01/09/2008
Entre o mercado e o púlpito: igrejas evangélicas
crescem em território católico
Centenas de igrejas evangélicas desembarcam na Espanha com os
imigrantes. A porcentagem de protestantes na América Latina já
alcança 20% da população. Algumas organizações
fazem negócios às custas da fé
María Antonia Sánchez-Vallejo
Em Madri
Na América Latina se rompeu o monopólio
da fé. O pluralismo e a concorrência dominam o cenário
religioso; o proselitismo assume as leis do mercado - e as técnicas
de comunicação multimídia - e parte de uma paróquia
tradicional ou nominalmente católica passa para as igrejas evangélicas.
Falar em transferência maciça não é exagerado:
calcula-se que entre 10% e 20% da população sul-americana
sejam protestantes, de 20% a 30% na América Central e mais de
31% na Guatemala. Exemplos do fenômeno do fundamentalismo cristão,
as novas igrejas latinas arrastam massas populares e começam
a exportar pastores. Também para a Espanha: os imigrantes reproduzem
suas comunidades religiosas ou as criam novamente, o que os ajuda a
salvar-se do isolamento da imigração. Surgem "como
cogumelos" - nas palavras de um pastor protestante - igrejas livres,
autônomas, informais, o que também representa um risco
de penetração de seitas ou grupos de filiação
duvidosa.
O Vaticano considera uma "sangria que não
pode ser parada" a deserção dos católicos
- no caso de que o fossem anteriormente - para as fileiras protestantes
e a atribui a um "proselitismo agressivo" - os termos entre
aspas são declarações do papa Bento 16 -, mas os
evangélicos aproveitam a distância secular, na sua opinião,
entre o clero e os fiéis católicos para ganhar terreno.
São protagonistas desse fenômeno as igrejas pentecostais,
que salientam a ação direta do Espírito Santo e
seus dons - a cura, a profecia ou o dom das línguas -, o que
na prática se substancia em cerimônias participativas,
inclinadas ao êxtase coletivo. Pentecostais são os pregadores
que, na América Latina e na Espanha, dominam as ondas ou as antenas
de várias rádios e televisões locais. Pastoreiam
comunidades formadas majoritariamente por fiéis de baixo nível
social e, no caso dos imigrantes, de seres que regulam sua nova vida
através da experiência religiosa. Mas por trás de
algumas siglas ou nomes há interesses equívocos, quando
não negócios - às vezes autênticas multinacionais
- em nome da fé.
O que representa essa proliferação de
novos movimentos religiosos na América Latina? E na Espanha,
representa algum desafio? Há algum filtro, modos de garantir
a idoneidade das novas igrejas? "Na Espanha há cerca de
2.600 igrejas evangélicas, e 2.100 estão registradas em
nossa federação. O resto não se inscreve porque
é muito recente, ou porque estão em processo de constituição
ou porque não querem", afirma Mariano Blázquez, secretário-executivo
da Federação de Entidades Religiosas Evangélicas
da Espanha (Ferede), interlocutora diante do governo espanhol. À
lista de igrejas oficiais somam-se centenas de igrejas espontâneas,
às vezes efêmeras. "(No âmbito protestante)
os grupos não precisam da aprovação de um bispo
ou de uma hierarquia para funcionar. Qualquer um pode criar uma igreja,
e essa é exatamente nossa grande fraqueza. Não podemos
evitar excessos ao amparo da liberdade. O único que podemos fazer
na Ferede é explicar qual é a realidade espanhola e acompanhá-los
no processo de constituição. Os únicos limites
são a legislação espanhola e o Evangelho",
conclui Blázquez, que confirma um desembarque "difícil
de controlar". Blázquez e os demais especialistas consultados
franzem a testa quando se levanta o argumento das seitas. "Prefiro
falar de atividades delituosas ou que possam afetar a personalidade.
'Seita' não tem uma conotação jurídica,
mas por trás de algumas igrejas há atividades que podem
ser perseguidas. É isso que é preciso denunciar, trate-se
de uma igreja ou de um clube de futebol", afirma.
