e recriada
em outros municípios do Estado de São Paulo. Este é
o caso do Projeto Justiça e Educação: parceria
para a cidadania, reconhecido pelo Ministério da Educação,
que repassou verbas à SEE de São Paulo. Em 2006, ele foi
expandido para Guarulhos (SP) e São Paulo (na região de
Heliópolis) e, este ano, para Campinas (SP).
Eduardo Rezende acha que ainda não existe maturidade
suficiente para a criação de um Sistema Restaurativo no
Brasil.
“Na Irlanda, eles levaram dez anos para construir
um modelo e é um país pequeno. Acho que a gente tem
um chão ainda, tem muita diversidade de contextos, de tipos
de conflitos. Temos que amadurecer mais, inclusive são poucas
as pessoas em condições de capacitar. Se for colocado
em lei, não vai ter condições de capacitar o
país inteiro. Vão ser feitas várias práticas
chamadas de restaurativas, mas que não vão ser. O modelo
não vai ter sucesso porque não terá sido bem
implementado e isso não é favorável para ninguém”,
justifica.
Ele conclui lembrando que o conflito sempre vai existir.
“Achamos que o conflito não só
faz parte da vida como é positivo, ele mostra divergência,
traz inovação, mostra o desejo de transformação.
O que esperamos é que haja conflitos menos violentos. Vamos
criar mecanismos inovadores para que eles não sejam considerados
como criminosos, infracionais, para que possam ser resolvidos em outros
moldes. Acho que trabalhar com a dimensão privada do conflito
tem gerado um outro perfil de atuação da justiça.”
Jovem facilitador de justiça
Peter Farias do Nascimento, 19 anos, é auxiliar
administrativo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – Secção
São Paulo. Ele e outros dois jovens foram capacitados para facilitar
círculos no piloto de JR em São Caetano do Sul. Mas, antes
disso, em 2005, o jovem participou do projeto como parte envolvida.
“Foi apenas uma discussão de escola. Alguns colegas tinham
problemas com uma menina da sala, não aceitavam muito bem, até
que um dia todos alteraram a voz. Não houve agressão física,
mas psicológica, o que geralmente é pior. Como o problema
era com a sala em geral, fui o representante. Fomos convidados pela
coordenadora para participar do projeto e aceitamos”, conta.
O jovem fazia estágio no fórum e foi convidado
pelo juiz Eduardo Rezende e pela coordenadora da escola, Janice, para
participar como voluntário. “Aceitei porque me interessei
pelo projeto e por seus resultados, além de ser uma experiência
nova dentro da aérea, na qual pretendo me especializar. O procedimento
é interessante porque permite que as partes reflitam. É
como se voltassem para a situação, têm que repetir
o que falaram e, neste momento, normalmente, é quando bate o
arrependimento. Estes conflitos surgem, por alguma necessidade da pessoa
que não foi alcançada, é aonde vamos trabalhar.”
A capacitação foi realizada em diferentes
escolas e Peter a define como dinâmica, devido às aulas
práticas, às visitas de estrangeiros e à troca
de experiências. O jovem participou de círculos restaurativos
na escola e no fórum, todos com menores de idade. “Se tiver
alguém que não os intimide, que compreenda e que tenha
o mesmo linguajar, fluirá melhor. Trouxe bons resultados, que
pude aplicar no meu cotidiano. Um deles foi saber ouvir, assim ficou
muito mais fácil ajudar o próximo”, conclui.
Fonte:
Senac - Setor 3
_____________________
Serviço:
Associação
Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores
Públicos
Projeto de São
Paulo leva a Justiça Restaurativa para dentro das escolas e das
Varas da Infância e da Juventude
Alexandre Saconi
Um rapaz saiu recentemente do Centro de Detenção
Provisória da Vila Prudente, zona leste de São Paulo.
Ficou preso sete meses. Sem provas, sem ter cometido nenhum crime. Após
esse período, foram reunidas indícios suficientes para
mostrar sua inocência. Como solucionar isso da melhor forma possível?
E se houvesse a oportunidade de reunir todos os envolvidos para conversarem
e escolherem a melhor saída? O desafio é dar autonomia
para que as pessoas possam resolver seus conflitos sem a interferência
de outros, como a polícia, advogados ou juízes. Assim
nasceu o programa Justiça e Educação:
uma parceria para a cidadania, com o objetivo de levar
a justiça restaurativa (JR) para dentro das escolas e das Varas
da Infância e da Juventude dentro do Estado de São Paulo
e difundí-la na comunidade.
Como e onde tudo começou
Justiça e Educação (JE) surgiu
em 2006 nas cidades de Guarulhos e São Paulo, após a experiência
do projeto-piloto de São Caetano do Sul. Essas duas localidades
foram escolhidas por serem de extrema importância: uma por ser
capital e a outra por ser a maior da Grande São Paulo, além
de seus juízes já conhecerem a JR.
