15/03/2008
É preciso salvar vidas
Vanessa Vieira
Veja Ed. 2050 - 05/03/2008
Veja entrevista: Mayana Zatz
A pesquisadora explica por que é urgente
que o STF libere as pesquisas com células-tronco embrionárias
A bióloga Mayana Zatz é uma das maiores
especialistas em células-tronco do país, com quase 300
trabalhos científicos publicados. Nascida em Israel, mora no
Brasil desde os 7 anos. Atualmente, ela é pró-reitora
de pesquisa e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da
Universidade de São Paulo. Mayana estuda há mais de trinta
anos terapias para doenças neuromusculares, razão pela
qual se tornou uma das maiores defensoras, no país, das pesquisas
com células-tronco embrionárias, as únicas capazes
de se converter em qualquer um dos 216 tipos de célula do corpo
humano. Desde 2005, quando o Congresso aprovou a lei brasileira de biossegurança
— que autoriza o uso em pesquisas de embriões congelados
há mais de três anos —, Mayana luta para que a lei
entre em vigor. Isso porque, naquele mesmo ano, a Procuradoria-Geral
da República entrou com uma ação de inconstitucionalidade
contra a lei. Desde então, os estudos com células-tronco
embrionárias estão parados no Brasil. Na semana que vem,
o Supremo Tribunal Federal dará sua palavra final sobre o uso
dos embriões. Nesta entrevista a VEJA, Mayana defende que o Brasil
precisa se juntar quanto antes aos países que pesquisam células-tronco
embrionárias.
Veja — As pesquisas com
células-tronco embrionárias encontram-se proibidas no
Brasil sob o argumento de que vão contra dois princípios
constitucionais: o de que a vida é inviolável e o que
garante a dignidade da pessoa. Como a senhora avalia essa proibição?
Mayana — Essa proibição é
absurda. Inviolável é a vida de inúmeros pacientes
que morrem prematuramente ou estão confinados a uma cadeira de
rodas e poderiam se beneficiar dessas pesquisas. É preciso entender
que os cientistas brasileiros só querem fazer pesquisa com os
embriões congelados que permanecem nas clínicas de fertilização,
e sempre com o consentimento do casal que os gerou. Se o casal, por
algum motivo religioso ou ético, for contra doar seus embriões,
não precisará fazê-lo. Deve-se lembrar que o destino
dos embriões que não forem utilizados para pesquisa é
ficar congelado até serem descartados. Estamos falando de embriões
que nunca estiveram num útero, nem nunca estarão. Não
existe nenhuma possibilidade de vida para eles.
Veja —Afinal, quando começa a vida? Do
ponto de vista da ciência, o embrião é um ser humano?
Mayana — Não existe um consenso sobre
quando começa a vida. Cada pessoa, cada religião tem um
entendimento diferente. Mas existe, sim, um consenso de que a vida termina
quando cessa a atividade do sistema nervoso. Quando o cérebro
pára, a pessoa é declarada morta. Pelo mesmo raciocínio,
se não existe vida sem um cérebro funcionando, um embrião
de até catorze dias, sem nenhum indício de células
nervosas, não pode ser considerado um ser vivo. Pelo menos não
da forma que entendemos a vida Por isso, todos os países que
permitem pesquisas com embriões determinam que eles devem ter
no máximo catorze dias de desenvolvimento. Os embriões
congelados que se quer usar no Brasil têm ainda menos tempo, entre
três e cinco dias.
Veja — Quais são os principais oponentes
da pesquisa com células-tronco embrionárias no Brasil?
Mayana—A oposição vem basicamente
da Igreja Católica. Entre as igrejas evangélicas existe
uma divisão, mas muitas são a favor. É fundamental
que as pessoas entendam que não existe uma briga dos cientistas
com a Igreja Católica. A decisão que o Supremo Tribunal
Federal vai tomar na semana que vem, liberando ou não as pesquisas
com células-tronco embrionárias, diz respeito a toda a
sociedade. Por isso, é preciso que não haja desinformação.