O representante da Ferede se refere concretamente à
Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), também denominada Pare
de Sofrer em muitos países latino-americanos e investigada no
Brasil e na República Dominicana por fraude fiscal, malversação
de fundos e suposta lavagem de dinheiro do narcotráfico, cujo
exemplo El País pôs na mesa discutir o problema das seitas.
A alusão não é gratuita. Com outro nome - Comunidade
Cristã do Espírito Santo -, a IURD está inscrita
desde 1993 no Registro de Entidades Religiosas do Ministério
da Justiça da Espanha. Mas não está na Ferede,
embora Blázquez lembre que não é obrigatório.
A que se deve a rejeição de seus pares?
"Ao mercantilismo, à perversão do Evangelho. Vendem
a água do rio Jordão e cruzes bentas, tudo isso é
alheio a nós. Mas foram eles que retiraram o pedido de registro.
É claro que de nossa parte havia certa disposição
a uma avaliação desfavorável, pois algumas de suas
práticas são discordantes."
Por exemplo, o recurso à superfé, o evangelho
da prosperidade, que se baseia em doações voluntárias
como prova de fé. Por essa via a IURD arrecada bilhões
de dólares por ano, segundo fontes fidedignas. Basta dar um clique
na página da web da Comunidade Cristã do Espírito
Santo para saltar para outra em que aparece um convite para realizar
doações, seguida de um número de conta. Não
se trata do dízimo - a contribuição de 10% do salário
para a manutenção da igreja, uma forma de autofinanciamento
nas igrejas protestantes. Vai muito além.
Mas a IURD, com a qual El País tentou entrar
em contato sem resultado, não é a única "igreja"
questionada. Também o são agrupamentos como Juventude
Com Uma Missão (JCUM), a qual o Brasil acusa de manipular indígenas
da Amazônia e que também está presente em uma dezena
de cidades espanholas, assim como registrada na Ferede e na Justiça;
o instituto Lingüístico de Verão, controversa associação
americana de difusão da Bíblia arraigada em comunidades
indígenas do Peru, México Colômbia ou Brasil, ou
finalmente o grupo missionário americano Novas Tribos, que foi
expulso da Venezuela em 2005 por ser, segundo Hugo Chávez, "agentes
de penetração imperialista".
Exemplos como este último ano poderiam propiciar
outra leitura: a perseguição por parte de regimes de esquerda
ou populistas a organizações que disputam os favores das
massas. Algo como um expurgo do populismo contra o povo.
Do povo procede a onda mais recente de fiéis
e pastores que chega à Espanha. "Os recém-chegados
têm um perfil discreto, vêm do Equador, de Honduras,"
explica Blázquez. "Nada a ver com a imigração
maciça de profissionais de 15 anos atrás, coincidindo
com a primeira crise grave da Argentina. Alguns já eram evangélicos,
outros se converteram aqui", acrescenta o representante da Ferede.
Antonio González, doutor em filosofia e teologia,
ex-colaborador do jesuíta Ignacio Ellacuría e bom conhecedor
da realidade centro-americana - viveu sete anos na Guatemala e em El
Salvador -, está de acordo:
"Os pentecostais costumam ser de classe baixa
ou mesmo de ambientes de extrema pobreza".
O pentecostalismo se arraiga entre os mais desarraigados,
embora também haja pentecostais de classe média e alta
e inclusive políticos, como o direitista guatemalteco Efraín
Ríos Montt.
"A proletarização nas grandes cidades
provoca a necessidade de recriar uma nova identidade, e as igrejas
evangélicas oferecem a oportunidade de forjar essa identidade
alternativa", conclui.
Para a maioria dos imigrantes, carentes de referências,
o fato religioso é portanto uma tábua de salvação.
"São muitos os latino-americanos que não
eram protestantes antes de vir e que se tornam evangélicos
precisamente na Espanha, pois é aqui que experimentam a proletarização
e a anomia. Também não faltam crentes que, muito fervorosos
em seus países de origem, na Espanha perdem seu fervor, talvez
devido à prosperidade econômica ou pelo desejo de ser
aceitos", continua González.
