
Ruínas em Corinto
Ao preparar um estudo sobre o cristianismo
primitivo, esbarrei na tese “Paulo e a Ekklesia de Corinto:
conflitos sociais e disputas de autoridade no período paleocristão”,
escrito por Simone Resende da Penha Mendes.
O trabalho é interessante,
porque a autora se dispôs a articular o que se conhece em
história com a interpretação do texto da epístola
de Paulo aos coríntios.
Corinto era uma cidade grega importante,
mercantil, situada na passagem entre o Mar Jônico e o Egeu.
Foi destruída em 146 pelo general romano Lúcio Múmio,
com o massacre e escravização dos gregos, tornando-se
romana. A cidade que Paulo conheceu era um centro comercial habitado
por romanos (pobres agraciados por César e veteranos de guerra),
gregos (alguns com cidadania romana), judeus e outros estrangeiros.
As diferentes origens dos cidadãos
de Corinto fez com que essa comunidade se tornasse uma espécie
de “caldo de culturas”, embora as decisões políticas
e o poder fossem exercidos segundo Roma. Outra questão que
foi revista pela autora nos autores da historiografia, foi a relação
patronal na comunidade nova. Ricos e pobres formavam a nova ekklesia
fundada por Paulo.
Na perspectiva cristã, as
relações sociais seriam pouco relevantes nas relações
dos membros da ekklesia ou comunidade. Uma nova ética é
proposta por Jesus e se impõe aos códigos de moral
das diferentes culturas existentes. Apesar disso, era inevitável,
que uma autoridade romana tivesse problemas de convivência
no espaço da comunidade com um estrangeiro, escravo ou pobre.
Era provável que houvesse também um conflito entre
os costumes dos membros da comunidade, porque os costumes judaicos
são bem diferentes dos romanos, por exemplo. O pensamento
grego também se distingue da tradição judaica,
mais interpretativo-religiosa que sistêmico-filosófica.
Os pequenos conflitos começam a surgir no dia-a-dia após
a criação de uma nova forma de estabelecer relações
sociais em uma cidade romana.
A comunidade de Corinto foi fundada
no ano 50 por Paulo de Tarso. A autora afirma que ele provavelmente
ficou na cidade por 18 meses (p. 56 e Atos 18:11). Nesse tempo ele
trabalhava como tecelão, fabricando tendas (Atos 18:3) com
Áquila e Priscila (ou Prisca[1]). É curioso, porque
na cultura hebraica, aos sacerdotes era devido algum pagamento,
o que fez com que Paulo lembrasse isso à comunidade em uma
de suas epístolas.
A autora discute as teorias sobre
quantas epístolas Paulo realmente teria escrito. Os autores
consultados falam em oito epístolas, das quais uma se perdeu
e as demais foram usadas na composição dos textos
das duas epístolas da Bíblia. Simone conclui que duas
se perderam (p. 62), que I Coríntios é composto de
duas epístolas e que II Coríntios é composto
de outras quatro epístolas, em resumo. Ela, contudo, defende
a autoria de Paulo.
Além de Áquila e Priscila,
outros personagens são nominalmente citados nas epístolas,
dentre eles, Apolo. Simone (p. 137) localiza no livro de Atos (cap.
18), que se trata de um judeu nascido em Alexandria, eloquente e
versado nas escrituras. A autora explica que ele tinha habilidade
retórica, possivelmente superior à do próprio
Paulo, o que o levaria a justificar que seu trabalho era “anunciar
o Evangelho, sem recorrer à sabedoria da linguagem”
(I Coríntios). Apolo era amigo de Paulo, e é um dos
que levam a ele informações sobre a comunidade cristã
de Corinto. Simone Mendes especula se ele não teria sido
influenciado por Filo ou por autores do paleocristianismo de Alexandria,
antes de ter vindo a Corinto.
Os Conflitos
Simone classifica os conflitos da
ekklesia de Corinto em dois tipos: os conflitos políticos
e os de conduta.
Um dos conflitos políticos
foi a divisão de alguns dos membros da comunidade entre os
“de Paulo” e “de Apolo”, que a autora interpreta
como sendo a origem de uma série de considerações
que Paulo faz nas epístolas. Apolo teria uma formação
mais filosófica e Paulo falaria mais diretamente. Simone
entende que os “simpatizantes” de Apolo (I Coríntios
3:3-6) valorizavam mais a sabedoria do mundo, o que teria levado
Paulo a contrapô-la com a sabedoria de Deus, revelada pelo
"espírito", (I cor 1:17, 2:16 e pág. 139
da dissertação de Simone Mendes).
A autora identifica 14 conflitos
políticos em seu trabalho (p. 135) que os interessados podem
estudar posteriormente.
Outra categoria foi identificada
como conflitos de conduta, que a autora mostra
ter origem nas diferenças culturais e morais dos membros
da comunidade. Assim se encontra uma discussão sobre o uso
de véu nas reuniões da ekklesia, outra sobre um membro
que passou a viver com a mulher do pai, o recurso a tribunais gentios,
possível manutenção de relações
sexuais de membros com prostitutas, questões relativas a
virgindade e casamento, consumo de carnes sacrificadas aos ídolos,
e ocupação de lugares na ceia do senhor (não
havia missa à época, mas uma refeição
comunal). A explicação de cada um desses conflitos
pode ser lida nas páginas 121 e seguintes da dissertação.
Costumes diferentes, ética
cristã e uma nova moral
O que se observa no trabalho do
Programa de Pós-Graduação em História
da UFES é uma análise das epístolas de Paulo
aos coríntios que mostra a dificuldade em se construir uma
comunidade formada de pessoas de diferentes origens, culturas e
costumes. Ao resolverem viver como comunidade, os membros de Corinto
são desafiados a reconstruir seus valores em uma perspectiva
cristã. Paulo age como uma liderança, discutindo os
problemas que surgem à luz dos ensinos de Jesus.
As epístolas são analisadas
pela autora como uma reflexão paulina diante dos desafios
que o convívio entre cristãos-judeus e cristãos-gentios
se amplia, em lugar de ser lidas como um código de conduta
cristã. Muitas das questões de conduta, por exemplo,
são de ordem prática, e não foram abordadas
por Jesus em suas pregações ou em seu convívio
com os apóstolos, uma vez que todos eram oriundos da cultura
hebraica e não havia conflito naquilo que habitualmente já
faziam da mesma forma. As soluções paulinas para os
problemas da época ganharam visibilidade e aceitação
pela comunidade cristã como um todo, o que mostra que eram
problemas comuns e que as soluções eram bem vistas.
O estudo do cristianismo primitivo
ou paleocristianismo interessa a nós, espíritas, porque
há diferenças marcantes entre as comunidades primeiras
e as que se formaram após a fusão entre o movimento
cristão e o estado romano. Esse evento “divisor de
águas” se inicia no governo de Constantino, no século
IV.
[1]
Πρισκιλλαν,
do grego, pode ser traduzido para o latim como Prisca. As diferentes
Bíblias que tenho traduzem o nome da esposa de Áquila
para Priscila. Na Bíblia em latim (Sacra Vulgata), o nome
se encontra grafado Priscillam.
Fonte: https://espiritismocomentado.blogspot.com/2019/03/uma-dissertacao-de-mestrado-sobre.html