Há gente confundindo pesquisa com células-tronco embrionárias
com aborto.
Veja — Como se manifesta essa confusão?
Mayana — Recebo e-mails surpreendentes de pessoas
que perguntam: "Como a senhora tem coragem de interromper uma vida?".
Respondo: "Você sabe que esses embriões nunca foram
implantados num útero? Você sabe que eles são resultantes
de fertilização in vitro?", O remetente, a seguir,
pergunta: "Doutora, mas o que é fertilização
in vitro?". Já tive vários exemplos desse tipo de
desinformação. Recentemente, um padre me mandou um e-mail
observando que a grande maioria dos religiosos não teve a oportunidade
de aprender ciências e biologia da mesma forma que a população
em geral. Quando se aprovou a Lei de Biossegurança, em 2005,
permitindo a pesquisa com células-tronco embrionárias,
demos aulas para os senadores e deputados. Muitos deles, que primeiramente
haviam votado contra as pesquisas, porque não entendiam do assunto,
votaram depois a favor. Aí se vê a diferença que
faz a informação. E bom lembrar que a Lei de Biossegurança
foi aprovada com ampla maioria, depois de uma grande discussão
no Congresso. Não foi na calada da noite. Ela obteve o aval de
96% dos senadores e 85% dos deputados.
Veja — Neste ano, a Campanha da Fraternidade
da Igreja Católica tem como tema a defesa da vida e critica o
uso de embriões em pesquisas. Num país com tantos católicos,
que impacto essa campanha pode ter?
Mayana — O lema da campanha da Igreja é:
"Escolhe, pois, a vida". Achei fantástico, porque essa
também é a escolha dos cientistas. Estamos preocupados
com os pacientes que morrem por causa de doenças neurodegenerativas
ou que estão imobilizados por causa de acidentes. Por isso é
preciso que se entenda a diferença entre aborto e pesquisa com
células-tronco embrionárias. No aborto, há uma
vida dentro do útero de uma mulher. Se não houver intervenção
humana, essa vida continuará. Já na reprodução
assistida, é exatamente o contrário: não houve
fertilização natural. Quem procura as clínicas
de fertilização são os casais que não conseguem
procriar pelo método convencional. Só há junção
do espermatozóide com o óvulo por intervenção
humana. E, novamente, não haverá vida se não houver
uma intervenção humana para colocar o embrião no
útero.
Veja — Qual é a contribuição
brasileira às pesquisas com células-tronco embrionárias?
Mayana — Muito pequena. Temos uma contribuição
significativa em clonagem reprodutiva animal e na pesquisa de terapias
com células-tronco adultas na área cardíaca. Com
células embrionárias, quase não temos resultados.
Acho que nem sequer temos estudos publicados. As células-tronco
adultas só formam alguns tecidos, como músculo, osso,
gordura e carruagem. Com elas, não se consegue formar células
nervosas, fundamentais para tratar doenças neuromusculares, para
regenerar a medula de alguém que ficou paraplégico ou
tetraplégico ou para tratar um parente que tem Parkinson. Se
não tivermos células-tronco embrionárias para formar
neurônios, todas essas pesquisas ficarão prejudicadas.
Veja — Em que países as pesquisas com
células-tronco embrionárias estão mais avançadas?
Mayana — Inglaterra, Austrália e Israel,
onde a lei permite esse tipo de pesquisa há muito tempo. Nos
países de Primeiro Mundo, em geral, onde há uma grande
preocupação com a saúde da população,
esse tipo de pesquisa é permitido. O ambiente mais favorável
nesses países depende de uma série de fatores. Um deles
é a boa formação dos legisladores. A alocação
de recursos e a presença de cientistas de ponta também
são fundamentais. No Brasil, temos alguns centros de excelência,
há cientistas que dominam a técnica e são capazes
de fazer o que se faz no Primeiro Mundo, mas não em número
suficiente. Outra dificuldade que enfrentamos é a demora para
viabilizar as pesquisas, em qualquer campo. No Brasil, por causa de
entraves burocráticos, levamos até seis meses para importar
materiais de pesquisa, enquanto no exterior o tempo é de 24 a
48 horas. Lá fora, entre ter uma idéia e executá-la
perde-se um dia. Aqui, passam-se meses. Mas novas medidas prometem tornar
as importações mais ágeis.
