25/03/2008
Um gênio que mora na rua
Gilberto Dimenstein
Charles Pereira Gonçalves
é um dos exemplos brasileiros mais definitivos de desperdício
de talento - viciado em crack e infestado pela tuberculose, é
um reconhecido gênio musical que mora na rua.
Quando era menino e tocava flauta nas ruas do centro
de São Paulo, Charles chamou a atenção de músicos.
Impressionou tanto e tanta gente que, em pouco tempo, foi convidado
para estudar na Alemanha, onde seria aluno, com todas as despesas pagas,
do primeiro flautista da Orquestra Filarmônica de Berlim. "Com
estudo, ele vai ser um dos maiores flautistas do mundo", dizia
o maestro Júlio Medaglia, que abriu para Charles o caminho até
a Alemanha. Altamiro Carrilho disse, perplexo, que alguém tocar
tão bem sem nenhum estudo, só teria uma explicação:
" Reencarnação"
Mas Charles caiu na droga, não conseguiu viajar
e hoje vive debaixo do Minhocão, no meio do barulho incessante
e da poluição que só agrava sua tuberculose.
Por trás desse desperdício, existem a
pobreza, a desestrutura familiar, a falta de educação
e a limitada rede assistencial. Apenas nas regiões metropolitanas
são sete milhões de jovens que não estudam nem
trabalham. Sem contar os que estudam em escolas ruins, incapazes de
desenvolver talentos. Por isso, ampliar a bolsa em dinheiro para jovens
(o que eu concordo para reduzir a evasão) sem melhorar a escola,
tornando-a uma porta de saída, beira o desperdício. Vemos
como é difícil, depois de certo momento, recuperar um
indivíduo e integrá-lo à sociedade.
Se o país imaginasse quanto talento é
desperdiçado, ouviria melhor a poluição sonora
da falta de perspectiva --assim como pode ouvir a genialidade perdida
de Charles.
Uma vida tocada na flauta
O vício ia tirando Charles dos palcos;
entrou, enfim, no círculo vicioso da marginalidade até
ir para a rua
A flauta é o único objeto que sobrou de
um fugaz passado glorioso. O resto está irreconhecível
numa caverna debaixo do viaduto Costa e Silva, o Minhocão, a
poucos metros da igreja da Consolação, onde mora Charles
Pereira Gonçalves, na região central.
As pontas dos dedos que tiravam notas musicais estão
agora queimadas pelo crack. O sopro está comprometido pela tuberculose
que contamina o pulmão. Trajado com roupas sujas e fétidas,
Charles, olhos vazios, desistiu de tomar banho. Parece ter bem mais
idade do que seus 34 anos.
A combinação de doenças -além
da tuberculose, ele está com pneumonia- deixou-o esquelético
e silencioso, sem vontade de conversar. Os sons que emite vêm
de uma tosse constante. Quando, porém, vez por outra, ele toca
seu instrumento, voltam os fragmentos da memória dos tempos em
que, ainda menino, dividira o palco com músicos como o pianista
Arthur Moreira Lima, o saxofonista Paulo Moura e o flautista Altamiro
Carrilho.
Altamiro Carrilho ficou tão impressionado ao
ouvi-lo tocar um chorinho que comentou: "Só pode ser reencarnação".
Até então, não tinha visto alguém tão
jovem e sem nenhum estudo musical tocar tão bem -e muito menos
acreditava em reencarnação.
O maestro Júlio Medaglia explica essa habilidade
pelo ouvido absoluto, termo técnico que designa rara sensibilidade
de distinguir as notas. Isso torna ainda mais difícil entender
como Charles consegue viver naquela caverna embaixo do Minhocão,
onde, por causa do trânsito ininterrupto de veículos, o
barulho não pára.
Por muito pouco, ele não viveu em ambientes radicalmente
diferentes daquele, distantes da poluição sonora do viaduto.
Medaglia dizia que, com estudo, o menino se transformaria em um instrumentista
de renome mundial e conseguiu-lhe como professor, na Alemanha, o primeiro
flautista da Orquestra Filarmônica de Berlim. "Pode ser um
dos grandes flautistas do mundo", apostou Medaglia.
Às vésperas de viajar para a Alemanha,
porém, Charles começou a hesitar e a demonstrar um comportamento
estranho. A droga começava a entrar na sua vida.
Quando indagado sobre o motivo por que caiu nas drogas,
ele explica, entre frases confusas: "As pessoas pensavam que eu
estava fora do Brasil e deixaram de me procurar. Fiquei desanimado,
comecei a não ir mais para a escola e a usar drogas. Experimentei
crack e me perdi".
Acompanhado de dois de seus irmãos (um deles,
gêmeo), Charles tocava nas ruas do centro de São Paulo,
em 1984, quando tinha dez anos de idade. Diante do talento do filho,
o pai, viúvo, treinou os irmãos para buscar dinheiro na
rua.
A visibilidade das ruas levou-o a gravar um disco no começo da
década de 1990 e a ser chamado para shows e programas de televisão.
O vício ia tirando-o dos palcos. "Só
queria crack." Começou a faltar dinheiro. Entrou, enfim,
no círculo vicioso da marginalidade até ir para a rua.
Ele agora se diz disposto a dar aula particular em alguma escola.
"Queria ensinar flauta para crianças pequenas."
Está consciente, entretanto, de que, viciado e tuberculoso, não
pisaria numa escola. "Antes preciso cuidar de minha saúde."
Seu depoimento só mostrou mesmo emoção
quando ele falou de sua única criação recente,
ao se referir ao filho de um ano de idade. "Nunca vi o rosto dele,
mas acredito que ele possa vir a ser um grande flautista."
Talvez por causa do sonho de que o talento, desperdiçado,
pudesse ser salvo no desconhecido filho, ele tirou a flauta do bolso
do paletó e tocou um chorinho. Nessa vaga esperança, era
como se sua vida ainda pudesse ser tocada na flauta.
PS - Charles acabou tomando, por acaso,
todo o espaço desta coluna. A idéia inicial era apresentá-lo
como um exemplo de desperdício de talento para comentar o lançamento,
na semana passada, da extensão do programa Bolsa Família
para jovens. A justificativa dada pelo governo era reduzir a evasão
escolar. Estava municiado de números sobre evasão, que,
em alguns lugares, está crescendo, além de informações
sobre como o ensino médio, tão longe da realidade, expulsa
os adolescentes do prazer de aprender. A tragédia resume-se aos
7 milhões de jovens em regiões metropolitanas que não
estudam nem trabalham, presas fáceis da marginalidade. Ficou
tão difícil tirar espaço de Charles como deve ter
sido desviar dele a atenção nos tempos em que encantava
platéias. Mesmo doente, participou da gravação
de uma faixa de um CD em 2006: quem ouvir a música (clique aqui)
sentirá melhor do que em números o que é o desperdício
de talentos.
Coluna originalmente publicada na Folha
de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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