"As igrejas evangélicas representam para muitos deles
uma maneira de se integrar, mas também se corre o risco contrário,
o da criação de igrejas étnicas, isoladas. Em
nossa igreja, por exemplo, há oito latino-americanos",
afirma Pedro Tarquis, porta-voz da Aliança Evangélica
Espanhola.
"Nosso maior seguro, o maior controle, é a convivência,
e o ideal seria a interculturalidade, mesmo que sejam os filhos dos
que chegam agora que realmente se integrarão.
"Há costumes diferentes, é verdade,
mas pelo menos temos um idioma comum, coisa que não ocorre
com os emigrantes da Europa do Leste ou da Ásia", acrescenta
Tarquis, que vê nessa incorporação seiva nova
para as igrejas:
"Assim como a realidade católica nos EUA se sustenta pela
presença de imigrantes latinos, aqui na Espanha poderia se
afirmar o mesmo do movimento evangélico". Não há
cifras do número de imigrantes latino-americanos na Espanha
que professam a religião evangélica, e os do subcontinente
são aproximados, como vimos. Mas ninguém duvida do potencial
evangelizador da América Latina.
Pela primeira vez a América do Sul não
é uma terra de missão, mas um viveiro de pastores e fiéis.
"As igrejas evangélicas cresceram e seus líderes
são autóctones, não é verdade que sejam
produto da penetração americana, não mais. A região
do mundo que tem mais missionários é a América
Latina, e os manda inclusive para a América do Norte", explica
Mariano Blázquez.
"Estima-se que há mais de 9 mil missionários
latino-americanos, enviados e sustentados pela América Latina,
trabalhando em culturas diferentes da sua. Cerca de 4 mil o fazem
na Ásia, África e Europa do Leste", relata Samuel
Escobar, de origem peruana, catedrático emérito de Missionologia
no Seminário Teológico Batista da Pensilvânia
(EUA).
"A religiosidade evangélica latino-americana
é um fenômeno crescente e vigoroso", acrescenta.
"É difícil estimar com precisão quantos
protestantes há no continente, mas, por exemplo, no Peru, segundo
o censo de outubro de 2007, a população protestante
maior de 12 anos duplicou desde 1993 e hoje chega a 12,5%. No Chile
se aproximaria de 20%."
E como é a vivência religiosa dos evangélicos?
Exatamente isso, uma experiência pessoal, comunitária,
vital, que traspassa os limites do culto para se enraizar no emocional
e no cotidiano. Basta dar uma volta pelos bairros populares das grandes
cidades para constatar a mobilização: são muitas
as convocações de rua, de folheto na mão, para
cultos e reuniões "de fraternidade" que pescam, sobretudo
no calado dos jovens. Também proliferam os cartazes pregados
em portais, bocas de metrô ou faróis com apelações
ao "chamado do Evangelho". Os convocantes podem se chamar,
por exemplo, Livres x Cristo, nome que aparece em um folheto apanhado
ao acaso em um bairro de Madri com alta porcentagem de imigração
latina. "Renovação juvenil", anuncia o papel;
"música com uma mensagem de mudanças para sua vida."
Remetente: Compañerismo La Puerta. A entrada ao ato, com músicas
e obras de teatro, é grátis.
"A atração das igrejas pentecostais
é a de uma fé pessoal, compreensível, fortemente
vivencial, diante da experiência mais anódina, autoritária,
fria, que costumam ter muitos latino-americanos na Igreja Católica.
Inclusive quando o sacerdote procede de meios muito populares sua
formação o distancia de suas origens mais que os pastores
pentecostais, que permanecem mais próximos de suas raízes.
E normalmente a Igreja Católica, quando se interessa pelos
pobres, não pode deixar de adotar uma atitude paternalista
devido à forte diferença de classes que há entre
seus líderes e seus fiéis", salienta Antonio González,
conhecedor do contexto católico, tentando explicar as razões
do sucesso do protestantismo na América Latina.