Veja — Quais podem ser as conseqüências
do atraso brasileiro para as pesquisas com células-tronco embrionárias?
Mayana — Teremos de pagar royalties gigantescos
para importar uma tecnologia que poderíamos estar produzindo
aqui. Em segundo lugar, se amanhã houver no exterior tratamentos
com células-tronco embrionárias não disponíveis
no Brasil, as pessoas com boa situação financeira irão
para fora se tratar. O que os pobres vão fazer? O SUS vai cobrir
os custos de um tratamento no exterior? Eu atendo pacientes com doenças
muito graves. Quando comunico aos pais de uma criança que o filho
deles tem uma doença para a qual não existe cura, eles
sempre me perguntam, angustiados, se em algum lugar do mundo existe
possibilidade de tratamento. Se o casal tem dinheiro, eu até
o incentivo a ir ao exterior, para que tenha a certeza de que tentou
tudo. Se os pais não têm recursos, digo que todos os tratamentos
disponíveis lá fora podem ser feitos aqui. Mas, se amanhã
houver no exterior tratamentos com células-tronco embrionárias
que não estão disponíveis aqui, os casais mais
pobres vão entrar em desespero.
Veja — O presidente George W. Bush é um
dos mais ferrenhos opositores às pesquisas com células-tronco
embrionárias. Que impacto tem essa posição do governo
americano no cenário científico internacional?
Mayana — Certamente a postura do presidente Bush
tem um peso negativo. Nos Estados Unidos, os projetos nessa área
não podem receber dinheiro público. Em compensação,
as pesquisas científicas contam com enormes investimentos da
iniciativa privada. Muitos trabalhos com células-tronco embrionárias
saíram de lá. Só na Califórnia, em 2005,
investiram-se 3 bilhões de dólares em pesquisas com células-tronco.
Veja — Como a senhora responde aos críticos
que dizem que as pesquisas com células-tronco, mesmo as adultas,
vão na contramão da natureza?
Mayana — Quando você faz uma cesariana,
e não um parto, está indo contra a natureza. Quando vacina
seus filhos, está aumentando a imunidade deles e indo contra
a natureza. Quando alguém tem uma pneumonia e você dá
um antibiótico, está indo contra a natureza. É
porque temos ido tão freqüentemente contra a natureza que
a expectativa de vida tem subido tanto no mundo. Vejo em grande parte
as células-tronco como uma possibilidade de regenerar órgãos,
como um substituto para os transplantes. Hoje, a sociedade aprova quando
um indivíduo está doente e recebe um transplante de coração.
Mas não é fácil fazer um transplante. Há
filas para receber um órgão, há o desafio de achar
um doador compatível. No futuro, se conseguirmos regenerar o
coração, ou outros órgãos, com células-tronco,
não haverá razão para não fazê-lo.
Veja — Os estudos sobre as células-tronco
adultas evoluem rapidamente, mas suas aplicações práticas
ainda são muito restritas. Falta muito para que a medicina se
beneficie amplamente desses estudos?
Mayana — Hoje as células-tronco adultas
são usadas no tratamento de doenças do sangue, como leucemias,
anemias e talassemia. Nas outras áreas, tudo o que há
são tentativas terapêuticas. A grande barreira para desenvolver
tratamentos é que ainda não temos total conhecimento sobre
a diferenciação celular, ou seja, o processo pelo qual
uma célula-tronco se transforma em outro tipo de célula.
