10/01/2008
Imaginação e
realidade
Réplica ao artigo “Direito fundamental ao aborto”,
de Maria Berenice Dias
Texto extraído do Jus Navigandi
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10828
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Alexandre Magno Fernandes Moreira Aguiar
procurador do Banco Central do Brasil em Brasília (DF), especialista
em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio
de Sá, professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade
Paulista (Unip) e nos cursos preparatórios Objetivo e Pró-Cursos
Recentemente, foi divulgado em vários sites
da internet um artigo
em que a desembargadora gaúcha e vice-presidente do Ibdfam (Instituto
Brasileiro de Direito de Família), Maria Berenice Dias, defende ardorosamente
o aborto, chegando a chamá-lo de "direito fundamental". Veremos
que o texto tem muito mais de imaginação do que de realidade.
Já no primeiro parágrafo, a autora usa
de uma frase de efeito e de um lugar-comum: "Aborto é crime? Diz
o Código Penal que sim, mas a sociedade esta (sic) reclamando
sua descriminalização".
A primeira frase é uma obviedade em um
Estado de Direito: sim, crime é aquilo que está previsto como tal no
Código Penal, assim como em qualquer outra lei. Porém, um fato tipificado
em lei pode não ser crime se ocorrerem as excludentes de tipicidade,
ilicitude ou mesmo de culpabilidade – e xcludentes, essas, previstas,
em regra, na própria lei. Portanto, não é o desejo de alguém que torna
determinado fato lícito ou ilícito, criminoso ou não, mas a própria
lei, que não se deve curvar à ideologia de quem pretende esticar a hermenêutica
além dos limites aceitáveis. Exemplos disso são o adultério e a sedução,
crimes cuja existência era duramente criticada pela doutrina, mas que
só deixaram de existir em 2005, devido a uma lei revogadora.
A segunda assertiva chega a ser surreal.
A autora diz que a sociedade "reclama" a descriminalização
do aborto. É difícil saber de que sociedade ela fala. Decerto, não é
a brasileira. Se considerarmos "sociedade" como sinônimo de opinião
pública, é interessante observarmos a recente pesquisa do Ibope sobre
aborto. A pergunta foi a seguinte: "Atualmente, no Brasil, o aborto
só é permitido em dois casos: gravidez resultante de estupro e para
salvar a vida da mulher. Na sua opinião, a lei deveria ampliar a permissão
para o aborto? Deveria continuar como está ou deveria proibir o aborto
em qualquer caso?" As respostas não poderiam ser mais contundentes:
53% do entrevistados consideram que a legislação deve ser mantida; 34%
consideram que o aborto deve ser proibido em qualquer situação; e
apenas 10% consideram que as hipóteses de aborto legal devem ser ampliadas.
A não ser que a autora considere que "sociedade" é simplesmente
o conjunto dos movimentos de esquerda, que apóiam maciçamente o aborto,
estamos diante de um erro crasso, quando não de pura e simples má-fé.
É interessante a "força jurídica" que a
autora concede à religião: "Mas não se pode esquecer que o Código
Penal data do ano de 1940, época em que a sociedade estava de tal modo
condicionada a preceitos conservadores de origem religiosa, que outra
não poderia ter sido a escolha do legislador". É bom lembrar que
o Catecismo da Igreja Católica, que congregava a quase totalidade dos
brasileiros à época, é incisivo ao repudiar qualquer espécie de aborto,
inclusive aquele cometido quando a gravidez é resultante de estupro.
A proibição é absoluta e peremptória. Vejamos:
"A
vida humana deve ser respeitada e protegida de maneira absoluta a partir
do momento da concepção. Desde o primeiro momento de sua existência,
o ser humano deve ver reconhecidos os seus direitos de pessoa, entre
os quais o direito inviolável de todo ser inocente à vida" (§ 2.270).
