21/09/2008
Muitos brasileiros que jogam por clubes de futebol
europeus são membros de congregações pentecostais
e estão determinados a divulgar sua fé. Apesar dos jogadores
terem que doar um décimo de sua renda considerável para
suas igrejas, eles freqüentemente não sabem onde vai parar
o dinheiro
por Cathrin Gilbert
Marcelo Bordon, um zagueiro de
futebol, é um verdadeiro urso. Ele está sentado no restaurante
de propriedade do Schalke 04, o time da Bundesliga (o campeonato alemão
de futebol) no qual joga. Com seu cabelo alisado para trás, corpo
musculoso e tatuagens, ele poderia facilmente se passar por um guarda
de prisão em Nova Jersey. Mas ele fala suavemente, explicando
o amor que o ajuda quando está em dificuldades, e sobre aquele
que sempre esteve lá para ajudá-lo, desde que entrou na
sua vida.
Bordon fala do Espírito Santo.
O brasileiro de Ribeirão Preto, que veio para
a Alemanha em 1999, é um evangélico. Ele é membro
de uma igreja pentecostal carismática, que prega um respeito
rígido à Bíblia e um "relacionamento pessoal
com Deus". Esta é, segundo ele, a única igreja verdadeira
de Jesus Cristo. Bordon, 32 anos, exibe uma tatuagem entre seus ombros,
com as palavras "Jesus é minha Força" gravadas
em sua pele em letra ornada.
A Bíblia nos diz para sermos soldados de Deus,
ele diz, tomando um suco de maçã.
Cerca de 35 milhões de brasileiros - quase um
entre cinco - são evangélicos. O número deles cresce
em dois milhões ao ano, e 70% deles são, como Bordon,
membros de congregações pentecostais carismáticas.
Há 40 anos, o Brasil ainda era um país
90% católico. Mas agora que os evangélicos mudaram seu
foco da conversão dos pobres para a pregação de
que a riqueza e o consumo são sinais de verdadeira fé,
eles estão começando a ter apelo junto a artistas, políticos
e atletas bem remunerados. Os jogadores de futebol, uma das exportações
mais bem-sucedidas do Brasil, estão levando sua fé para
o mundo.
No passado, eram jogadores como Jorginho e Paulo Sérgio
do Bayer Leverkusen que convidavam publicamente outros jogadores para
participarem dos grupos de discussão da Bíblia. Depois
disso, jogadores como Zé Roberto e Lúcio do Bayern de
Munique, ou Cacau do Stuttgart, exibiam suas camisetas brancas com frases
como "Jesus Te Ama" após cada gol em uma partida da
Bundesliga. Eles tiravam mecanicamente a camisa do seu time que vestiam
sobre suas camisetas de Jesus.
Agora que a Fifa, a Federação Internacional
de Futebol, proibiu toda declaração política e
religiosa no material esportivo dos jogadores, os evangélicos
passaram a celebrar de forma mais discreta. O meio-campista Gilberto,
que jogou pelo Hertha BSC de Berlim até janeiro, agora reza em
Londres, no Tottenham Hotspur, o jogador Edmílson ora em Villarreal,
Espanha, Cris, em Lyon, Luisão, em Lisboa, e o astro Kaká,
em Milão.
Eles pregam com a ajuda do ouro brasileiro, o futebol,
que une as pessoas. Do ponto de vista das congregações,
é uma estratégia de marketing eficaz.
As igrejas do movimento pentecostal carismático,
que se espalharam pelo Brasil vindas dos Estados Unidos na primeira
metade do século 20, se chamam Assembléias de Deus, Renascer
em Cristo ou Igreja Universal do Reino de Deus. Algumas já se
espalharam para mais de 70 países. Todos os membros compartilham
a crença de que Jesus entrou em seus corpos na forma do Espírito
Santo.
Bordon, o capitão do Schalke, se juntou a outros
evangélicos na Bundesliga, assim como cerca de 100 outros atletas
do Brasil e formaram uma organização chamada Atletas de
Cristo. A missão deles, como declarada em seu site, é
converter o mundo ao cristianismo. Quando dispõe de tempo, Bordon
se encontra com seus irmãos para cultos religiosos.
No campo de treinamento, Bordon convidou o manager do
Schalke, Andreas Müller, um mórmon, para participar de um
círculo bíblico. O trabalho missionário faz parte
do compromisso assumido por Bordon quando foi para a Europa como um
atleta de Cristo. "Deus queria que eu viesse para a Alemanha para
espalhar sua palavra", ele diz.
Bordon já teve um bate-boca com seu companheiro
de equipe Frank Rost. O goleiro, atualmente no Hamburgo SV, disse que
o capitão tentou voltar outros jogadores contra ele por ter se
recusado a orar com Bordon. Rost alega que Bordon disse aos treinadores
e managers que ele, Rost, o embaraçava por estar possuído
pelo diabo.