Já sabemos que temos uma multiplicidade de células-tronco
com diferentes potenciais. Mas não temos ainda como controlar
essas células. Um exemplo: eu injeto células-tronco para
regenerar o músculo de alguém, mas essas células
resolvem que vão virar osso. Se isso acontecer, não tenho
mais como controlar o processo.
Veja — Quais serão, no futuro, os principais
benefícios dos tratamentos com células-tronco?
Mayana—A terapia com células-tronco pode
ser considerada como o futuro da medicina regenerativa. Entre as áreas
mais promissoras, está o tratamento para diabetes, doenças
neuromusculares, como as distrofias musculares progressivas e a doença
de Parkinson. Com as células-tronco, também se poderá
promover a regeneração de tecidos lesionados por causas
não hereditárias, como acidentes, ou pelo câncer.
O tratamento do diabetes é muito promissor porque depende da
regeneração específica de células que produzem
insulina, o que é mais fácil do que regenerar por completo
um órgão complexo. As células-tronco vão
permitir que as pessoas vivam muito mais e de forma saudável.
Uma pessoa que precise de um transplante de coração ou
de fígado, se tiver a possibilidade de fazer uma terapia com
células-tronco em vez de esperar anos numa fila por um órgão
novo, terá uma qualidade de vida muito melhor.
Veja —Alguns dermatologistas já anunciam
tratamentos estéticos com células-tronco. Eles funcionam?
Mayana—Como ainda não temos controle total
sobre a diferenciação celular, não faz sentido
injetar células-tronco para melhorar a pele. Ainda não
estamos prontos para isso. Daqui a alguns anos pode ser. O conselho
que dou aos potenciais clientes desses tratamentos é: investigue
quem é o médico que os está oferecendo. Pesquise
na internet, procure levantar o currículo dele, o que ele publicou
sobre esse assunto, a que entidade está ligado.
Veja — Cientistas dizem que, dentro de alguns
anos, será possível manipular o DNA dos embriões
deforma a interferir nas características dos bebês. Estamos
caminhando nesse sentido?
Mayana —Atualmente, só o que podemos descobrir
é se um embrião tem uma mutação que determina
uma doença específica. Se uma família sabe que
tem uma doença genética qualquer, pode optar por fazer
fertilização in vitro para selecionar um embrião
livre do gene que predispõe o portador àquela doença.
Nesse caso, acho válido. Evita-se que a criança nasça
com uma doença genética grave. Também já
é possível selecionar o sexo do futuro bebê, embora
isso seja considerado antiético na maioria dos países.
Mas existe uma perspectiva de que, nos próximos dez anos, seja
possível seqüenciar o genoma de uma pessoa por 1000 dólares.
Ela pode descobrir que tem uma montanha de mutações. A
questão ética é o que se vai fazer com essas informações.
Talvez sejam usadas para rejeitar um candidato a emprego ou influir
no custo do plano de saúde. Há inúmeras mutações
que carregamos e nunca vão se manifestar.
Veja —No futuro será possível também
selecionar embriões para gerar crianças mais inteligentes
ou com determinadas características físicas ?
Mayana—No caso de algumas características,
sim, mas acho um absurdo manipular um embrião para que a criança
nasça com olhos azuis, por exemplo. Sou totalmente contra. Até
porque os padrões de beleza são variáveis. Hoje
uma pessoa considerada bonita é de um jeito, mas daqui a vinte
anos o padrão será outro. Seria muito difícil controlar
todos os fatores genéticos que interagem na inteligência.
O ambiente tem um papel muito importante. Lembro-me daquela experiência
nos Estados Unidos em que mulheres foram fertilizadas com espermatozóides
de ganhadores do Prêmio Nobel. Anos depois, não havia nenhum
gênio entre os descendentes dessas mulheres. Ou seja, os resultados
são totalmente imprevisíveis. As células-tronco
servem para curar e salvar, não para fazer experiências
exóticas.
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