
"Examinado de perto, seja historicamente
ou no laboratório contemporâneo, esse empreendimento
se assemelha a uma tentativa de forçar a natureza a entrar
em uma caixa relativamente inflexível e pré-montada
que é fornecida pelo paradigma. De jeito nenhum é objetivo
da ciência normal descobrir novos tipos de fenômenos;
na verdade, aqueles que não entram na caixa nem são
percebidos. Nem tem o cientista o objetivo de desenvolver novas teorias
e, frequentemente, são intolerantes com aquelas teorias inventadas
por outros."
T. Kuhn, (1)
Quando se observa em detalhes
o 'motus operandi' da grande maioria das chamadas 'ciências
estabelecidas', embora o grande número de descobertas e
consequências advindas do labor científico bem articulado,
não se pode deixar de perceber que há um preço
a se pagar, frequentemente pouco lembrado pelos entusiastas desse
conhecimento (2). É que a
ciência estabelecida também restringe-se a si mesma,
tanto no escopo como na abrangência de seus estudos a fim
de que se torne factível.
O grande pesquisador da ciência
Thomas Kuhn (1922-1966) criou o termo 'paradigma científico'
(1,3) para descrever um conceito
importante que caracteriza toda ciência madura, em particular
nas 'ciências naturais' (4):
o conjunto de teorias (ou a teoria) bem estruturada capaz de congregar
gerações de cientistas em torno de um tema, a se
constituir um tipo de 'passaporte confiável' para solução
de determinados problemas. Ele chegou a essa conclusão
depois de anos de estudos em história da ciência,
quando percebeu que as teorias disponíveis para explicar
como a ciência opera e se estabelece não estavam
de acordo com o conhecimento histórico.
Há uma crença bem popular de que é possível
gerar conhecimento científico de forma infalível
através da aplicação de um 'método
científico' ou processo que constituiria uma verdadeira
'pedra filosofal' para a ciência. Na crença da existência
dela, sua busca tornou-se um das principais tarefas de gerações
de filósofos da ciência. Kuhn teve sucesso em demonstrar
que não só a busca era improfícua, como o
próprio método era uma ilusão por um conjunto
de razões, dentre as quais (5):
-
Falta de acordo histórico:
a existência de um 'método infalível'
não era observado em uma análise detalhada dos
muitos detalhes históricos que caracterizavam o desenvolvimento
de teorias científicas ao longo dos séculos;
-
Dependência
entre a observação e as teorias científicas:
são as teorias que orientam a realização
e o sucesso dos experimentos e não o contrário.
Por outro lado, só há boas teorias quando os
conceitos básicos de uma ciência estão
bem estabelecidos (6), o que leva à necessidade de
se ter uma linguagem própria conectada a conceitos
bem compreendidos;

Thomas
Kuhn
Ao invés de um método, Kuhn
propôs o conceito de paradigma científico (7)
que permite escolher - de uma ampla gama de fenômenos e
aparentes problemas científicos - quais devem ser estudados
daqueles que devem ser desprezados. Na existência de um
paradigma (8),
a atividade científica se aproxima de uma 'solução
de quebra-cabeças', quando se tem certeza que uma solução
será alcançada. O preço óbvio que
se paga por essas vantagens é a restrição
de escopo: cientistas não precisam (e nem devem) se interessar
por qualquer tipo de problema, mas apenas por aqueles garantidamente
tratáveis pelos paradigmas a que eles aderem. A atividade
científica torna-se uma tarefa monótona (frequentemente
envolve a busca ou aperfeiçoamento de soluções
para problemas já resolvidos...) e são raríssimas
as ocasiões em que 'soluções para problemas
fundamentais' são sequer procuradas.
Uma explicação
para o ceticismo
A noção de
paradigmas de Kuhn (1)
permite compreender melhor a ideia errônea de que cientistas
aderem irrestritamente ao ceticismo. Pois, não é
que cientistas sejam inerentemente céticos, mas que eles
apenas estão interessados em resolver problemas que tenham
uma relação direta com o(s) paradigma(s) que escolheram
se dedicar profissionalmente. Como ressaltado por Thomas Kuhn,
para que a ciência dê resultados, não é
possível se dedicar a qualquer tema ou problema que apareça,
mas apenas aqueles para os quais exista um paradigma ou teoria
bem estruturada que permita que a pesquisa seja organizada de
forma eficiente. Isso envolve não só a escolha de
uma teoria favorita, mas de uma ampla gama de conceitos chave
na forma de uma linguagem própria. O paradigma propicia
o progresso, evitando que sempre se tenha que começar 'do
zero' quando surge a necessidade de dar solução
a um novo problema pertencente ao tema de escopo do paradigma.