A autora continua afirmando, sem comprovação
nenhuma, que o aborto sentimental foi permitido no Código Penal de 1940
apenas para preservar o patrimônio familiar: "Tal exceção visa a
permitir que não integre a família um ‘bastardo’, pois a lei civil presume
que o marido de uma mulher casada é o pai de seu filho. Assim, a gravidez,
mesmo decorrente de violência sexual, faz com que o filho do estuprador
seja reconhecido como filho do marido da vítima e herdeiro do patrimônio
familiar. Essa é a justificativa para a possibilidade do chamado aborto
sentimental, apesar de não haver nenhuma preocupação com o sentimento
da vítima".
O que é impressionante nesse ponto é o
poder da autora de "ler a mente" do legislador de 1940. Esse argumento
utilizado não se encontra na Exposição de Motivos do Código Penal, nem
ao menos em nenhum livro conhecido de Direito Penal. Pelo contrário,
os penalistas têm um ponto de vista marcadante a favor da mulher estuprada.
Por todos, cito o mais clássico, Nelson Hungria (apud Greco, 2007, p.
253):
"Nada justifica que se obrigue a
mulher estuprada a aceitar uma maternidade odiosa, que dê vida a um
ser que lhe recordará perpetuamente o horrível episódio da violência
sofrida. Segundo Binding, seria profundamente iníqua a terrível exigência
do direito de que a mulher suporte o fruto de sua involuntária desonra".
Podemos recuar mais ainda no tempo e verificar
que Galdino Siqueira (1921, p. 594), ao comentar o Código de 1890, não
faz nenhuma referência à herança familiar, mas refere-se ao bem-estar
da mulher:
"o
sujeito passivo do crime é também a mulher, cuja vida é posta em perigo,
senão mesmo em muitos casos também destruída, e, assim, o crime assumindo
o caráter de periclitação da vida".
Mesmo em termos civilistas, a argumentação
é falha. A presunção de paternidade durante o casamento nunca foi absoluta,
mas relativa, ou seja, sempre se admitiu prova em contrário. Se a gravidez
é resultante de estupro, essa prova costuma ser bem evidente. Ninguém
nunca foi obrigado a acolher em seu lar um filho que comprovadamente
não é seu. Se a questão fosse de cunho patrimonial, seria suficiente
que o "bastardo" fosse dado à adoção.
Nem sempre a gravidez resultante de estupro
foi motivo para a impunidade do aborto. Pelo contrário. Ao tempo do
primeiro Código Penal da República (1890), a única hipótese de aborto
impune é aquele praticado para salvar a vida da mãe (aborto terapêutico).
Somente em 1940, o aborto sentimental deixou de ser considerado crime.
Se nossa sociedade fosse, à época, tão conservadora e religiosa quanto
a autora acredita, essa hipótese de impunidade do aborto nem teria sido
cogitada.
Em seguida, a autora parece querer um novo
conceito para "vida":
"Sequer quando modernas técnicas
de ultra-sonografia possibilitam identificar que está sendo gestado
um ser sem vida, por ausência de cérebro (má formação que recebe o nome
de anencefalia), preocupa-se a lei em esclarecer que a antecipação
terapêutica da gestão não configura aborto em face da inexistência de
vida a ser preservada."
"Vida"
é um conceito pertencente à Biologia. Apesar de haver profundas divergências,
considera-se geralmente que a vida é um complexo formado por certos
atributos como crescimento, metabolismo, movimento, etc. Em nenhuma
hipótese, as ciências biológicas incluem a existência de cérebro como
requisito para a vida. Se fosse pelo critério defendido pela autora,
a totalidade das plantas e a maior parte dos animais não seriam seres
vivos. O feto anencéfalo é, biologicamente, um ser vivo. Porém, a questão
a ser discutida não é essa. O que tem-se debatido é se essa vida, por
ser inviável, merece proteção jurídica. Nesse ponto, existem razoáveis
argumentos a favor do aborto, que, pela exigüidade deste trabalho, não
cabe aqui discuti-los.
A
autora abusa de um recurso retórico: a ampliação indevida dos argumentos.
No ponto a seguir, ela utiliza idéias relacionadas apenas com o aborto
quando a gravidez é decorrente de estupro e tenta utilizá-las para qualquer
discussão referente ao aborto: "Porém, independente do conteúdo punitivo
de natureza penal a criminalização do aborto não tem caráter repressivo,
porque nem toda gravidez decorre de uma opção livre. Basta ver os surpreendentes
índices da violência doméstica e da violência sexual".
