22/08/2008
Um movimento subterrâneo luta pela igualdade
da mulher na Igreja
José Luis Barbería
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2008/08/16/ult581u2743.jhtm
"Em nome da Mãe, da Filha e da Espírito
Santo. Deusa nossa, acolhe a nós, cristãs... Mãe
nossa que estás no céu..."
As teólogas feministas nos propõem
inverter, subverter a linguagem de gênero da liturgia católica
para que comprovemos a apropriação masculina da própria
idéia de Deus realizada através dos séculos. Pensam
que, de tanto representar o Altíssimo com figuras masculinas
e de excluir a mulher dos estamentos do poder religioso, as hierarquias
católicas acabaram "violando a imagem de Deus nas mulheres",
apagando a parte feminina do Supremo Criador.
Poucas imagens podem ser tão obscenas em nossas
sociedades católicas quanto a exposição pública
de uma mulher nua pregada na cruz. E poucas coisas irritam tanto o Vaticano
quanto o questionamento do papel atribuído à mulher na
Igreja.
"A ordenação das mulheres é
o primeiro passo para recomeçar a comunidade de iguais que
Jesus queria. A Igreja se empobrece clamorosamente pela carência
de uma contribuição feminina mais plena e responsável",
indica a freira María José Arana, antiga pároca
da Congregação do Sagrado Coração, doutora
em história e autora do livro "Mulheres Sacerdotes,
Por Que Não?"
Há uma revolta feminista que é travada
surdamente há décadas nas catacumbas da Igreja oficial,
uma rebelião seguida clandestinamente em não poucos conventos,
que o Monitum (advertência canônica oficial) editado há
seis anos pelo então prefeito da Congregação para
a Doutrina da Fé (antiga Inquisição) e hoje papa,
Joseph Ratzinger, não conseguiu silenciar nem as posteriores
ameaças de excomungar quem participasse da ordenação
de mulheres. A democratização-feminilização
modificaria sem dúvida a visão interior e exterior da
Igreja e desbarataria a trama vertical do poder: bispo, cardeal, sumo
pontífice, de forma que a eleição do papa, ou papisa,
não mais caberia apenas aos 118 homens purpurados cardinalícios
reunidos em conclave.
Portanto, compreende-se que o recente livro de Carlo
María Martini, "Colóquios Noturnos em Jerusalém",
tenha tido o efeito perturbador da pedra atirada às águas
doutrinárias estancadas. Figura de referência para as correntes
reformistas, embora já condenado pelo papado, o cardeal convidou
seus pares, príncipes da Igreja, a discutir o sacerdócio
feminino, o fim do celibato obrigatório e a substituição
da encíclica Humanae Vitae, que proíbe inclusive o uso
do preservativo. São mensagens de esperança para essa
outra Igreja de base, renovadora, que não se reconhece em sua
hierarquia atual.
Mas, com exceção do presidente da Conferência
Episcopal alemã, o arcebispo Robert Zollitsch, partidário
da revisão do celibato, as propostas de Martini não obtiveram
resposta além do silêncio do Vaticano e das hierarquias
nacionais. Isso que as pesquisas mostram, também na Espanha,
que onde a autoridade católica encontra escândalo e matéria
de anátema os fiéis vêem aproximação
de uma sociedade que aboliu a discriminação do sexo. É
tão audaz a proposta de Martini em uma Igreja de templos abandonados,
sacerdotes idosos e vocações escassas, composta em 75%
por mulheres?
Não é preciso ser mulher e crente para
constatar que as pregações e litanias, os cânticos
e as preces que os fiéis católicos elevam ao céu
surgem majoritariamente de gargantas femininas; que são as mãos
de mulheres que cuidam da limpeza e do funcionamento dos templos: desde
as flores e as toalhas dos altares até o ar-condicionado, passando
pela coleta das esmolas e o cuidado dos hábitos sacerdotais.
O que aconteceria se, como propõem algumas teólogas feministas,
as mulheres decidissem não ir às igrejas até que
se reconhecesse sua igualdade? Um olhar para as igrejas espanholas,
transformadas em lares espirituais para a terceira idade, comprova essa
avassaladora presença feminina. Segundo a Confederação
Espanhola de Religiosos e Religiosas (Confer), em 31 de janeiro de 2007
havia na Espanha 18.819 religiosos e 48.489 religiosas.
Andrés Muñoz é um dos 8 mil sacerdotes,
22% do total, que vivem hoje na Espanha casados ou convivendo em casal.
Tem 27 anos de casamento com Teresa Cortés, a mulher que hoje
preside o Movimento para o Celibato Opcional (Moceop). Eles têm
um filho de 25.
"O mal não reconhecido da Igreja Católica
é o autoritarismo, a falta de democracia interna e a rejeição
à liberdade de pensamento", afirma.
Sua mulher está convencida de que o celibato
obrigatório é, antes de mais nada, um instrumento para
o controle dos sacerdotes. Essa senhora de rosto suave e expressão
decidida - "filha do inferno", a chamaram os membros de um
programa de rádio -, pensa que a humanidade e as religiões
contraíram uma grande dívida histórica com a mulher.
A aceitação do sacerdócio e do
bispado feminino entre os protestantes e anglicanos deixa a Igreja Católica
diante da pergunta de até quando poderá continuar ignorando
o fato da emancipação feminina e da igualdade dos sexos.