Em Guarulhos já eram realizadas práticas
restaurativas desde 2003. De acordo com a apostila das oficinas de capacitação,
houve uma redução do nível de processos de mais
de 6.000, em 2004, para menos de 3.100, em 2006. Já, em São
Paulo, Heliópolis foi a região escolhida por apresentar
uma estruturação mais definida de sua rede de apoio e
de sua proximidade (divisa) com São Caetano do Sul. Isso permitiu
a integração entre os projetos, porque muitas vezes o
garoto de uma localidade estuda ou comete algum ato infracional - termo
utilizado quando jovem com idade inferior a 18 anos desrespeita a lei
- na outra região.
O JE mantém seu foco de atuação
com a criança e o adolescente. Trabalha em duas frentes: na implementação
de mudanças institucionais e educacionais dentro das escolas
e das Varas da Infância e da Juventude e no fortalecimento da
rede de apoio a estes jovens (entidades públicas ou privadas
da área de defesa dos seus direitos).
No início do projeto, o foco em Guarulhos foi
a atuação dentro da Vara da Infância e da Juventude
e nas escolas sob a coordenação da Diretoria de Ensino
(DE) de Guarulhos - Região Norte. Em São Paulo, o trabalho
aconteceu dentro das escolas da regional Centro-Sul da DE da capital
e com jovens de Heliópolis que tenham cometido algum ato infracional
em qualquer região da cidade ou aqueles de qualquer local que
tenham cometido algo dentro de Heliópolis.
O projeto iniciou-se com a parceria entre o Poder Judiciário
do Estado de São Paulo e a Secretaria da Educação
do Estado de São Paulo (SEE) que recebeu recursos da Fundação
para o Desenvolvimento da Educação (FDE) e da Coordenadoria
de Ensino da Grande São Paulo (COGSP) em convênio com o
Fundo Nacional de Desenvolvimento e o ministério da Educação
e Cultura para que fosse implementado em 20 escolas no segundo semestre.
A SEE continuará investindo no projeto por considerá-lo
uma forma de transformar as escolas em espaços democráticos
para a construção de uma cultura de não-violência
e de uma educação à sustentabilidade.
De acordo com a assessoria de imprensa da FDE, a Fundação
é responsável pela coordenação do projeto
juntamente com as dirigentes de Ensino e acompanha os trabalhos e as
práticas desenvolvidas na rede de escolas. As ações
são acompanhadas por um juiz de Direito, um técnico do
Departamento de Prevenção e um especialista do Centro
de Criação de Imagem Popular (Cecip). “A FDE solicita
listas de presença e relatórios de progresso elaborados
pela instituição contratada sobre cada uma das oficinas
de lideranças educacionais e facilitadores de práticas
restaurativas”, declara. A coordenação pedagógica
do projeto acontece pelas reuniões sistemáticas entre
as Diretorias de Ensino e os setores da Diretoria de Projetos Especiais
da FDE.
O judiciário selecionou as regiões e as
varas especiais para a implementação do projeto e autoriza
juízes a investirem seu tempo nesta iniciativa, além de
interagir e facilitar os encaminhamentos às redes de apoio de
cada local. O poder executivo (responsável pela FDE e pela SEE)
ficou responsável por captar verbas necessárias ao projeto;
consultar as Diretorias de Ensino das regiões em que os juízes
definiram como foco de atuação para a implementação
do JE; fornecer todo o tipo de material, aparato e tempo dos funcionários
empenhados; além de viabilizar e promover a articulação
e a cooperação entre os atores envolvidos para difundir
essa prática no meio escolar.
O projeto guia-se por uma estrutura comum. O sistema
utilizado para a prática restaurativa é o de círculos
restaurativos, na qual um facilitador faz a intermediação
do encontro entre o autor do ato ofensivo, o receptor e a comunidade
direta ou indiretamente afetada. Depois de identificada a necessidade
do círculo, os profissionais designados que possuem conhecimentos
específicos sobre as práticas restaurativas realizam inicialmente
o pré-círculo, que consiste em entrar em contato com todos
os envolvidos, apresentar a proposta a eles e questioná-los se
desejam participar ou não do próximo passo, que é
o círculo em si. É importante ressaltar que a participação
é voluntária. Se o receptor ou o autor do ato em questão
não quiser participar, o círculo não ocorre. Ninguém
pode ser coagido a participar desta atividade.
Após esta etapa, será gerado um acordo
para registrar os compromissos que cada parte assumiu para si dali em
diante. Um profissional designado entrará novamente em contato
com todos os participantes para verificar se o acordo está sendo
cumprido. Caso não esteja, cabe àquele que se sentir injustiçado
recorrer à Justiça Penal.