Resta-nos discutir futuramente o que acontece com os temas sem
padigma reconhecido (8).
Acusações apressadas de céticos
de sofá que dizem que o 'Espiritismo aspira ao status de
ciência' são incapazes de perceber que não
se trata de se buscar uma 'nova ciência acadêmica'
e desconhecem a restrição imposta pelos paradigmas
científicos. Não é objetivo da ciência
dar respostas para tudo: ela precisa se especializar para que
funcione. Consequentemente, existem muitas lacunas e problemas
desprezados por essa mesma ciência. Esse tipo de ceticismo
está a tal ponto enceguecido que é incapaz de perceber
a necessidade de aceitar novos conceitos para que uma nova linguagem
e teoria tenha chance de mostrar seu valor. Aqui, a visão
de paradigmas de Kuhn permite compreender mais amplamente o problema.
De fato, como querer discutir reencarnação ou comunicabilidade
além-túmulo se o próprio conceito de espírito
como unidade indivisível, independente e invisível
sequer é aceito? Há a barreira inicial de se aceitar
os conceitos (com sua 'ontologia própria') a fim de que
uma nova linguagem teórica seja articulada e dê resultados.
Sem a aceitação dos conceitos, é impossível
aceitar igualmente a teoria e a compreensão mais profunda
sobre os tipos de teste ou situações de observação
que são propiciadas por ela.
O 'paradigma
espírita' (9)
é capaz de dar explicação razoável
para um grande número de fenômenos e ocorrências
naturais desprezadas pela sua incomensurabilidade com outros temas
mais materiais de pesquisa. Resta ao ceticismo negar insistentemente
a importância do tema: como já tivemos ocasião
de expor, esse ceticismo é um vasto emaranhado de crenças
preconcebidas que se recusa a aceitar alguns conceitos e, por
causa disso, está condenado a negar os fenômenos,
até que seja completamente esquecido pelas novas gerações.
Nosso texto aqui teve como objetivo mostrar a importância
que estudos em filosofia da ciência tem para a correta compreensão
de teorias e propostas de estudos para os fenômenos psíquicos.
Sem esse estudo, manifestações claramente contrárias
as propostas espiritualistas (aquelas que postulam a continuidade
da existência da consciência, primeiro sua independência
do cérebro etc) serão necessariamente limitadas.
Não se pode impor limites ao conhecimento científico
e o que muitos céticos personalistas fazem nada mais é
que estabelecerem limites de acordo com sua própria compreensão
dos fatos.
Falaremos sobre esse tema instrutivo em outros
posts futuramente.
Notas e referências
(1) Kuhn T. (1970) "A estrutura das Revoluçõeos
Científicas", International Encyclopedia of Unified Science,
Volume 2, Número 2, 2a edição.
(2) A quem poderíamos chamar 'cientificistas'.
Há uma seita mais ou menos radical de indivíduos que vão
além e pregam que a ciência estabelecida é a única
forma confiável de se gerar conhecimento científico de
valor. Desprezam a religião e tem aversão por ideias consideradas
'místicas', o que incluem todos os temas que não são
de interesse das ciências ordinárias, inclusive os espiritualistas;
(3) Paradigma: do grego "pa??de??µa"
(paradeigma), "modelo, examplo, amostra" do verbo "pa?ade????µ?"
(paradeiknumi), "exibir, representar, expor" e de "pa??"
(para), "além" + "de????µ?" (deiknumi),
"mostrar, apontar";
(4) As ciências de interesse para filósofos
como Popper, Kuhn e Lakatos são as chamadas 'ciências naturais'
- física, química, biologia etc. O conhecimento de humanas
(sociais, economia etc) está excluido dessa análise.
(5) A. Chalmers (1993), 'O que é ciência
afinal?', 1a edição, Ed. Brasiliense.p. 109-110;
(6) Exemplo: só tem sentido em se propor um
experimento para medir a carga de um elétron, quando se reconhece
a existência de elétrons e o conceito de carga. Isso várias
vezes passa desapercebido quando se trata de criticar experimentos ou
a análise de fenômenos psíquicos;
(7) Exemplos de paradigmas de sucesso em ciência
foram: a teoria de Ptolomeu dos epiciclos planetários, a teoria
da evolução de Darwin, a física de Newton, a Mecânica
Quântica, o atomismo etc;
(8) Na inexistência de um paradigma, estamos
na fase 'pre-paradigmática' (1) da ciência ou fase 'pré-científica'.
Falaremos sobre essa fase em outro post;
(9) Para saber mais: http://www.geeu.net.br/artigos/paresp.html