De quanto tempo vai precisar para mudar o olhar que os santos padres,
desde santo Agostinho a santo Tomás, atiraram sobre a mulher,
esse ser que, assim como Aristóteles, julgaram inferior, submisso,
de natureza "defeituosa", incompleta, "imbecilitas",
impura? Quanto ainda vão demorar para livrar a mulher do sentimento
de culpa por ter entregado a maçã a Adão, para
libertar-se inteiramente dos preconceitos que proibiam as mulheres de
entrar nos tempos durante seus períodos de menstruação,
ou simplesmente de tocar nos vasos sagrados? O machismo da sociedade
também tem suas raízes na cultura cristã e continua
vigente na idéia, exposta na primeira encíclica do papa
Bento 16, de que a mulher foi criada por Deus "como ajuda do homem".
Casada, mãe de um filho, membro do Movimento
para a Ordenação de Mulheres, uma iniciativa que já
convocou dois congressos internacionais, Christina Moreira não
tem ilusões sobre a evolução previsível
de sua Igreja.
"A última coisa que o papa fará
será aceitar o sacerdócio feminino", prevê.
"Desde que o Sínodo da Igreja da Inglaterra (anglicana)
aceitou a ordenação de mulheres, em 11 de novembro de
1992, muitos fiéis revoltados com essa decisão estão
passando para a Igreja de Roma", ela explica.
Está convencida de que o cisma anglicano vai
reforçar o pólo conservador do Vaticano.
"Eles não gostam que as meninas comecem
como coroinhas porque sabem que algumas terminarão aspirando
ao sacerdócio", aponta Rosa de Miguel, outra mulher de
vocação sacerdotal que diz se sentir "com as asas
cortadas e como uma filha abortada da Igreja".
Depois de uma experiência religiosa muito intensa
- "quando você é homem lhe dizem que tem vocação;
se for mulher, que está neurótica ou que vá ser
freira" -, Rosa decidiu mergulhar em sua profissão
e se distanciar. Cansadas de sofrer, muitas outras acabaram suplicando
a Deus que não as chame mais. Clama até o mais agnóstico
dos céus que o Código de Direito Canônico, renovado
em 1983, afirma que só o homem pode ser leitor das Escrituras
ou acólito.
Os bispos, os cardeais e o papa acreditam verdadeiramente
que as novas gerações de mulheres aceitarão submissamente
um lugar subalterno na Igreja, por mais que ultimamente venham pela
mão dos movimentos mais fundamentais? A ausência de uma
perspectiva razoável de evolução e o conservadorismo
dos bispos que dominam a Conferência Episcopal Espanhola desesperam
boa parte da militância cristã reformista, majoritariamente
de esquerda, assim como os religiosos e sacerdotes mais comprometidos
com a renovação doutrinária.
Na intricada associação Redes Cristãs,
que reúne cerca de 150 coletivos sob o lema comum "Outra
Igreja é possível", as feministas católicas
mais irreverentes, que em 8 de março se manifestam ao grito de
"Se já temos duas mamas, para que queremos um papa?",
se encontram com outras que evitam atitudes desrespeitosas. Embora o
temor das represálias esteja presente, particularmente nas freiras
e professoras de religião, a principal razão é
evitar se desligar de uma congregação educada na obediência
cega à hierarquia.
"Colocar-se à margem representaria deixar
a Igreja nas mãos dos Legionários de Cristo", raciocina
Pilar Yuste, 44 anos, catedrática de teologia e professora
de religião.
"Apesar de não querermos cismas, devemos nos rebelar contra
as estruturas antidemocráticas da Igreja", indica Teresa
Cortés.
A brecha que as separa da atual hierarquia é
tão profunda que os grupos mais radicais atuam à margem
da Igreja oficial. Suas missas alternativas se desenrolam no fio da
legalidade eclesiástica ou em clara ilegalidade. Alteram o rito
litúrgico em busca de maior espontaneidade e liberdade, consagram
pão e vinho normais em vez das hóstias de pão ázimo
(sem levedo) e do vinho de missa, e também não é
estranho que algumas dessas missas sejam oficiadas por mulheres que
assumem por sua conta e risco a tarefa de consagrar, desafiando a pena
de excomunhão. O vendaval conservador das últimas décadas
desconcertou sobretudo as freiras e as católicas seculares que,
animadas pela mensagem de abertura do Concílio Vaticano II (1962-65),
começaram a se aprofundar nos assuntos teológicos, acreditando
que a reforma resgataria a mulher de seu papel secular subalterno na
Igreja.
E essas mulheres, peritas teólogas, percorreram
seu caminho, descobriram muitas coisas para se conformar com o argumento
curioso - a Igreja do século 21 transfere seu machismo ao próprio
Jesus Cristo - de que não é possível ordenar as
mulheres porque o Salvador estabeleceu que os 12 apóstolos fossem
homens.
Do ponto de vista teológico, porém, não
há um empecilho dogmático que proíba o celibato
opcional ou a ordenação da mulher. De fato, os apóstolos
eram casados e parece igualmente comprovado que na Igreja primitiva
houve diaconisas e presbíteras, mulheres consagradas. As historiadoras
religiosas se empenham em obter argumentos para demonstrar que a teórica
impossibilidade de ordená-las sacerdotes não é
uma verdade revelada, mas sim, como ocorre no islamismo e no judaísmo,
produto da interpretação masculina da história
ao longo de séculos de marginalização social da
mulher.
A esta altura, no entanto, os subterfúgios dialéticos
encontram já cansadas muitas dessas católicas que exigem
que a hierarquia seja coerente com a igualdade. Sua mensagem é
que a Igreja Católica perderá as mulheres, como já
perdeu os intelectuais e os operários. Elas, que são as
que amam a Deus em maior número, já não aceitam
que o sexo masculino atribuído ao Supremo Criador sirva para
perpetuar a servidão e a submissão secular da mulher.
É que, a não ser que se insulte a condição
feminina, não há resposta justificada possível
para a pergunta: "Mulheres sacerdotes, por que não?"
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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