O jogador brasileiro nega. Rost e Bordon, com suas personalidades
completamente diferentes, simplesmente eram incompatíveis, diz
Müller. Mas o ex-atacante Ailton do Schalke também diz que
ocorreram discussões com Bordon que quase acabaram em socos.
Segundo Ailton, Bordon o acusou de não ter um relacionamento
pessoal com Deus e, em conseqüência, abrir o caminho para
o diabo ter acesso ao time. Mas, segundo Ailton, ele simplesmente não
acreditava na versão de Bordon para a salvação.
'O dia mais comovente da minha vida'
Ailton não permitiu que o Espírito Santo
entrasse em sua vida, diz Bordon. Para ele, isso aconteceu em 1994.
Ele estava sentado na última fileira de uma pequena igreja em
São Paulo. Os amigos o convenceram a ir junto. Ele começou
a sentir um calor em suas pernas, ele diz, naquele que considera "o
dia mais comovente da minha vida".
De repente, como recorda Bordon, seus pés começaram
a bater no chão, como se tivessem vontade própria, primeiro
lentamente, e depois cada vez mais rápido. Todos na congregação
de 400 pessoas olharam para ele, mas o pastor disse que deviam deixá-lo
marchar.
Àquela altura, diz Bordon, ele tinha conseguido
tudo o que tinha sonhado na infância: dinheiro, reconhecimento
e belas mulheres. Mas ele não se sentia realizado.
As congregações pentecostais visam membros
da classe média alta brasileira. Parte de seu objetivo, aparentemente,
é assegurar as doações dos cidadãos em boa
situação financeira. No passado, os membros eram proibidos
de beber álcool, fumar, assistir televisão ou irem ao
cinema ou teatro. Atualmente as igrejas evangélicas pregam que
a riqueza e o divertimento são compatíveis com um estilo
de vida cristão. Isso torna a fé mais atraente.
Os membros da igreja até mesmo acreditam que
a riqueza material é uma recompensa por levarem uma vida temente
a Deus. Por outro lado, eles também devem se tornar ricos para
serem bons cristãos, a lógica sendo a de que os ricos
podem doar mais dinheiro, e que aqueles que doam grandes somas de dinheiro
são boas pessoas.
'Esta fé na riqueza é viciante'
Esta expansão das igrejas evangélicas
carismáticas preocupa Reinhard Hempelmann, diretor do Centro
Protestante para Assuntos Religiosos e Ideológicos, em Berlim.
"Esta fé na riqueza é viciante." Talvez
Hempelmann, na condição de teólogo, não
seja totalmente neutro nesta questão. Ele está familiarizado
com os problemas das igrejas tradicionais, que estão perdendo
mais e mais fiéis, alguns para as comunidades pentecostais. Todo
o ser humano tem o direito de escolher seu lugar de adoração,
diz Hempelmann, mas ele desaprova a noção de comprar a
salvação.
Bordon está familiarizado com essas críticas.
Ele pergunta o que há de errado em ajudar os membros mais fracos
da sociedade a ganharem estrutura em suas vidas. Os evangélicos
doam 10% de sua renda para a igreja e acreditam que quanto maior a oferta,
maiores são suas chances de assegurar felicidade e sucesso. Segundo
estimativas do Brasil, o Jogador do Ano pela Fifa, Kaká do Milan,
envia cerca de US$ 1,1 milhão para o Brasil a cada ano. É
visto como um sinal de Deus - e de que ele provavelmente doou muito
pouco - quando um jogador não tem sucesso ou se machuca. A oferta
de 10% da renda é um "sinal da lealdade do homem a Deus",
prega a Igreja Universal.
Aqueles que se recusam a pagar estão enganando
a Deus e podem esperar que o diabo domine suas vidas. Isso é
apenas uma teologia de acúmulo de riqueza, dizem sarcasticamente
críticos como Alexandre Fonseca, da Universidade de São
Paulo.
Os membros não sabem o que acontece exatamente
com suas doações, que pagam até com cartão
de crédito ou cartão de débito. Bordon diz que
não tem como monitorar o que acontece com seu dinheiro. Ele presume
que é investido em centros comunitários nas áreas
pobres, em comida para os irmãos e irmãs e em educação.
"Mas confiar não faz parte da fé?" ele pergunta.
Em 2005, um bispo evangélico foi preso quando
seu jato particular pousou em Brasília. A polícia revistou
sua bagagem e apreendeu sete mala cheias com aproximadamente R$ 10 milhões
em notas pequenas. O bispo, Ramos da Silva, explicou que dinheiro era
o dízimo do fim de semana das congregações da região
amazônica, uma das mais pobres do Brasil.
Um ano e meio atrás, a polícia nos Estados
Unidos prendeu Estevam e Sônia Hernandes, o casal que fundou a
Igreja Renascer em Cristo, com US$ 56 mil em sua bagagem. Eles foram
sentenciados a cinco meses de prisão por contrabando de dinheiro
ao país. Eles estão sob investigação no
Brasil por lavagem de dinheiro. O Ministério Público de
São Paulo também contatou as autoridades na Itália
para levantar o relacionamento entre o jogador Kaká e o casal
de bispos, cujo patrimônio é estimado em US$ 75 milhões.