Com a boa avaliação do projeto, no dia
6 de agosto, institui-se uma comissão permanente pela SEE para
estudar e propor medidas de implementação do projeto em
outras escolas da rede de ensino público estadual de São
Paulo. Um dos primeiros pólos fora da capital e da Grande São
Paulo foi Campinas, onde o juiz Dr. Richard Pae Kim se encontra à
frente do projeto.
Facilitadores e lideranças
O sucesso do projeto depende muito dos profissionais
capacitados para realizarem os círculos restaurativos. Eles participam
de oficinas para discutirem suas experiências e para aperfeiçoarem
seus conhecimentos.
No JE existem dois eixos de capacitação:
um pólo focado nos facilitadores dos círculos restaurativos
e outro nas lideranças. Os facilitadores são aqueles que
realizam os círculos diretamente dentro das escolas, comunidades,
fóruns, etc. As lideranças são responsáveis
pelas mudanças institucionais nos locais onde os círculos
ocorrem. São esses também que irão divulgar e proporcionar
meios para que os círculos aconteçam, levando essa prática
ao conhecimento de todos em volta.
O método escolhido no projeto foi o do professor
Howard Zehr. O centro internacional de Comunicação Não-Violenta
(CNVBrasil), pelo diretor do Projeto de Justiça Restaurativa,
Dominic Barter, foi um dos principais atores na capacitação
dos facilitadores. Ele também é responsável pela
formação da equipe ligada ao projeto Justiça para
o Século XXI, em Porto Alegre.
As lideranças são capacitadas pelo CECIP,
responsável pelo apoio às mudanças nas escolas
e formação das lideranças educacionais. Segundo
Monica Mumme, coordenadora do projeto pelo CECIP, o objetivo da formação
das lideranças não é modificar o sistema disciplinar
da escola, mas sugerir alternativas de resolução de conflitos.
Ela dá o exemplo de propor uma reflexão sobre o papel
da prática disciplinar e sua função na prática
educativa. Para isso, são utilizados uma cartilha, um CD e um
DVD, elaborados pelo Centro para o projeto no qual cada um dos membros
envolvidos descreve seu papel, suas atribuições e suas
dificuldades. A cartilha pode ser baixada em formato pdf gratuitamente
no site.
Barter visa preparar pessoas para formar outras, já
que a JR não é prática nova no Brasil. "Enxergamos
a possibilidade de dar mais um passo rumo à autonomia em dar
capacitação para essas pessoas. Estamos criando várias
formas de apoiá-las. O mais óbvio é a formação
de equipes. Alguns começam a compartilhar a capacitação
comigo. Eu fico no papel de supervisão deles e estas supervisionam
outros facilitadores", explica.
Um dos impasses encontrados pelos capacitadores reside
na mudança de valores e da cultura em que os indivíduos
estão inseridos. Nas palavras de Mônica, seria “ressignificar
as relações”. Ou seja, “Não é
retirar a hierarquia, pois em certo grau ela é necessária,
mas humanizá-las. Dentro do círculo há um poder
compartilhado entre todos os participantes. Não é por
ser professor que isso queira dizer que sou dono da verdade.”
Na escola
Aquele mesmo jovem que foi preso, após sair do
Centro de Detenção, tentou retomar o controle sobre sua
vida e pediu ajuda à instituição que trabalha com
os jovens de seu bairro. Essa entidade conseguiu um emprego para ele
em um supermercado. Os empregadores o aceitaram com uma condição:
que ele estivesse estudando. Sem pensar duas vezes, ele topou e se matriculou
novamente na escola para concluir seus estudos. Como forma de comprovar
freqüência, ele precisava levar um papel assinado da escola.
No início não pareceu ser tão fácil,
pois já estava fora da idade escolar e ficou encarcerado durante
sete meses. Ele se esforçou para conciliar as dificuldades de
sua vida pessoa, seu trabalho e seus estudos. Certo dia ele se desentendeu
com a professora, o que gerou uma situação de desconforto
entre ambos. Isso pode ter provocado diversas reflexões e inúmeras
interpretações dos motivos que levaram cada um a agir
daquela forma. Por sorte, essa escola era uma das escolhidas para o
projeto JE em Heliópolis.
No ambiente escolar, o objetivo da JR é resolver
os problemas ali mesmo onde eles ocorrem, sem a necessidade de levá-los
adiante ou de delegar a solução deste para outras pessoas.
O caso acima pode ser citado como exemplo disso. Antes que os conflitos
tomem proporções maiores, como uma agressão física
e acabe em uma delegacia, onde será gerado um boletim de ocorrência
e, conseqüentemente, encaminhado a uma Vara especializada neste
tipo de ato. O problema poderia ser resolvido diretamente ali, na escola.