Ora,
é correto dizer que nem toda gravidez decorre de uma opção livre (aliás,
haveria uma "opção não-livre"?). Esse é exatamente o caso da gravidez
resultante de estupro, na qual o aborto é impune. E, mesmo que o aborto
fosse proibido, nesse caso também, a função da incriminação seria, obviamente,
repressiva. Incrimina-se uma conduta para reprimi-la, desestimulá-la.
Esse é o objetivo básico do Direito Penal: reprimir condutas que lesam
ou ameaçam bens considerados relevantes pela sociedade. E, como visto
anteriormente, a sociedade brasileira considera, sim, que a vida do
feto é digna de ser protegida penalmente.
É
interessante que a autora dá uma dimensão quase religiosa ao aborto
ao afirmar que "as mulheres conciliam fé, moral e ética com a decisão
de abortar". Considero um ato de bom senso deixar a fé fora disso,
pois todas as grandes religiões são contrárias ao aborto e todos os
argumentos favoráveis a ele advêm de fontes seculares ou mesmo manifestamente
atéias.
Palavras
vazias de significado permeiam todo o texto: "A situação de submissão
que o modelo patriarcal da família ainda impõe à mulher não lhe permite
negar-se ao contato sexual". Gostaria de saber o que ela entende
por "modelo patriarcal". Por um acaso o homem de hoje, em regra,
submete as mulheres a algum tipo de domínio ou mesmo de escravidão?
Ou ainda teríamos algo como o pater familias dos romanos, em
que o pai tinha o direito de vida e morte sobre os outros membros da
família? É plausível dizer que as mulheres não têm o direito de negar-se
ao ato sexual?
Recomendo
fortemente à autora que leia um livrinho escrito por Esther Vilar, cuja
tradução em português é "O homem dominado". Ela descreve um mundo radicalmente
diferente daquele que a autora acredita existir. Um dos pontos altos
do livro é a lista das desvantagens do homem moderno frente à mulher:
- os homens são obrigatoriamente alistados nas Forças
Armadas; as mulheres são livres para escolher;
- os homens são mandados para a linha de frente nas
guerras, enquanto as mulheres são preservadas;
- os homens aposentam-se mais tarde do que as mulheres,
apesar de viverem menos (no Brasil, a aposentadoria da mulher antecede
à do homem em cinco anos e sua expectativa de vida é sete anos maior);
- os homens, praticamente, não têm influência sobre
a reprodução. A decisão a respeito da gravidez e da sua continuidade
é quase exclusivamente feminina;
- é bastante comum que homens sustentem mulheres. Mesmo
as mulheres que têm melhor condição financeira comumente recebem recursos
de seus parceiros. As mulheres raramente sustentam seus parceiros
e, quando o fazem, é por um período bastante limitado de tempo;
- homens tendem a trabalhar a vida toda, enquanto as
mulheres ocupam empregos de meio expediente ou não trabalham. Essa
é uma das razões pelas quais há predominância feminina na maior parte
das instituições de ensino, pois os homens são constrangidos desde
cedo a trabalhar.
- em caso de separação, os filhos, automaticamente,
ficam com a mulher. A guarda do pai costuma ser deferida normalmente
em casos aberrantes, como alcoolismo ou vício em drogas por parte
da mulher. Na prática, os homens têm apenas o direito de "pegar emprestados"
seus filhos.
Mas a imaginação da autora vai longe, pois
assevera que "persiste ainda a infundada crença de que o chamado
débito conjugal faz parte dos deveres do casamento". Gostaria sinceramente
de ser apresentado a algum autor da atualidade que defenda essa posição.
Ou haveria alguma pesquisa com o público masculino na qual foi extraída
essa afirmativa?
Uma estratégia interessante é dar uma força
desproporcionalmente grande ao "inimigo", no caso, a Igreja Católica.