Acredita-se que Kaká também visitava frequentemente
o casal Hernandes na mansão deles em São Paulo. Ele doou
o troféu que recebeu da Fifa em dezembro para a Igreja, durante
uma cerimônia. Ele agora está exibido no principal prédio
da Igreja, em São Paulo, onde Kaká se casou em 2005. A
lista de convidados incluiu Ronaldo, o ex-jogador da Seleção
Brasileira, e Zé Roberto, do Bayern de Munique. Os filhos do
casal Hernandes foram os padrinhos. Kaká não se impressionou
com as acusações contra os líderes de sua Igreja.
"Eu nunca, nem por um momento, questiono a honestidade e integridade
deles", ele disse, mesmo após a condenação
dos bispos.
Construindo um império de mídia
Bordon diz que soube dos problemas na Renascer em Cristo,
mas que não sabe o que pensar a respeito. O que é importante
para ele, ele diz, é que seus companheiros encontrem o caminho
para o Senhor.
O jogador do Bayern de Munique, Lúcio, não
tem receio em promover sua fé. O Audi que dirige, que é
de propriedade do clube, está adornado com um adesivo que proclama
seu lema: "Jesus Te Ama". A direção do clube,
incluindo o manager Uli Hoeness, não se incomoda com isso. Para
eles, os brasileiros são atletas profissionais modelos. Eles
não deixam as festas de Natal do clube mais cedo para passar
a noite farreando em clubes, possuem vida familiar estável e
não se embebedam na Oktoberfest anual.
Os evangélicos construíram um pequeno
império de mídia no Brasil. Em 1989, a Igreja Universal
do Reino de Deus comprou a Record, uma rede de rádio e televisão,
pelo equivalente a US$ 62 milhões. Ela agora é dona de
cerca de 60 emissoras de rádio, um jornal, uma editora e uma
gravadora especializada em música gospel.
A TV Record exibe regularmente os cultos religiosos.
Ela conseguiu atrair importantes apresentadores de emissoras rivais,
enquanto autores conhecidos fornecem roteiros para suas novelas. Hoje
a Record é a segunda maior rede de televisão do Brasil
e tem planos para desenvolver uma espécie de versão pentecostal
carismática da CNN, que transmitiria em espanhol e inglês.
Assim, diz Edir Macedo Bezerra, o fundador da Igreja Universal, o evangelho
pode ser "pregado para todos os cantos da Terra".
Mas até que a emissora possa rodar o mundo, os
membros da Igreja ainda pregam em ginásios ou salões de
conferência não adornados, como fizeram em uma tarde de
domingo, no segundo andar de um prédio comercial no distrito
de Zuffenhausen, em Stuttgart, em nome da comunidade cristão
evangélica brasileira. O sol está brilhando pelas janelas,
algumas poucas velas decoram a sala, há uma bateria montada no
palco e o assoalho foi varrido. Centenas de fiéis vieram ao culto.
Um homem usando óculos com armação prateada e uma
camisa xadrez está em pé à frente. Seu nome é
Jeronimo Maria Barreto Claudemir da Silva, mais conhecido como Cacau,
e é atacante do Stuttgart, um time da Bundesliga, há cinco
anos.
Os jogadores de futebol são os astros nas congregações
evangélicas alemãs. Após dizerem algumas poucas
palavras de saudação em português, que um intérprete
traduz para os alemães presentes, Cacau, 27 anos, pede que todos
abracem uns aos outros. Isso é seguido por cantos, dança
e bater de palmas. Então o jogador de futebol profissional diz
uma oração em tom sereno. A congregação
chora e os fiéis pressionam suas mãos contra os olhos
ou erguem seus braços no ar. "Em nome do Senhor, aleluia!"
eles gritam.
Em 10 minutos, Cacau, um jogador tímido, se transforma
no condutor de um show emotivo.
Aos 13 anos, o atacante diz depois, ele foi recrutado
pelo Palmeiras em São Paulo, mas foi descartado quando um novo
técnico foi contratado. Sua autoconfiança desapareceu.
Seu irmão estava fazendo uma visita a ele na época, diz
Cacau, um irmão que era viciado em bares e clubes. "Mas
de repente ele parecia diferente. Então maduro e equilibrado.
Ele me disse que seu comportamento era por causa de Jesus. Ele me levou
aos cultos. Antes disso, eu acreditava que o futebol era o centro da
minha vida."
Cacau diz que aceitou Jesus como seu salvador. Ele diz
isso de imediato e com entusiasmo, mas não tenta promover sua
fé dentro da equipe. Não, segundo ele, por ter vergonha.
Ele simplesmente não quer pressionar ninguém.
Tradução: George El Khouri Andolfato
Fonte: Der Spiegel
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