Na prática, quando há um conflito na escola,
não quer dizer que ele se restrinja àquele lugar. Segundo
Edmundo Barboza Silva, facilitador de círculos restaurativos
em escolas e na comunidade de Heliópolis, “se o garoto
anda armado na escola, não é de se alarmar, pois ele também
anda armado na comunidade. Então, a escola não é
‘aquela’ coisa, tão diferente. Ela é uma extensão,
o menino passa grande parte do tempo dele lá”. Por isso
ressalta-se a importância de integrar este trabalho com a comunidade
também, porque os valores são levados de um ambiente para
o outro.
A escola deve fornecer um caminho para que as pessoas
solicitem isso. Em alguns casos, por exemplo, registra-se em um caderno
o pedido e o nome das pessoas envolvidas no ato. Cada lugar estabelece
a forma mais adequada, mas o fundamental é fornecer o caminho
para viabilizar a solicitação.
O círculo não vem para mudar a rotina
disciplinar da escola, como advertências, suspensões ou
expulsões, mas pretende ser uma alternativa para estes sem substituí-los
necessariamente. Parte-se do princípio que, se os envolvidos
se conscientizarem de seus atos, a punição mais severa
seja desnecessária. Para isso, é necessário que
o círculo em si seja bem realizado. O facilitador irá
reunir a comunidade afetada (que pode ser o público da escola,
alguém que viu, um grupo de funcionários etc), o receptor
e o emissor do ato ofensivo. Cada um poderá expor o que interpretou
do ocorrido e dizer como se sentiu.
No final do círculo é feito um acordo
em que cada parte irá assumir uma série de compromissos
para que dali em diante esse conflito ou outro similar não se
repita. Logo em seguida, uma pessoa capacitada em JR entrará
em contato com todos os participantes do círculo em questão
para acompanhar se está tudo certo. Em qualquer momento, uma
das partes que se sentir injustiçada pode buscar outros meios
legais de se fazer respeitar e de concretizar a justiça. Tanto
que o acordo final é enviado para o juiz verificar se não
houve abuso das partes na hora de fechá-lo.
Não volto para a cadeia
A história do garoto que está sendo contada
aqui teve um processo de resolução um pouco diferente
do planejado. Após constatação do desentendimento,
a escola entrou em contato com o Dr. Egberto Penido, juiz responsável
pelo projeto. Ao perceber que o problema não precisava ir para
o fórum, que poderia ser solucionado ali mesmo, entrou em contato
com os profissionais das entidades sociais da rede de apoio para que
eles propusessem o círculo entre os envolvidos.
Depois da proposta aceita, os profissionais foram para
escola para conversar com todos e apresentar a proposta do processo
restaurativo. Porém, a situação encontrada já
havia ido além das paredes da sala de aula. Naquele momento,
os professores estavam discutindo em frente ao aluno sua expulsão.
A diretora chamou a professora para participar da discussão também.
A postura de ambos gerou um conflito mais rígido
e os dois começaram a se ofender mutuamente. Os profissionais
da rede de apoio propuseram um círculo restaurativo para os participantes.
A professora disse não acreditar que um círculo restaurativo
naquele momento pudesse resolver aquela situação e o garoto
estava na defensiva.
Um dos educadores da escola resolver que iria chamar
a polícia caso o aluno não se controlasse e parasse de
fazer ameaças. Diante disso ele fez uma fala que foi o ponto
alto de toda essa discussão: “Você pode até
chamar a polícia, mas eu não volto para a prisão.
Nem mesmo que para isso eu tenha que morrer! Se for o caso, eu vou morrer”,
disse. Todos ficaram em silêncio. Os profissionais da rede de
apoio explicaram os problemas pessoais do jovem e suas dificuldades
depois de sua saída do CDP. No final, todos chegaram a um acordo.
Mesmo sem ter sido um círculo restaurativo nos
padrões comuns, no passo a passo descrito, houve o contato prévio
com todas as partes. Todos se reuniram, discutiram e tiraram medidas
para serem tomadas. Ainda que não haja o acompanhamento formal,
todos se sensibilizaram com os problemas apresentados. O jovem mostrou
como foi sua vida e o motivo que o fez agir daquela forma. Também
percebeu que a professora tem uma história de vida e passou por
uma situação delicada na frente dos alunos.
Cabe questionar novamente: Prender resolveria?
Esta conversa que todos tiveram não foi importante para que cada
um percebesse seu papel nas relações uns com os outros?
Essa é a proposta da JR: não substituir, mas propor alternativas
à resolução dos conflitos. Todos têm o potencial,
mas caso uma das partes não queira, essa pode dar entrada no
fórum ou fazer um Boletim de Ocorrência. Mas, felizmente,
não é isso que esse projeto pretende.
Fonte:
Senac - Setor 3
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