É bem sabida sua oposição ao uso de métodos anticoncepcionais artificiais,
mas não se pode dizer que "A vedação de origem religiosa ao uso de
métodos contraceptivos submete a mulher à prática sexual sem que possa
exigir o uso da popular camisinha"! Estaríamos em um país teocrático
em que toda população é obrigada a seguir os ditames de determinada
religião? Ora, o absurdo da proposição é bem demonstrado em pesquisa
recente na qual 96% dos jovens católicos declararam-se favoráveis ao
uso da camisinha! Esteja certo ou não, esse preceito católico simplesmente
não encontra eco em nossa sociedade e seu efeito prático, para o bem
ou para o mal, é pífio.
É impressionante verificar que, na visão
da autora, a mulher é um ser totalmente desprovido de vontade própria,
que só faz sexo forçada e que não tem controle nenhum sobre sua reprodução.
A conclusão implícita, bem à maneira das feministas radicais, é bem
simples: todo ato sexual é, em maior ou menor grau, uma forma de estupro,
pois a mulher é simplesmente submetida à vontade masculina. A proposição
é tão aberrante que torna desnecessário qualquer argumento em contrário.
O artigo continua afirmando a total prevalência
da liberdade, da dignidade feminina e do planejamento familiar. Lamentavelmente,
ela nem se deu ao trabalho tentar contrapor o direito à vida e à dignidade
do nascituro ao princípio da auto-responsabilidade individual.
Se o sexo é um ato geralmente voluntário e as informações sobre contraceptivos
estão bem disseminadas na sociedade, o homem e a mulher devem assumir
os riscos de seu ato. É difícil conceber, atualmente, uma gravidez totalmente
involuntária. Utilizando um termo penal, poderíamos dizer que há, comumente,
um "dolo eventual", no qual o agente previu que o resultado provavelmente
aconteceria e, mesmo assim, praticou-o. Assumiu, portanto, o risco de
produzir o resultado.
O magistério de Manoel Jorge e Silva Neto
(2006, p. 526) resume bem a questão:
"Da nossa parte, concluímos que não
há razão para admitir-se o aborto como apanágio da idéia de que o feto
é extensão do corpo da mulher, de vendo sobre ela, exclusivamente, recair
a decisão sobre manter ou não o estado gravídico, porque, ponderando-se
os bens em questão (aborto como reflexo da autonomia feminina sobre
o próprio corpo X direito à vida do nascituro), tem-se que não se poderá
prestigiar um bem de modo absoluto em detrimento do outro (...) Logo,
ponderados os direitos em questão, conclui-se que a preservação do feto
se impõe, não importando desprezo à autonomia da mulher devido à variedade
e elevado grau de eficácia dos métodos contraceptivos".
O texto termina com uma frase lapidar,
na qual a autora conclama para que se reconheça o aborto como um fato
social existente. Ora, claro que é! O Direito não faz suas regras visando
a "fatos inexistentes". Seria um absoluto contra-senso! Ora, homicídio,
estupro e violência também são fatos sociais existentes em quaisquer
sociedades. Por um acaso, essa abrangência universal torna-os corretos?
Considero desnecessário responder.
Enfim, a questão do aborto é bem mais complexa
do que a autora quer fazer parecer. Apesar de ser contrário ao aborto,
considero que existem argumentos bastante razoáveis por parte daqueles
que são favoráveis. Todas essas idéias devem ser debatidas. É exatamente
no diálogo que se constrói a democracia. Porém, defender idéias simplistas
(como "o aborto é um fato social"), falsas (como "a sociedade
reclama a descriminalização") e mesmo sectárias (no estilo
"revolta das mulheres dominadas contra os homens dominadores")
rebaixa o nível do debate e serve apenas para atiçar pessoas suscetíveis
a belas e vazias palavras de ordem.
"Assim que é concebido, um
homem é um homem" (Prof. Jerôme Lejeune, Pai da Genética
Moderna).
"O aborto não é, como dizem,
simplesmente um assassinato. É um roubo.. Nem pode haver roubo
maior. Porque, ao malogrado nascituro, rouba-se-lhe este mundo, o céu,
as estrelas, o universo, tudo. O aborto é o roubo infinito".
(Mário Quintana)

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