"Uma estudiosa pentecostal americana afirma que
os latino-americanos quando se tornam pentecostais deixam de ser psicologicamente
pobres, embora na verdade continuem sendo", conclui González,
professor de teologia no Seminário Evangélico Unido
de El Escorial (Madri) e responsável por estudos e publicações
da Fundação Zubiri.
Inclusive quando algumas dessas igrejas são às
vezes "mais conservadoras que as européias",
lembra Blázquez, em geral inoculam no crente "um estilo
de vida mais disciplinado - sem álcool, etc. -, o sentimento
de ajuda mútua, um apoio decidido a suas iniciativas vitais,
a assumir riscos econômicos, etc.", conta González.
"As populações que adotam o protestantismo
são populações que prosperam, porque aprendem
a ler, a respeitar suas mulheres e adotam uma ética de trabalho
que os faz progredir", comenta Tarquis.
Assim que, radicalmente livres, refratárias ao
poder, pois na estrutura evangélica não existe hierarquia
- não há bispos que nomeiem nem cúria que proíba
- e à margem das denominações tradicionais - batistas,
presbiterianos, metodistas -, as novas igrejas latino-americanas são
protagonistas de um fenômeno sociológico incipiente na
Espanha. Sem controle, mas também sem pausa. Entre o culto conservador
e a mensagem apocalíptica próxima do milenarismo, 99%
das novas igrejas que brotam em nossos bairros também desempenham
um trabalho social: proporcionam coesão, amparo, apoio econômico
ou uma mão estendida na hora de cuidar das crianças. Umas
poucas, porém, quase não conseguem mascarar traços
suspeitos, da liderança onipotente ao som incessante da caixa
registradora.
"As possibilidades de manipulação
são limitadas. É verdade que na América Latina
o pastor protestante pode adquirir os traços do velho caudilho,
mas ao mesmo tempo tem de ganhar autoridade continuamente, não
é sacerdote no sentido de pessoa sagrada", aponta Antonio
González.
Embora o protestantismo consagre a liberdade e a autonomia,
não há nenhuma maneira de exercer certo controle, ou pelo
menos uma supervisão de suas atividades e seus fins? Para González,
a melhor salvaguarda diante de irregularidades é o "princípio
bíblico: o pastor pode ser julgado à luz da Bíblia",
embora também reconheça que os abusos mais freqüentes
têm sido "do tipo econômico".
Pedro Tarquis propôs em sua época submeter
a auditorias a atuação das igrejas da Aliança Evangélica
Espanhola, "sobretudo as que já têm um volume
de fiéis considerável". Não fizeram caso:
sua iniciativa foi vista como uma veleidade de Torquemada, "como
uma tentativa de impor uma hierarquia". Em consonância
com Tarquis, Samuel Escobar, que passa por ser a autoridade máxima
na matéria, não tem dúvidas sobre o método
a seguir para abortar irregularidades.
"É preciso um consenso social em relação
aos limites da liberdade de que gozamos. Agora mesmo nos EUA o senador
republicano por Iowa Chuck Grassley conduz uma investigação
sobre as manipulações financeiras de seis corporações
religiosas que cresceram de maneira notável e mantêm
atividade comercial vigorosa. Quatro delas se negaram a responder
à investigação", conta Escobar.
Igrejas livres? Igrejas "abusivas", na definição
do teólogo evangélico americano Pat Zukeran? Ou multinacionais
da fé?
Já vai longe a época em que se via a penetração
evangélica como um instrumento da CIA - outra teoria que ainda
persiste a considera um contrapeso intencional à Teologia da
Libertação -, parece que as igrejas, evangélicas
ou não, se rendem aos métodos e às vezes aos fins
do mercado. Do outro lado do charco e sem ir tão longe, como
lembra o teólogo Escobar: "Como seu próprio jornal
informa, o deputado socialista José Camarasa está tentando
nos esclarecer os relatórios financeiros relativos à visita
do papa a Valência em 2006". Por alusões evangélicas,
quem não tiver culpa.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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