
Ao contrário do livro "Em
nome de Kardec", fui obrigado a ler "Madame
Kardec: a história que o tempo quase apagou"
em migalhas. O texto de Adriano continua leve de se ler e agradável.
Ele transforma a narrativa em uma espécie de seriado de suspense,
no qual cada capítulo é uma história.
Conhecemos mais de Allan Kardec que de sua esposa,
em função, talvez, do livro "Obras Póstumas"
e pelo acesso à Revista Espírita. Obviamente a visibilidade
do escritor é muito maior que a de seu editor ou revisor,
o que é uma das primeiras surpresas do livro. Amélie
participou ativamente de toda a obra kardequiana, revendo e relendo
para o marido.
Sua história como mulher francesa no século
XIX mostra que ela foi muito além do esperado pelas convenções
sociais da época. Após a desencarnação
de Rivail, ela se tornou (se é que já não era)
administradora dos bens do casal, que não eram desprezíveis,
em função de heranças recebidas das famílias.
Seu compromisso com o trabalho do marido e seu tirocínio
quanto às decisões que os homens das instituições
criadas para dar continuidade ao trabalho de Kardec são pacientemente
recuperados por Calsone. Uma das principais fontes usadas são
os escritos de Berthe Fropo, amiga de Amélia. Ela coloca
no papel sua visão sobre as decisões da Sociedade
Científica de Estudos Psicológicos, que, salvo engano,
foi fruto de uma transformação da Sociedade para a
continuação das obras de Allan Kardec.
Do ponto de vista da história, Calsone tenta
mostrar, sempre que possível, a visão dos dois lados,
mas não esconde sua simpatia por Berthe e Amélie.
Sei por experiência própria que quando há conflito,
as posições se polarizam, e mesmo quem tem razão,
costuma exorbitar em algumas situações.
Calsone faz uma releitura do episódio do
Processo dos Espíritas, e atribui aos interesses comerciais
de Leymarie, sua associação inadvertida com o "médium"
farsante, que produzia fotografias espíritas. Na medida em
que se vai lendo, vê-se que Leymarie não tinha a formação
necessária para entender o alcance do trabalho de Kardec.
Entendendo o espiritismo mais como movimento a ser tornado público
que como doutrina filosófica, sem o mínimo conhecimento
das ciências, ele vai fazendo associações com
Roustainguistas (Guérin), Teosofistas (Blavastsky) e outros
espiritualismos, não importa seu método de desenvolvimento
da teoria, nem suas contradições com o exposto por
Kardec em seu trabalho. Não sei se exagero, mas Calsone parece
perceber o efeito dos títulos que vão sendo concedidos
a Leymarie, e de sua indiferença ante a adoção
de adornos, como bandeiras cheias de imagens com significados simbólicos
de Guérin.
Tudo isso não passou despercebido aos espíritas
com melhor formação, como Delanne e Denis, que se
dispuseram à criação do órgão
"Le Espiritisme" e da "União Espírita
Francesa". Calsone mostra com perfeição que a
criação de uma nova instituição espírita
não foi bem vista pelos membros da Sociedade, muito menos
a comercialização de um novo órgão de
divulgação, visto como concorrente à Revue.
Na leitura do livro, entendi melhor o significado
do apoio que a Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade,
aqui do Brasil, deu à "União Espírita
Universal" (elemento pré-textual de A Gênese,
traduzida em 1882), bem como dos conflitos e divisões que
foram descritos por Canuto Abreu no movimento espírita do
Rio de Janeiro no seu livro "Bezerra de Menezes: subsídios
para a história do espiritismo no Brasil até o ano
de 1895".
Não vou falar sobre os pais e a infância
de Amélie, o processo de herança, sobre as acusações
de destruição de documentos, nem sobre a sucessão
de Leymarie e os processos judiciários que afetaram o movimento
espírita profundamente. Isso fica para o leitor interessado,
já que não quero ser acusado de fazer "spoiler"...
Livro: Madame Kardec: a história que o tempo
quase apagou
Autor: Adriano Calsone
Editora: Vivaluz
282 páginas